Quarenta anos depois da sua publicação, “Viagem a Portugal” ganha uma nova edição ilustrada com fotografias de José Saramago e uma série na RTP. Ao longo de seis episódios, que espelham os seis capítulos da obra encomendada nos anos 80 pelo Círculos de Leitores, Fábio Porchat calça as botas do único prémio Nobel em língua portuguesa.

Se Saramago atravessou a fronteira para começar esta viagem vindo de Espanha, Porchat cruzou o oceano para vir com o “olhinho brilhando” ver castelos, igrejas e azulejos que são um “acontecimento”. Com realização de Ivan Dias (“Fados” e “Carlos do Carmo: Um Homem no Mundo"), a série documental tem estreia prevista para setembro de 2022, ano em que se assinala o Centenário de Saramago.

Ao SAPO24, poucas horas antes de voltar para o Brasil, Fábio Porchat conta como reagiu ao convite. "Não era melhor chamar um português?”, questionou o realizador. Não, responde-nos Ivan Dias, à margem da apresentação à imprensa da série (há quase vinte anos que o realizador tinha esta ideia guardada na gaveta, tendo inclusive enviado um e-mail a José Saramago com uma proposta).  

“Um olhar de dentro para dentro acrescenta pouco. Queríamos alguém com um olhar de fora. O livro está pejado de fino humor, talvez mais do que noutra obra de Saramago. Por isso, tinha de ser alguém humorista, da língua portuguesa e que pudesse olhar para a obra com um olhar curioso. Nesta triangulação, o Fábio era o único nome”, explicou-nos Ivan Dias.

Voltando ao produtor do Porta dos Fundos e atualmente no ar, no GTN (Globo), com a terceira temporada do "Que história é essa, Porchat?”. Fã confesso de Saramago — e não só porque "parece bem" —, conta que já leu "seis ou sete" livros do Nobel, mas que o primeiro ainda hoje influencia a forma como escreve sobre temas religiosos. “'O Evangelho segundo Jesus Cristo' mostrou-me como é possível ter o olhar humano sobre os acontecimentos e não só um olhar sagrado. Fiquei encantado com o livro, me lembro de ler e pensar: 'Meu Deus, como é que ele olhou por esse ponto de vista’”, lembra. 

A estrear um novo especial de Natal do Porta dos Fundos (“Te Prego Lá Fora”, um exclusivo da Paramount+), imagina como Saramago reagiria à polémica daquele com selo da Netflix. "O argumento de que você não pode falar porque é um assunto religioso é um argumento que não faz sentido e que ainda perdura. Então, acho que ele diria para mim: 'Não é novidade, eu já sabia disso'”, antecipa.

Na viagem a Portugal, que fez acompanhado da família, descobriu “coisas completamente novas, como a Mata do Bussaco. Nossa…”. Diz ainda ter sido “uma honra poder estar no país de Saramago, calçando as botas que Saramago um dia calçou”. 

Na agenda está o regresso a Portugal em fevereiro para gravar os três episódios da série em falta, e não só. Porchat avança ainda, em primeira-mão, que subirá a palcos nacionais com um novo espetáculo de stand-up. Talvez conte uma das histórias que partilhou connosco. Certamente ficará melhor na voz de Fábio Porchat que por escrito. 

Já conhecia o livro “Viagem a Portugal” ou leu-o apenas depois do convite?

Só depois do convite. Já tinha lido muito Saramago, uns seis ou sete livros, mas nunca tinha nem ouvido falar nesta "Viagem a Portugal". Fui atrás, comprei no Brasil, mas o Ivan [o realizador] também me mandou uma versão antiga. Fui lendo... E, lógico, é muito bem escrito. É o Saramago! Tinha noção de que iria gostar muito mais depois da viagem por Portugal, e assim foi. Li o livro para poder fazer a série, mas antes de ir para os lugares onde íamos filmar lia de novo os respetivos trechos. E voltava a reler quando voltava para o hotel.

"Saramago é um dos meus escritores favoritos, parece bem estar a falar isso só porque estou a fazer a série, mas é mesmo"

O que mudou?

A palavra turista virou [algo] pejorativo. É um termo horrível, ser turista. A viagem que o Saramago fez é uma viagem que já não se faz mais, que é viajar com tempo. Hoje posso ficar por uma cidade, amanhã ir a outra... Sem esse desespero do: 'tem de'. Tem de ir ao museu, tem de ir ao castelo. Até eu, que gosto tanto de viajar e já viajei tanto pelo mundo, às vezes me pego caindo nessa armadilha do 'tem de'. Há quarenta anos as coisas tinham outro tempo, naturalmente. Mas o que Saramago propõe é o tempo do detalhe. O detalhe você não consegue ver correndo. Você só o vê quando se propõe a esperar, com calma. Saramago é um viajante com calma e isso faz toda a diferença na percepção de quem são essas pessoas com quem se cruzou, quem é esse povo, o clima de determinada cidade, o que tem essa igreja ou esse castelo, além do óbvio que são as informações históricas contidas nele.

Saramago é um dos meus escritores favoritos, parece bem estar a falar isso só porque estou a fazer a série, mas é mesmo. É uma honra poder estar no país de Saramago, falar de Saramago, calçando as botas que Saramago um dia calçou.

Qual foi o primeiro livro de Saramago que leu?

Foi "O Evangelho segundo Jesus Cristo", devia ter uns 22 anos. 

Começou por esse por alguma razão em especial?

Porque a religião sempre me interessou.

Atalhando um pouco na conversa e nas perguntas que tinha aqui de lado, tem isso em comum com Saramago.

Sou ateu como Saramago. "O Evangelho segundo Jesus Cristo" mostrou-me como é possível ter o olhar humano sobre os acontecimentos e não só um olhar sagrado. Fiquei encantado com o livro, me lembro de ler e pensar: 'Meu Deus, como é que ele olhou por esse ponto de vista'. A análise que Saramago faz n' "O Evangelho segundo Jesus Cristo" serve para tudo o que faço no Porta dos Fundos com temas religiosos. Volta e meia, quando escrevo os especiais de Natal, mando para pastores ou padres lerem e para ouvir a sua opinião. E eles me perguntam: "Fábio, como é que você pensa uma coisa destas. Que olhar é esse?". Falo que é o olhar de quem não acha isso sagrado, de quem acha que é um acontecimento histórico.

Falou dos especiais de Natal do Porta dos Fundos. Como é que Saramago comentaria a polémica associada ao "A Primeira Tentação de Cristo”, de 2019, na Netflix?

Ficaria muito feliz se ele assistisse a todos os especiais do Porta, ia ser muito interessante ouvir a sua opinião. Mas sinto que ele não se surpreenderia, infelizmente. A intolerância e o radicalismo continua exacerbado. O argumento de que você não pode falar porque é um assunto religioso é um argumento que não faz sentido e que ainda perdura. Então, acho que ele diria para mim: "Não é novidade, eu já sabia disso".

Além do ateísmo, que outras coisas partilha com Saramago?

Tem um humor muito fino, muito de situação. Um humor irónico, que é uma coisa que eu gosto muito. A ironia sempre está presente no que tento fazer. Não estou a dizer que o meu humor é igual ao de Saramago, por amor de Deus [risos]. Um país se descolar e ir embora, mudar uma vírgula numa frase e isso mudar a história de um país... Esses motes e essas histórias são coisas que me interessam. Sempre tento partir de uma boa história para construir uma série, um filme... Não escrevi livros, ainda... Interessa-me o ponto de vista que ele dá para uma história que já existe, e eu tento também ter esse olhar.

"O meu olhar é um olhar carinhoso, de quem gosta muito de Portugal, e agora ainda mais. Mas também, porque não, um olhar crítico"

Como é que reagiu quando recebeu o convite para a série?

"Não era melhor chamar um português?", foi a primeira reação. Pelo contrário, disse o Ivan. Ele queria um olhar novo, de fora, e um olhar que ainda se surpreenda com Portugal. E acho que talvez tenha sido isso que me convenceu. O que pode ser muito novo para mim, talvez vocês já conheçam, já não tenham mais o olhinho brilhando quando falam sobre isso. Nesse sentido, talvez a minha ignorância seja uma benção. O meu olho brilhava... Não vejo um castelo e penso: 'Mais um castelo'. Olho e falo: 'Meus Deus do Céu, é um castelo'. Vocês têm igrejas lindíssimas em todo lugar, vocês devem falar: 'É um azulejo'. E eu falo: 'Não, não é um azulejo, é um acontecimento'. Ainda me impacto com o que Portugal tem, mesmo com coisas que já conhecia ou já tinha ouvido falar. E me surpreendi quando descobri coisas completamente novas, como a Mata do Bussaco. Nossa...

Quando foi notícia que faria esta série, recordo-me de ver em algumas caixas de comentários coisas como: 'Convidaram um brasileiro com o dinheiro dos contribuintes portugueses'. Como é que responde a esta e outras coisas escritas?

Sinto que quanto mais olhar estrangeiro nestes momentos, melhor. Melhor para Portugal, melhor para o Brasil, melhor para o Mundo. Quanto mais pessoas com outras realidades, com outras percepções, com outras vivências, melhor é. Hoje estamos todos ligados interligados. Não há mais o Portugal dos portugueses e o Brasil dos brasileiros. Há o Brasil e o Portugal do Planeta Terra. Quanto mais olhares interessados, comprometidos e responsáveis sobre os lugares, melhor. Vejo isso com muito bons olhos. O meu olhar é um olhar carinhoso, de quem gosta muito de Portugal, e agora ainda mais. Mas também, porque não, um olhar crítico.

créditos: Instagram Fábio Porchat

Já gravou metade da série, sobretudo no norte do país. Dos lugares por onde passou, há algum que diga: é para voltar?

A Mata do Bussaco, com certeza. E pela primeira vez vi o Porto com outro olhar, fiquei apaixonado. Nunca tinha tido essa calma de olhar o Porto. Deixa ver outro lugar... A aldeia de Romeu [Mirandela], nossa. A minha vontade é arranjar um lugarzinho e morar lá. Foi mágico, ainda para mais com esse outono português. Quinze habitantes, tudo em pedra, um senhor a salgar bacalhau no meio de uma praça, cachos de uva a caírem dos muros das casas... Que lugar é esse? Fiquei muito impressionado.

E essas viagens fiz com a minha família. Trouxe a minha mãe, o meu padrasto e a minha mulher. Depois veio a minha avó [ela está aqui, aponta]. Em fevereiro, quando regressar para filmar o resto, trarei o meu pai. Quero viver esta experiência com as pessoas que amo.

A gente fez de Miranda do Douro até Coimbra, fizemos dois mil e tal quilómetros. Na volta pegamos de Lisboa para baixo, em direção ao Algarve e ao mar. Não vai dar para passar por todos os sítios por onde Saramago passou, claro.

Como foi recebido nesses lugares?

Foi muito interessante a recepção. Os brasileiros reconheciam-me e vinham falar comigo, mas muitos, muitos portugueses também. Fiquei surpreendido, mas acho que sempre me surpreendo quando estou fora do Brasil e sou reconhecido. Muita gente vinha falar comigo a perguntar se era eu mesmo: 'É você? Não é possível'. Estar de volta a Portugal e ter contacto com o público é óptimo, perceber que ainda assistem à Porta dos Fundos, e gostam; já senti que o "Que História é Essa, Porchat?" já começou a chegar, também. Faz muito tempo que não me venho apresentar em Portugal. Acho que a última vez foi em 2014, no Campo Pequeno. Em fevereiro, quando voltar, farei show de stand-up em Portugal. Um show novo. Quero apresentar-me em quatro ou cinco cidades, tentando sempre conciliar com as datas das gravações.

"O Brasil é um país de pessoas iletradas, onde o livro é caro, onde não se incentiva a leitura [...] Mas o Saramago é uma espécie de Deus da língua portuguesa. Respeitamo-lo muito"

O que é que destes primeiros vinte dias de gravações pode ser material?

[Risos]. Aconteceu uma coisa interessante, mas não sei se escrito... Quando fui ao Porto, comprei um ingresso pela Internet para visitar Serralves. Fui até lá de táxi e o motorista parou em frente do edifício, que estava em obras. Olhei e ele falou: "Serralves". Só que eu entendi: cerrado [fechado em espanhol].

- Cerrado?
- Serralves.
- Mas não está cerrado?
- É Serralves.
- Se está cerrado...
- Serralves. Entre pela porta.
- Mas se está cerrado, como vou entrar?

Ficámos um minuto a falar Serralves/cerrado. Nem ele entendeu porque é que eu falava "cerrado" nem eu entendi que ele falava "Serralves". Pensei logo que precisava contar isto quando fosse fazer um espetáculo de stand-up em Portugal.

A que autor brasileiro ou de língua portuguesa a Academia Sueca está a dever um Nobel?

Vejo a Conceição Evaristo como uma mulher muito potente, muito forte, com obras encantadoras. E é uma pena que nós não a reconheçamos. A Academia Brasileira de Letras não tem Conceição Evaristo entre os seus imortais, o que eu acho uma injustiça. Tomara que corrijam isso. Seria importante que uma mulher, negra, brasileira, ganhe um Nobel.

O Brasil tem tratado bem a memória e a obra de José Saramago?

Acho que sim, acho que o Brasil respeita muito a obra de Saramago. Claro que o Brasil é um país de pessoas iletradas, onde o livro é caro, onde não se incentiva a leitura, então é difícil falar da população brasileira de leitores porque não o somos. Mas, para aqueles que são e que gostam, o Saramago é uma espécie de Deus da língua portuguesa. Respeitamo-lo muito.