Dia 26 de março é uma data que os Estados Unidos irão lembrar. Foi o dia em que o país se tornou o n.º 1 num ranking indesejado: maior número de casos de Covid-19 confirmados no mundo. Dois dias depois, a 28 de março, São 105.470 pessoas infetadas e 1.710 mortes registadas, sendo Nova Iorque o local mais duramente atingido, com 450 mortes (dados da Johns Hopkins University & Medicine, às 15h45 de 28 de março).

Os números dos últimos dois dias desviaram muitos olhares da Europa para os Estados Unidos, que são agora apontados como o próximo epicentro da pandemia. A verdade é que os números absolutos, por agora, impressionam pela escala: a dimensão dos EUA, o terceiro país mais populoso do mundo, ultrapassa em muito a de Itália ou Espanha. O mesmo não se poderá dizer em relação ao país onde tudo começou, a China, que, estando ao que tudo indica na fase descendente da curva, regista 81.997 casos e 3.299 mortes (dados da Johns Hopkins University & Medicine, às 15h45 de 28 de março).

créditos: Johns Hopkins University & Medicine

Mas vale a pena uma análise mais em detalhe à situação nos Estados Unidos e ao que se poderá antecipar nas próximas semanas no país.

Alguns dados para entender a situação:

  • Como referido, os EUA são o terceiro país com mais população no mundo e por isso importa não só olhar para números absolutos, mas também para racios comparativos. Por exemplo, Itália tem 1 caso de Covid-19 por cada 750 habitantes, os EUA têm 1 por 4000 – sendo que este racio é de 1 por 400 em Nova Iorque.
  • Ainda nos termos comparativos: Itália fechou todas as escolas a 4 de março e declarou emergência em todo o país quando ultrapassou os 10 mil casos.
  • Os EUA passaram os 10 mil casos a 19 de março, os 20 mil a 21 de março e os 50 mil a 24 de março – e tudo aconteceu sem que fosse dada ordem ao nível federal para reduzir as atividades não essenciais.
  • Ainda assim, os governos estaduais anteciparam decisões e, no dia 15 de março, 50 estados já tinham declarado estado de emergência – ainda que com níveis diferentes de restrições.
  • A lógica muitas vezes usada ao nível de Governo federal nos EUA de que estados não afetados ajudam estados afetados funciona para desastres naturais como incêndios ou tempestades – mas não para um vírus.
  • Um estudo do Harvard Global Health Institute mostra realidades bastante distintas consoante a percentagem de norte-americanos que sejam infetados por Covid-19, projeções que a Propublica traduziu em três cenários em que o mapa dos EUA vai de verde (o melhor cenário) a vermelho (o pior).
  • Segundo o Global Health Security Index, um ranking que avalia as capacidades dos sistemas de saúde em 195 países, nomeadamente no que respeita à capacidade de resposta em caso de pandemia, os Estados Unidos estão entre os "melhor preparados" (a amarelo na imagem abaixo; Portugal, a título de curiosidade, está como os "mais preparados", a laranja)
créditos: Global Health Security Index

Indicadores que explicam as razões de preocupação com a situação nos Estados Unidos:

  • Segundo um estudo do Imperial College (a mesma instituição que assustou Boris Johnson com previsões de que 250 mil pessoas poderiam vir a morrer de Covid-19 no Reino Unido), se não forem tomadas medidas de controlo ou se não houver mudanças espontâneas no comportamento individual, o pico de mortalidade é esperado três meses depois do início da pandemia; o mesmo estudo prevê, neste âmbito, uma taxa de infeção de 81% nos EUA e um cenário de 2,2 milhões de mortes.
  • A Universidade da Pensilvânia estima que o distanciamento social pode reduzir a taxa de infeção em 95% mas que, ainda assim, 960 mil americanos venham a precisar de cuidados intensivos.
  • Com todos os problemas de testagem iniciais e a demora a encontrar um rumo eficiente, o país esteve várias semanas sem dados reais sobre a propagação do vírus. O sistema de saúde já sobrecarregado não teve planos de preparação e agora os materiais de proteção começam a escassear.
  • Trump disse esta semana que os Estados Unidos estão a recuperar o ritmo de testagem, o que é verdade, embora não seja suficiente. Nos últimos dias, o número total aumentou em larga escala e o país contabiliza já mais de 670 mil testes feitos, segundo a plataforma COVID Tracking, que monitoriza os números relativos ao novo coronavírus nos Estados Unidos. A 26 de março, o The New York Times referia que estavam a ser realizados 65 mil testes por dia. No entanto, o país ainda se encontrava muito atrás da Coreia do Sul (uma referência pela testagem intensiva da população) e de Itália, em termos de número de testes per capita, com menos de 200 por cada 100 mil pessoas.
  • A 28 de fevereiro, o CDC (Centers for Disease Control and Prevention) reportava 15 americanos infetados, dos quais 12 em pessoas que tinham viajado, sendo o total de pessoas testadas 459. O número de testes, a esta data, é considerado irrelevante quando comparado com o número de americanos que viajam (número de fevereiro de 2019 apontavam para que nesse mês 6,3 milhões de americanos tivessem viajado).
créditos: Centers for Disease Control and Prevention

O que pode ser feito:

  • Para já o que vai ser feito: uma abordagem “laser-focused”. A explicação foi dada na quinta-feira numa conferência de imprensa na Casa Branca. A ideia é aplicar medidas de combate ao surto diferentes de condado para condado (divisão administrativa dentro dos estados), de forma a evitar uma estratégia que paralize todo o país. As medidas, mais ou menos restritivas, serão definidas de acordo com o nível de risco em que o condado se encontre: alto, médio ou baixo. A classificação será atribuída em função dos resultados dos testes realizados em cada local.
  • Esta abordagem traz algumas dúvidas: haverá capacidade de testagem suficiente? Os resultados poderão induzir em erro e levar condados a implementar medidas desajustadas? Como se fará o controlo da mobilização entre condados? A Administração de Trump já enviou uma carta aos governadores dos estados a explicar que serão consideradas novas linhas de orientação na atuação contra a Covid-19, embora estas não tenham sido definidas no documento.
  • O que precisa de ser feito: uma das principais recomendações é que o país produza rapidamente mais equipamento de proteção. Uma decisão que pode ajudar é através do chamado Defense Production Act – uma lei aprovada em 1950 na presidência de Harry Truman em resposta à Guerra na Coreia – e que permite convocar um esforço de produção equiparável ao do estado de guerra. Depois de muita pressão, Donald Trump só hoje, 28 de março, invocou o uso desta lei pedindo à General Motors que produza ventiladores.
  • Por curiosidade, o Defense Production Act foi utilizado em vários contextos, como por exemplo em 2001 por Clinton e depois por George W. Bush para garantir gás natural e eletricidade na Califórnia, que estava em crise energética. Bush voltou a usá-lo também em 2003 para que fosse dada prioridade à produção de GPS para as tropas britânicas no Iraque.
  • Uma das possibilidades é também associar a Defense Logistics Agency, uma estrutura com 26 mil pessoas que prepara as tropas norte-americanas no estrangeiro e que esteve por exemplo no combate ao surto de ébola em 2014.

Há responsabilidades políticas da Administração Trump nesta pandemia?

  • O tema tem sido debatido devido a algumas decisões que hoje se conhecem e que, na opinião de alguns analistas, contribuíram para uma menor preparação ou antecipação da pandemia.
  • Por exemplo, a agência Reuters noticiou esta semana que a equipa norte-americana no Centro de Prevenção e Controlo de Doenças na China passou de 47 para 14 pessoas desde 2017 e que várias agências científicas foram reduzidas.
  • O Centro de Controle e Prevenção de Doenças dos Estados Unidos, embora não tenha respondido sobre os cortes que ocorreram na sua sede em Pequim, afirmou, no entanto, que as medidas relativas aos seus colaboradores não dificultaram a resposta norte-americana à Covid-19. "O problema era a China, não o facto de não se ter pessoal na China", diz um antigo epidemiologista da organização, que agora é investigador e professor na Universidade Emory.
  • Outro tema que veio a lume foi a extinção, em 2018, da equipa de resposta a pandemias que fazia parte do Conselho Nacional de Segurança dos Estados Unidos.
  • A 28 de janeiro, Luciana Borio, que fazia parte dessa equipa apelou ao governo para “agir agora e prevenir uma epidemia na América”, cooperando com o setor privado e sobretudo investindo em testes.
  • Um nome emerge como símbolo de segurança: Anthony Fauci, director do National Institute of Allergy and Infectious Diseases, conselheiro da Casa Branca desde Reagan, e agora parte da equipa de combate à Covid-9.

E na economia, o que está a ser feito?

  • O Senado dos Estados Unidos da América aprovou, com apoio de democratas e republicanos, um plano de apoio económico de 1,8 biliões de euros (ou seja, dois biliões de dólares), o maior de sempre na história dos Estados Unidos da América.
  • Este investimento é igual à metade do orçamento anual federal, ou seja, do orçamento que suporta os serviços do governo norte-americano em todo o território nacional.
  • Dentro deste plano, será providenciado um apoio que vai até 1.200 dólares (1,093 euros, sensivelmente) para os cidadãos norte-americanos com rendimentos até 75 mil dólares/ano que necessitem de apoio financeiro. Para quem ganhe acima deste valor, o apoio desce cinco dólares por cada 100 dólares a mais de salário. Quem ganhe acima de 99 mil dólares por ano, deixa de ter direito a apoio.
  • A Tax Foundation estima que 93,6% dos norte-americanos sejam elegíveis para um apoio.
  • As famílias receberão ainda mais 500 dólares por cada criança no agregado familiar.
  • Os desempregados irão receber 600 dólares além do subsídio que já tenham atribuído pelo estado a que pertencem, e o apoio tem duração de 13 semanas. A medida é extensível aos trabalhadores independentes.
  • Foi também aprovado um programa para negócios, cidades e estados, que corresponde a 500 mil milhões de dólares (no valor de cerca de 455 mil milhões de euros).
  • E um fundo de 367 mil milhões de dólares (cerca de 334 mil milhões de euros) para as pequenas empresas.

Frases que marcaram os dias

  • “Qualquer pessoa que queira fazer um teste pode fazer um teste”. Donald Trump, 6 de março, numa altura em que ainda havia pouca capacidade de testagem.
  • “Eu sempre soube que isto era uma pandemia. Eu senti que era uma pandemia muito antes de ter sido dito que era uma pandemia”. Donald Trump, 17 de março, quando questionado sobre a mudança no tom do discurso.
  • “É um facto que assinei [o “Defense Production Act”], (…) mas não somos um país que assenta na nacionalização das nossas empresas. Perguntem a uma pessoa na Venezuela como correu a nacionalização dos negócios? Não correu assim tão bem”. Donald Trump, 22 de março, quando lhe perguntaram se tinha assinado a medida legislativa.