
Durante o último mandato de Luís Montenegro e ao longo da campanha para as legislativas antecipadas, marcadas para 18 de maio, a insegurança voltou a ser debatida. A preocupação generalizada com a segurança levou o assunto para o centro do discurso político, mesmo sem que os dados sustentem um agravamento real da criminalidade.
“Durante uma crise, as pessoas estão mais vulneráveis e menos coesas"Isabel Rocha Pinto
Segundo o Índice Global da Paz, Portugal ocupa atualmente o sétimo lugar a nível mundial e o quinto na Europa, sendo um dos países mais seguros e pacíficos do mundo. O mais recente Relatório Anual de Segurança Interna (RASI), relativo a 2024, confirma esta tendência: a criminalidade geral registou uma diminuição de 4,6% face a 2023.
Na verdade, a perceção de insegurança não é mais do que “uma crença coletiva”, explica Isabel Rocha Pinto, professora da Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação e diretora do Laboratório de Psicologia Social da Universidade do Porto, ao SAPO24. “E deve-se ao momento pelo qual estamos a passar”, acrescenta.
A guerra na Ucrânia, os conflitos no Médio Oriente, o avanço da extrema-direita na América Latina e as deportações em massa nos EUA moldam um novo cenário multicultural, que serve de pano de fundo destas eleições.
Além disso, num mundo em rápida transformação, a nível social, económico e tecnológico, “a pressão de insegurança é exacerbada”, comenta. “Durante uma crise, as pessoas estão mais vulneráveis e menos coesas, acreditam menos nas instituições e, portanto, pensam que está cada um por si, o que é muito problemático”.
“A insegurança está associada à exposição constante a este tipo de notícias".Isabel Rocha Pinto
Narrativas de ódio e radicalização dos media
A sensação de que “as pessoas não estão protegidas, que o sistema e o Estado não funcionam” é, para a professora, o primeiro grande problema — e um dos mais relevantes a considerar nestas legislativas.
“Quando falamos de insegurança, não nos referimos apenas ao crime. Pode tratar-se, por exemplo, da perceção de instabilidade na capacidade de alcançar vidas mais estáveis e prósperas”, sublinha Isabel Rocha Pinto. O medo e a ansiedade resultam muitas vezes da instabilidade institucional ou da perceção de falta de transparência.
A crise económica que Portugal atravessa “reforça a desconfiança em relação ao sistema e ao futuro e enfraquece a coesão social”. Muitas pessoas sentem que vivem rodeadas por mais criminalidade do que a realidade confirma e acabam por adotar comportamentos mais restritivos.
Grupos radicais e partidos políticos “veiculam a ideia de que existe muita criminalidade, seja corrupção, seja violência”.Isabel Rocha Pinto
A investigadora acredita que existe uma narrativa alimentada pelo discurso político e pelos media, que promove esta perceção. Seja através da exclusão de grupos minoritários, seja pela atenção excessiva a crimes isolados.
“A insegurança está associada à exposição constante a este tipo de notícias, que nos leva a acreditar que existem mais casos violentos. A cobertura mediática, e até os conteúdos nas redes sociais, amplificam estas crenças e não refletem as estatísticas reais da criminalidade”, explica.
Perante a ideia de que estão por sua conta, os cidadãos tornam-se mais vulneráveis a este tipo de influência. “Não acreditamos que podemos estar protegidos porque não confiamos nas instituições. E sempre que procuramos mais informação, sentimo-nos ainda mais perdidos.”
“Sentimos um risco maior porque são pessoas diferentes de nós".Cristina Mendonça
É neste contexto que ganham força grupos radicais e partidos políticos que “veiculam a ideia de que existe muita criminalidade, seja corrupção, seja violência”, uma narrativa que, segundo a professora, “vende mais”. Muitas vezes, esses movimentos surgem associados a discursos que põem em causa o papel do Estado e apelam à recuperação de uma ordem supostamente perdida.
O populismo aproveita-se da facilidade com que se produz e partilha desinformação, oferecendo soluções para problemas que, muitas vezes, não existem. Isabel Rocha Pinto descreve estas estratégias como “bodes expiatórios” que tentam explicar a insegurança, mas de forma exagerada e distorcida.
Comportamento e reação social
O desafio passa por perceber como mediar a informação divulgada por esses grupos. Além de influenciar as perceções sobre a sociedade, ao promover estereótipos, o populismo tem a capacidade de afetar diretamente o comportamento de quem sente medo. Exemplos disso são alterações de rotina, "como deixar de sair à noite ou até andar armado", diz Isabel Rocha Pinto.
A resposta exige “não apenas a discussão de valores democráticos nas escolas, mas também o reforço da literacia sobre os mecanismos da propaganda política”Isabel Rocha Pinto
Segundo a académica, este tipo de comportamento defensivo decorre da ideia de que “cada um está por si”, fora da comunidade e sem confiança nos outros. O medo é mais facilmente dirigido a minorias invisíveis, que se isolam do resto da sociedade.
Essa é, segundo Cristina Mendonça, investigadora em Psicologia Social, a forma mais simples de dar uma explicação “racional” a uma sensação irracional. Depois de definir a causa do problema, é mais fácil defender “medidas protetoras em relação a determinados grupos” e adotar um "vigilantismo exagerado", explica.
Imigração e preconceito
Esse clima de desconfiança acaba por alimentar políticas que promovem a exclusão e a supressão de direitos, alerta Cristina Mendonça, políticas essas que, mais tarde, são amplificadas durante períodos eleitorais.
A sensação de insegurança leva a abordagens mais hostis no contacto com os outros, especialmente com pessoas em situação de sem-abrigo, migrantes ou portugueses de diferentes religiões e origens étnicas, dificultando os processos de integração.
“Sentimos um risco maior porque são pessoas diferentes de nós — com outra religião, outra língua, outra aparência”, observa Cristina Mendonça. Quanto mais “fisicamente diferentes do português comum”, maior é a perceção de risco.
O medo deixa de ser uma reação natural, "quando legitima a ideia de que os imigrantes devem ser excluídos, em especial os rapazes racializados”Isabel Rocha Pinto
Contudo, “esta associação é totalmente fictícia e errada", garante a investigadora. O RASI não associa o crime a nenhum grupo em particular. Apenas aponta os riscos associados à imigração ilegal, ao tráfico de pessoas e de droga, como consequências da atual crise migratória global, medidas tidas em conta nos programas dos partidos candidatos.
Associado a ideias de marginalidade e pobreza, o perfil do imigrante masculino corresponde, para muitas pessoas, à imagem de alguém “potencialmente criminoso”, explica a psicóloga. No entanto, o medo deixa de ser uma reação instintiva e legítima, quando começa "a justificar discursos de ódio e a exclusão de imigrantes", alerta Isabel Rocha Pinto.
Os mais visados por este tipo de perceção são os rapazes racializados: de acordo com o Relatório de Migrações e Asilo, 53% dos imigrantes que chegaram a Portugal em 2023 eram homens. Já o medo tende a afetar mais as mulheres e os idosos, "também por outras experiências de violência", sublinha a investigadora.
E que políticas públicas podem responder à insegurança?
A poucos dias das eleições legislativas, a questão que se coloca é: como pode o novo Governo combater esta sensação de insegurança?
A psicóloga Cristina Mendonça defende a criação de espaços onde os imigrantes e as comunidades locais possam estabelecer contactos positivos fora de contextos de competição direta. Só assim será possível construir pontes e reduzir o medo com base no convívio, e não na distância.
“Seria fundamental que o poder local e as associações comunitárias passassem a promover a ideia de que é possível confiar nos outros".Isabel Rocha Pinto
Para Isabel Rocha Pinto, a resposta exige “não apenas a discussão de valores democráticos nas escolas, mas também o reforço da literacia sobre os mecanismos da propaganda política”. Cristina Mendonça acrescenta que “a informação nem sempre é suficiente para mudar perceções”, ao que a investigadora do Porto contrapõe: “Vivemos numa era de pós-verdade, em que estamos mais vulneráveis e confiamos menos na informação que nos chega.”
Em última análise, consideram que o que está em falta é o envolvimento das pessoas no coletivo e na participação cívica. “Seria fundamental que o poder local e as associações comunitárias passassem a promover, não apenas nas escolas mas também nos bairros e comunidades, a ideia de que é possível confiar nos outros, de que juntos podemos fazer melhor”, defende Isabel Rocha Pinto. Só assim, sublinha, “se constrói uma verdadeira coesão social".
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