“Acho que foi uma legislatura histórica, não apenas para mim, mas para a democracia e, sobretudo, para o país”, sustentou Ferro Rodrigues, numa síntese dos quatro anos em que foi presidente do parlamento.
Questionado se admite recandidatar-se ao lugar, caso o PS vença as eleições, ou, pelo menos, se a esquerda mantiver uma posição maioritária no parlamento, o antigo líder socialista respondeu sem hesitações: “Parece-me que isso é evidente, não apenas pelas notícias, como por tudo aquilo que foi o último ano e meio de ação na minha intervenção”.
“E a disponibilidade que manifestei foi correspondida pelo secretário-geral do PS [António Costa]”, completou.
A eleição de Ferro Rodrigues para o lugar de presidente da Assembleia da República, em outubro de 2015, foi na altura muito contestada pelas bancadas do PSD e do CDS-PP, partidos que em coligação tinham vencido semanas antes as eleições legislativas. Pela primeira vez na democracia portuguesa, um presidente do parlamento eleito saiu da segunda maior bancada, a do PS, e não do maior Grupo Parlamentar, o do PSD.
No início da legislatura que agora finda, PSD e CDS chegaram mesmo a caracterizar a eleição de Ferro Rodrigues para a presidência da Assembleia da República como um “golpe de Estado” parlamentar.
“Não houve golpe de Estado parlamentar nenhum, porque a maioria que vota, em voto secreto, um presidente da Assembleia da República é sempre uma maioria legitima, qualquer que seja o eleito. Pura e simplesmente passou-se que, mesmo antes de haver um acordo governamental de incidência parlamentar, houve um acordo entre as diversas bancadas” da esquerda para essa eleição, contrapôs, nesta entrevista, o antigo líder socialista.
Nessas primeiras semanas da atual legislatura, verificou-se isso sim, segundo Ferro Rodrigues, “uma tentativa de interferência do antigo Presidente da República [Aníbal Cavaco Silva] quando apelou a que esta solução política não vingasse”.
“Até costumo dizer, meio a brincar meio a sério, que lhe estou agradecido, porque esse apelo foi feito na véspera da votação para a presidência da Assembleia da República e isso contribuiu fortemente para a coesão do Grupo Parlamentar do PS”, sustentou.
O presidente da Assembleia da República reconheceu que nos primeiros dias após a sua eleição “havia um ambiente muito de confronto” no parlamento.
“Fui o primeiro resultado de um novo acordo político no parlamento e naqueles dias houve ataques muito fortes, sobretudo vindos da bancada do PSD e dos deputados que estavam mais ligados ao Governo de Pedro Passos Coelho. Mas entendi-os como normais em democracia e a pouco e pouco penso que as dúvidas que poderiam existir sobre a minha intenção foram resolvidas. Ao fim destes quatro anos, concluo que as coisas terminaram bem. Portanto, para mim, foi um risco, mas foi também uma enorme satisfação e uma enorme honra ter sido presidente da Assembleia da República neste quadro”, afirmou.
Num breve balanço destes últimos quatro anos, no plano político-institucional, Ferro Rodrigues destacou “a centralidade do parlamento em vários momentos chave”.
“O chumbo do programa do [segundo] Governo de Pedro Passos Coelho, que entretanto tinha sido nomeado primeiro-ministro; e, em segundo lugar, quando foram reprovadas as moções de rejeição apresentadas pelo PSD e CDS contra o programa do Governo de António Costa. Depois, houve momentos muito importantes: os quatro orçamentos que foram aprovados”, apontou.
Ferro Rodrigues frisou que, pela primeira vez, esses orçamentos “tiveram de ter um voto positivo (não bastava abstenção) por parte de todos os partidos que estavam na esfera do Governo de António Costa [Bloco de Esquerda, PCP e PEV]”.
“Estes quatro anos têm também muitos aspetos positivos em coisas que são pouco visíveis, mas que têm muita importância, como o relacionamento institucional entre o presidente da Assembleia da República e o Presidente da República [Marcelo Rebelo de Sousa] e a capacidade que houve de ultrapassar as pequenas divergências que naturalmente podem existir. Um ambiente muito favorável que acabou com aquele momento final [dos trabalhos em plenário] que não estava não estava programado e que foi, para mim, motivo de orgulho ao ver algumas pessoas, inclusivamente nas bancadas do PSD – as pessoas mais renitentes com esta atual direção – levantarem-se e baterem-me palmas pela maneira como tinha exercido este mandato. E isso é muito reconfortante para quem começou com grandes dificuldades”, salientou.
Marcelo Rebelo de Sousa é "um grande Presidente" da República
O presidente da Assembleia da República afirma que Marcelo Rebelo de Sousa tem uma grande independência em relação a si próprio, o que faz dele "um grande Presidente" e que ele próprio faz questão de repetir que se as eleições fossem amanhã, "não teria dúvidas em quem votaria".
Na entrevista à agência Lusa, Eduardo Ferro Rodrigues afirma ainda não ver António Costa com perfil de Presidente e que, quanto a si, não quer sair da política para já.
"O Presidente da República atual não tem essa lógica de funcionamento de primeiro mandato e de segundo mandato", diz Ferro Rodrigues, para quem Marcelo Rebelo de Sousa tem desempenhado muito bem a sua função, e "é uma personalidade com um grau de independência em relação a ele próprio, às suas próprias convicções ideológicas, religiosas, que o torna, exatamente por essa independência, um grande Presidente da República".
Ferro Rodrigues elogia o bom relacionamento institucional, político e pessoal que foi construído entre ambos, "o não quer dizer que se desculpa tudo aquilo que pode haver negativo na sua personalidade, mas passa-se a reconhecer muita coisa muito importante do seu caráter e a sua maneira de ser".
Por tudo isto, o presidente da Assembleia da República e destacado dirigente socialista reafirma que não vê motivo para mudar a posição que anunciou há meses [que votaria em Marcelo Rebelo de Sousa] e que acha que essa orientação "corresponde ao sentimento maioritário no PS".
Questionado sobre se no futuro veria António Costa como Presidente, Eduardo Ferro Rodrigues considera que "as funções políticas têm muito que ver com a personalidade de cada um" e aponta os exemplos de Jorge Sampaio e de António Guterres.
"Sempre ouvi o doutor Jorge Sampaio (...) ter uma vontade clara de ser Presidente da República, sempre ouvi o engenheiro António Guterres dizer que nem pensar, porque era uma coisa chatíssima", diz, para sublinhar de seguida: "sobre António Costa, estaria mais tentado -- mas isso é uma especulação -- em achar que ele é mais parecido com António Guterres do que com o doutor Jorge Sampaio".
Sobre si próprio, Eduardo Rodrigues afirma que "tendo as coisas corrido bem até agora", não vê "motivo nenhum para sair [da política] sem mais nem menos".
O atual presidente da AR recorda o período em que esteve doente e, por isso, afastado da vida política e que não gostou "dessa pseudoliberdade que a saída da política dá".
Quanto à saída da política anunciada pelo seu amigo José António Vieira da Silva, limita-se a comentar que lamenta, mas "cada um sabe da sua vida".
Relativamente a Carlos César, que também anunciou que não se recandidataria, diz que recebeu a notícia com naturalidade e que tinha conhecimento dessa decisão há um ano, a qual lhe foi comunicada pelo próprio.
"Independentemente da intriga política, que faz parte da vida democrática e que muitas vezes é feita por aqueles que são mais ferristas que o Ferro, ou mais cesaristas que o César, não foi para mim uma surpresa", comenta, aludindo às notícias que o davam como desavindo com ainda presidente do grupo parlamentar do PS.
PS deve ter panóplia de alternativas da direita à esquerda para governar
O presidente da Assembleia da República considera que o PS não deve colocar a questão da maioria absoluta como tema central e espera que disponha de uma "panóplia de alternativas" da esquerda à direita para governar.
Nesta entrevista à agência Lusa, Ferro Rodrigues defende a importância para o sistema democrático resultante da atual solução política, com um Governo minoritário socialista suportado no parlamento pelo Bloco de Esquerda, PCP e PEV, mas não manifesta qualquer certeza sobre a possibilidade de esta mesma solução se poder repetir na próxima legislatura, fazendo tudo depender dos resultados das próximas eleições.
"O PS possivelmente estará em condições de ter uma panóplia de alternativas à sua disposição para poder governar, continuando a sua governação, como até agora, em diálogo e em trabalho conjunto. Os estudos de opinião, como agora se diz em linguagem politicamente correta, permitem antever que o PS poderá escolher parceiros, ou o parceiro, desde a direita até à esquerda. Isso é bom para o país e bom para o primeiro-ministro", António Costa, declarou.
Questionado sobre a possibilidade de o PS alcançar uma vitória com maioria absoluta nas próximas eleições legislativas, Ferro Rodrigues recusou-se a fazer o papel de analista político.
"Aquilo que sei é que todos os partidos, em última análise, vão querer ter maioria absoluta. O que seria anormal e um absurdo era os dirigentes do PS pedirem aos eleitores para não votarem no PS para não terem maioria absoluta", observou.
No entanto, no plano estratégico, o antigo líder socialista e ministro dos dois governos liderados por António Guterres deixou um recado à direção do seu partido.
"Acho que o PS não deve colocar essa questão [da maioria absoluta] como central na campanha, mas também não pode levar a que os eleitores do PS, que tenham gostado muito desta solução política, como é o meu caso, façam apelos para que não se vote no partido. Isso levado até o infinito e ao absurdo levaria a que ninguém votasse no PS", apontou.
Neste tema, o presidente da Assembleia da República sustentou que "a centralidade do parlamento", que considerou ter-se verificado a partir desta legislatura, teve uma consequência muito concreta, porque "significa que as maiorias, ou a maioria que se estabeleça na Assembleia da República, é aquela que é determinante para a formação de um próximo Governo".
O antigo líder do PS entre 2002 e 2004 advogou que, nesta legislatura, se quebrou "um tabu, segundo o qual só havia possibilidade de soluções ou de maioria absoluta de um partido ou de soluções que passassem por entendimentos com o centro e com a direita".
"Quebrou-se o tabu de que era impossível um entendimento do PS com outras forças de esquerda para durar uma legislatura. Isso também significa que alguns partidos deixaram de se considerar a si próprios como partidos meramente de protesto e passaram a considerar-se a si próprios como partidos que podem ter um protagonismo de Governo", referiu.
E, numa alusão indireta ao Bloco de Esquerda, PCP e PEV, Ferro Rodrigues colocou mesmo uma hipótese de evolução do sistema político português a médio ou longo prazo: "E imaginar daqui a 20 ou 30 anos que esses partidos podem estar com outros em vez de aliados com o PS", sugeriu.
"Portanto, o que se passou nesta legislatura foi uma novidade estratégica e estrutural no funcionamento do sistema político português, que permite atualmente muito mais soluções", insistiu.
Interrogado sobre a possibilidade de a presente solução de Governo se repetir nos mesmos moldes na próxima legislatura, o presidente da Assembleia da República deu uma resposta prudente.
"O que vai acontecer a partir de 06 de outubro só os eleitores é que podem determinar. Como é óbvio, todos os partidos querem ter mais votos do que tiveram. Querem ter o máximo de votos que for possível. Portanto, o que vai acontecer vai depender dos eleitores portugueses e a composição da Assembleia da República vai refletir esse voto dos portugueses", justificou.
"Não percebo que o corte dos ordenados dos membros do parlamento não tenha sido revertido"
O presidente da Assembleia da República considera que a reversão das medidas de austeridade devia ter abrangido os ordenados dos membros do Governo e do parlamento e que é fundamental que haja respeito mútuo entre cidadãos e políticos. Quanto a uma reforma do sistema eleitoral, defende-a desde sempre.
Sublinhando que não lhe compete tomar iniciativas parlamentares, Ferro Rodrigues sublinha numa entrevista à agência Lusa que não percebe que "uma medida como o corte nos ordenados dos membros do Governo e do parlamento de cinco por cento há uns anos atrás, não tenha sido revertida. E acrescenta: "o que está em causa neste momento já não é uma questão de equilíbrio relativo, mas uma questão de desequilíbrio relativo".
Segundo o presidente da AR, "muitas vezes esse tipo de medidas só acentua o desprestígio" dos membros da "dita classe política", termo que Ferro Rodrigues se recusa a usar: "não há classe política nenhuma, há cidadãos que são eleitos por outros e, portanto, todos fazemos parte da mesma classe, que são os cidadãos portugueses. Há uns que delegam funções em outros".
Neste contexto, Ferro Rodrigues minimiza a polémica das viagens e falsas presenças, considerando que "só abalaram o prestígio do parlamento para quem achava que era uma coisa nova". "Infelizmente" - reconhece - "era uma prática que já vinha continuadamente desde há 30 anos, o que aconteceu de novo nesta legislatura foi ter-se posto cobro a essa prática".
O presidente do parlamento sublinha, aliás, que "a nova legislatura vai entrar com regras de funcionamento completamente novas e com muito maior exigência para os deputados, grupos parlamentares e políticos em geral". Por isso, considera fundamental que também haja do outro lado uma "correspondência", que no seu entender "é o respeito com que os políticos democráticos eleitos pelos cidadãos, representantes dos partidos políticos ou dos grupos parlamentares, devem ser tratados".
Por outro lado, Ferro Rodrigues diz-se defensor de uma alteração ao sistema eleitoral, revendo-se na que foi proposta por António Costa no tempo do Governo de Guterres: "era uma reforma que conseguia manter a proporcionalidade, mas ao mesmo tempo aumentar a relação entre o eleitor e o seu deputado através de círculos uninominais, e depois com um circulo nacional de compensação".
Questionado sobre se era possível realizar uma reforma estrutural desse tipo, considera que não depende de uma maioria absoluta: "só com um consenso amplo que hoje em dia tem que contemplar as forças mais a direita, mas também as forças mais à esquerda".
"Uma mudança no sistema eleitoral foi abranger os resultados e as consequências, portanto, eleitorais durante dezenas de anos. Não é por acaso que nós temos esse sistema eleitoral desde o 25 de Abril", diz Ferro Rodrigues, explicando que existe muita resistência por parte de alguns partidos e grupos parlamentares em relação a uma mudança, com receio de que o princípio da proporcionalidade possa ser afetado.
E sublinha: "Qualquer proposta feita nesse âmbito tem de demonstrar que a proporcionalidade não vai ser afetada e até pode melhorar. Hoje em dia já temos situações absolutamente não proporcionais, como por exemplo o facto de em Portalegre apenas haver dois deputados eleitos".
*Luísa Meireles e Pedro Morais Fonseca (texto) e Tiago Petinga (fotos), da agência Lusa
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