Que nos perdoe Svetlana Aleksievitch pela adaptação do título do seu monumental livro “O Fim do Homem Soviético”, mas não poderia ser de outra forma.
É que esta obra, uma das que elevou a escritora bielorrussa a Nobel da Literatura, trata exatamente o trauma do fim da União Soviética, que passou a ser sinónimo de Mikhail Gorbachev, o seu último dirigente.
Publicado em 2013, “O Fim do Homem Soviético” é um livro que, lido à luz do contexto atual, parece mais pertinente que nunca, especialmente pelas vozes entrevistadas que nele se insurgem contra a desintegração da União Soviética e anseiam por uma nova Rússia de novo elevada a superpotência.
O que vem representado no livro de Aleksievitch vimo-lo desde ontem à noite, quando foi noticiada a morte de Gorbachev: se provocou uma série de homenagens emotivas no Ocidente, a reação foi muito mais moderada — fria, hostil até — na Rússia.
Nascido em 1931, no seio de uma família modesta do sudoeste da Rússia, Gorbachev assumiu-se como o comunista modelo, subindo rapidamente na hierarquia do Partido Comunista até chegar à liderança da URSS, em 1985.
Até à sua renúncia, em 1991 — que marcou o fim do bloco — Gorbachev comandou importantes reformas democráticas, conhecidas como "Perestroika" (reestruturação) e "Glasnost" (transparência). Também ordenou o fim da desastrosa campanha militar soviética no Afeganistão e as suas ações contribuíram para a queda da "Cortina de Ferro", como era conhecida a antiga fronteira política e ideológica entre o oeste e o leste da Europa.
No entanto, com o intuito de modernizar a URSS, acabou por condená-la, dando combustível aos movimentos nacionalistas das várias repúblicas que compunham a União Soviética para se manifestarem e contestarem o poder central. Evitando agir com violência — disse, anos depois, que para não deixar cair uma potência nuclear em plena guerra civil —, viu-se impotente para contrariar a desagregação, que viria a oficializar-se um dia depois da sua demissão.
O seu legado, assim, caiu num binómio: para uns foi o homem que trouxe a democracia para a Rússia, que terminou a Guerra Fria de maneira pacífica (o que lhe valeu o Nobel da Paz em 1990), que tentou ser reformista sem ser destrutivo; para outros, foi o traidor ao ideal soviético, o homem que vendeu a Rússia para o caos do capitalismo de Ieltsin, nos anos 1990, e foi recompensado ao aparecer num anúncio da Pizza Hut, símbolo dessa abertura ao Ocidente.
Por isso mesmo, fora do país:
- O presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, chamou a Gorbachev um "líder excecional", que contribuiu para "um mundo mais seguro e uma maior liberdade para milhões de pessoas".
- Para o secretário-geral da ONU, António Guterres, Gorbachev "fez mais que qualquer outra pessoa para conseguir um final pacífico da Guerra Fria".
- O presidente francês, Emmanuel Macron, destacou-o como um "homem de paz";
- O primeiro-ministro italiano, Mario Draghi, elogiou a sua "oposição a uma visão imperialista da Rússia";
- O presidente alemão, Frank-Walter Steinmeier, agradeceu a "contribuição decisiva para a unidade da Alemanha", ao passo que para a ex-chanceler Angela Merkel, que cresceu na ex-Alemanha Oriental, Gorbachev mudou a sua vida "de maneira fundamental".
- Até a China, que o Kremlin apresenta atualmente como a sua grande aliada política e económica, elogiou a "contribuição positiva" do ex-dirigente soviético na aproximação entre Pequim e Moscovo.
Já na Rússia, as reações à sua morte foram bem mais moderadas. Numa mensagem de condolências, Vladimir Putin destacou um homem que "teve um grande impacto na história do mundo". "Guiou o nosso país num período de mudanças complexas e dramáticas, e de grandes desafios de política externa, económicos e sociais", destacou, dizendo ainda que “compreendeu profundamente que as reformas eram necessárias e esforçou-se para oferecer as suas próprias soluções para os nossos problemas urgentes".
A mensagem de Putin, mais formal que emocionada, foi mais simpática que a de Dmitry Peskov, porta-voz do Kremlin que acusou Gorbachev de se deixar levar por uma visão romântica do Ocidente quando abriu as portas do território. Entrevistados pela AFP, alguns russos foram ainda mais duros. Para Vladimir Zavkov, um reformado de 70 anos, Gorbachev não passa de "um traidor". "Ele era uma espécie de político analfabeto, que deixou um grande país desmoronar. Tudo o que ele fez de positivo foi anulado por isso", disse este moscovita.
Esta ambivalência nota-se particularmente no funeral, que acontecerá este sábado. Gorbachev será enterrado no cemitério Novodevichy e o velório será realizado no Salão das Colunas da Casa dos Sindicatos, um local reservado a personalidades proeminentes da sociedade russa, mas não se sabe se o funeral terá honras de Estado ou se Putin comparecerá no mesmo.
Após uma breve tentativa frustrada de voltar à política na década de 1990, Gorbachev passou a dedicar-se por completo a projetos educativos e humanitários, mas a sua relação com o regime nunca foi próxima, o que também pode ter peso.
Por um lado, o ex-dirigente soviético mostrou-se favorável à anexação da península ucraniana da Crimeia em 2014 por parte de Moscovo, o que provocou, em 2016, o veto à sua entrada na Ucrânia. Por outro, para Gorbachev, as relações com os novos líderes do Kremlin sempre foram complexas, seja com Boris Yeltsin, o seu grande inimigo, ou com Putin, a quem criticava mas que via como uma oportunidade para um desenvolvimento estável na Rússia.
Gorbachev não chegou a pronunciar-se publicamente sobre a ação militar russa na Ucrânia, mas a sua fundação pediu "o fim das hostilidades e o início imediato de negociações de paz". De resto, nas últimas duas décadas, o ex-dirigente expressou preocupação com o aumento das tensões com Washington, e defendeu a redução dos arsenais nucleares, como já havia feito nos anos 1980 com o presidente americano da época, Ronald Reagan.
Pleno de contradições, como todas as grandes figuras históricas, o mundo despede-se assim de Gorbachev e, com ele, de um bocado do século XX que se mantinha vivo junto do último líder soviético.
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