“O curioso é que pela ação de circunstâncias, acasos e muita sorte o Brasil foi se viabilizando. Eu diria, e isto é uma tese do historiador Sérgio Buarque de Holanda, que quem realmente fez a Independência do Brasil foram os portugueses”, frisou Laurentino Gomes, autor do livro ‘bestseller’ "1822", relançado neste ano, no âmbito da comemoração do bicentenário da independência do Brasil.
“O Brasil não estava pronto para a independência, mas como as divergências em Portugal se tornaram tão grandes com a revolução liberal do Porto, a convocação das cortes constituintes e de uma guerra civil entre ‘miguelistas’ e ‘pedristas’ e dali [uma guerra entre] liberais e absolutistas, o Brasil acabou por ser obrigado a optar por uma via, pela independência, pela rutura total”, acrescentou.
O historiador brasileiro explicou que a sorte, uma série de circunstâncias, algumas insólitas, colaboraram para a formação do país unificado que se tornou o Brasil.
“O Brasil de 1821 e 1822 tinha muita chance de dar errado"
“O Brasil de 1821 e 1822 tinha muita chance [hipótese] de dar errado. D. João VI depois de voltar para Lisboa, em 1821, raspou os cofres públicos depois e levou os recursos embora. Então, o Brasil estava falido. A imensa maioria da população era pobre, analfabeta, escrava, vivia isoladamente no campo, sem as mínimas condições de se mobilizar para a luta da independência, embora isto depois tenha acontecido”, salientou.
O futuro país não tinha armas, não tinha Exército, não tinha marinha e estava cheio de divergências entre republicanos monarquistas, federalistas, centralistas, constitucionalistas e partidários de uma monarquia absoluta, ou seja, estava internamente dividido.
Portanto, Gomes avaliou que a hipótese maior na altura “era de o Brasil se fragmentar em três ou quatro Repúblicas independentes como aconteceu com a América espanhola. Foi a permanência da corte [no Brasil] e depois a sua continuidade com o D. Pedro I ou D. Pedro IV de Portugal, que manteve [o Brasil] um império unido”.
No livro “1822”, o historiador conta que a confusão interna foi superada pelo medo da elite rural escravocrata brasileira, que apoiou D. Pedro na declaração de independência ocorrida num episódio posteriormente mitificado para criar uma versão sobre a origem do Brasil ligada aos símbolos da tradição europeia heroica, que não é verdadeira, mas até hoje se mantém.
O episódio no Brasil chamado de “grito da Independência ou grito do Ipiranga” ocorreu em 07 de setembro de 1822, quando, numa viagem entre as cidades de Santos e São Paulo, D. Pedro, sofrendo de distúrbios intestinais, recebeu correspondências relatando o envio de soldados portugueses para a Baía a ameaças de prisão contra si em Portugal.
Na altura, o príncipe terá dito, num momento de raiva, que as cortes portuguesas o perseguiam, chamavam-no de rapazinho e de brasileiro, e portanto, estavam quebradas as relações do Brasil com a metrópole.
Portanto, a cena mítica do grito do Ipiranga de "independência ou morte" não ocorreu da maneira como é conhecida e a rutura concretizou-se devido a pressões em Portugal contra o futuro imperador brasileiro que viu o seu reinado apoiado pelas elites brasileiras conservadoras que o consideraram um mal menor, disse.
“Uma possibilidade que assustava muita elite brasileira era de uma guerra étnica, porque os escravos eram a maioria"
“Uma possibilidade que assustava muita elite brasileira era de uma guerra étnica, porque os escravos eram a maioria e se houvesse uma guerra republicana, eles [escravos] seriam mobilizados para uma guerra e estes escravos armados poderiam reivindicar direitos e trucidar os brancos, como aconteceu no Haiti em 1791 e 1792”, relatou o historiador.
“Então, diante dessa soma de medos, ou seja, do medo de uma guerra civil republicana ou de uma guerra étnica, a aristocracia agrária rural brasileira optou por uma rutura conservadora. Manteve o herdeiro de Portugal no trono brasileiro, não fez reforma agrária, não acabou com a escravidão, não alfabetizou as pessoas, não investiu em educação e isto levou ao Brasil que nós temos hoje”, completou.
Laurentino Gomes considerou que atualmente a figura de D. Pedro é vista pelos historiadores contemporâneos num ótica mais autoritária no Brasil, quase como um ditador que impôs a sua vontade, enquanto em Portugal ele é visto como um herói liberal, embora a sua história também desperte controvérsia naquele país.
“São visões diferentes. Acho que o D. Pedro I [ou D. Pedro IV em Portugal] é muito simbólico a respeito disso. Eu sinto que em Portugal, por exemplo, há uma sensação de orfandade, e o D. João VI é hoje vilipendiado e culpado por ter abandonado a metrópole e vindo para o Brasil porque ali começa o processo de independência. E começa o desmoronar do Império ultramarino de Portugal”, avaliou o historiador brasileiro.
“Sinto que há uma sensação de orfandade para os portugueses em relação ao Brasil"
“Sinto que há uma sensação de orfandade para os portugueses em relação ao Brasil. As divergências da época foram muito grandes. Houve uma campanha contra brasileiros em Portugal durante as cortes constituintes e uma campanha horrorosa contra os portugueses no Brasil no final do primeiro reinado. Houve um episódio traumático que foi a noite das garrafadas em que portugueses acusados de conspirar contra a independência brasileira foram perseguidos nas ruas e golpes de garrafas quebradas”, referiu.
Laurentino Gomes concluiu que um eco daquelas divergências “ainda permanece em manifestações de preconceito contra brasileiros em Portugal e contra portugueses no Brasil”, numa altura em que é preciso “construir pontes” e estar “mais próximos do que nunca”.
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