O que se passou?

O caso teve lugar no passado sábado, 30 de janeiro, quando uma manifestação convocada pelo Movimento do Protetorado Português da Lunda Tchokwe (MPPLT) foi reprimida pela polícia angolana na vila mineira de Cafunfo, na província angolana de Lunda-Norte, no nordeste do país.

As teses quanto ao que aconteceu dividem-se:

  • A polícia acusa 300 elementos do MPPLT de terem tentado invadir uma esquadra policial de Cafunfo para a ocupar e colocar uma bandeira num "ato de rebelião". As autoridades dizem que os manifestantes estavam armados com armas de fogo do tipo AKM, caçadeiras, ferros, paus e outras armas brancas, bem como pequenos engenhos explosivos artesanais.
  • O Presidente do MPPLT, José Mateus Zecamutchima, alega que as forças de segurança angolanas dispararam indiscriminadamente contra manifestantes desarmados quando estes se encontravam na rua e que não houve tentativa de invasão. Para além disso, o dirigente diz que o seu movimento tinha enviado antecipadamente uma carta ao governo provincial pedindo autorização para a manifestação, mas que os seus membros já vinham sendo alvo de perseguições e detenções desde dia 16 de janeiro.

Alguns ativistas cívicos da região, não ligados ao MPPLT, também contestaram a versão da polícia em declarações à Agência Lusa. 

"Toda a população do Cafunfo está fechada nas suas residências. A zona está militarizada e em estado de sítio", disse o ativista independente Jordan Muacabinza ainda a 30 de janeiro, acrescentando não ter visto "nenhum militante aqui armado".

Porquê em Cafunfo?

A manifestação foi marcada para assinalar o 127.º aniversário do reconhecimento internacional do tratado de protetorado português da Lunda.

O Movimento Protetorado da Lunda Tchokwe luta pela autonomia da região das Lundas, no Leste-Norte de Angola, baseando-se num Acordo de Protetorado celebrado entre nativos Lunda-Tchokwe e Portugal nos anos 1885 e 1894, que daria ao território um estatuto internacionalmente reconhecido.

Esse acordo que lhe dava uma condição independente, todavia, terá sido ignorado quando Portugal negociou a independência de Angola entre 1974/1975 apenas com os movimentos de libertação segundo o MPPLT.

O Estado angolano, porém, não reconhece as pretensões do MPPLT, defendendo a unidade territorial do país e contrariando as pulsões independentistas da região: situação similar ocorre em Cabinda, enclave a norte, rodeado pela República Democrática do Congo, cujos líderes locais há muitos anos defendem a independência, alegando uma história colonial autónoma de Luanda.

Para além da questão histórica e territorial, há também motivações de ordem económica para Angola querer manter estas duas regiões: as Lundas são ricas em diamantes, Cabinda é onde se encontram a maior parte das reservas petrolíferas do país.

Angola
Vista aérea das minas de diamantes na província da Lunda Norte, Angola, 20 de outubro de 2018. créditos: AMPE ROGÉRIO/LUSA

Qual é o balanço dos confrontos?

Também aqui os números são distintos consoante as versões adiantadas.

Num primeiro balanço, a polícia angolana falou em quatro vítimas mortais e outras cinco pessoas feridas durante a tentativa de dispersão, tendo também dois oficiais ficado feridos. Mais tarde, as autoridades atualizaram o número oficial de mortos para sete, adiantando que foram detidas 16 pessoas, entre as quais três cidadãos da República Democrática do Congo. Segundo a agência de notícias angolana ANGOP, os "processos-crime estão em preparação e serão remetidos ao Ministério Público".

O MPPLT, porém, logo no dia 30, acusou as autoridades de terem causado 15 mortos e dez feridos, entre os quais uma criança, ao terem disparado indiscriminadamente contra a multidão. Posteriormente, o movimento adiantou ainda que uma das vítimas mortais foi o filho de um secretário regional da organização, mas ressalvou que este número de mortos não é o definitivo, uma vez que ainda há muitos desaparecidos e foragidos, nomeadamente pessoas que fugiram para as matas.

Entre estes dois balanços, há observadores independentes a situar o número de mortos algures no meio. A organização não-governamental Amnistia Internacional (AI) confirmou ontem a morte de pelo menos 10 pessoas, ao passo que a ONG angolana OMUNGA situou esse valor em 12 óbitos.

Que desenvolvimentos houve desde então?

A rádio Voz da América noticiou ontem que têm sido apresentadas denúncias por parte de familiares das vítimas de corpos atirados ao rio Cuango para ocultar o número real dos manifestantes mortos pelas autoridades. Os corpos terão sido retirados das casas mortuárias durante a noite, segundo este meio de comunicação, que cita o presidente do MPPTL, José Mateus Zecamutchima.

Para além deste caso, o movimento atribuiu novamente total responsabilidade pela violência às "autoridades do Governo, sobretudo da Polícia Nacional" e, num comunicado publicado no Facebook, disse ter recebido uma denúncia sobre no passado dia 26 quanto a um "plano das autoridades competentes de inviabilizar a manifestação do dia 30".

Este plano, indicou o MPPTL, passou por juntar um "grupo de manifestantes afetos" à Juventude do Movimento Popular de Libertação de Angola, o partido do Governo, e de outros "meliantes", que terão sido pagos para "criar vandalismo" a ser imputado aos ativistas do protetorado português da Lunda Tchokwe detidos no dia da manifestação.

A conspiração passou ainda por "preparar catanas e machados, rasgar a bandeira da República e arranjar notas de Kwanza falsas, com camisolas do Movimento em posse da Polícia do Cuango, que havia extraído em 2015, para aqueles que forem detidos serem acusados como provas do crime na manifestação".

Tudo isto para perturbar uma manifestação que, segundo o movimento, procurava apenas exprimir a vontade dos participantes em ver "os problemas das suas comunidades resolvidos e lamentar a falta de humanismo, que deveria caracterizar os agentes da autoridade do Estado".

O movimento quis ainda exortar a comunidade nacional e internacional a levar em conta "o problema dos assassinados de Cafunfo" que "são de longa data, protagonizados na sua maior parte pelos agentes da ordem e pelos agentes de seguranças de empresas mineiras".

Amnistia Internacional Portugal

E o que dizem as ONGs a acompanhar o caso?

Parecem dar razão às queixas do MPPTL. A representante da Human Rights Watch (HRW) para Angola disse à agência Lusa haver indícios "claros" de abusos policiais na resposta à manifestação de sábado, apesar de ainda estar a tentar estabelecer o que realmente aconteceu em Cafunfo.

Zenaida Machado adiantou que, pelas informações que recolheu, há um número ainda indeterminado de mortos superior ao avançado pela polícia, resultantes de uma manifestação "tida como pacífica", mas que terá sido infiltrada "por índivíduos estranhos" ao MPPLT.

"As imagens que obtivemos dos momentos após o tiroteio que resultou num número não identificado de pessoas mortas mostram algumas irregularidades no comportamento da polícia", disse.

De acordo com a responsável da HRW, estas imagens contradizem a versão oficial que aponta para uma tentativa de invasão à esquadra do Cafunfo às primeiras horas da manhã, que terá sido imediatamente controlada e detidas várias pessoas.

"As imagens que estamos a receber mostram o contrário. Pessoas ainda deitadas no chão, o número de imobilizados é muito superior ao número de mortos que a polícia diz e vê-se claramente um membro das forças de defesa e segurança de Angola, que se pressupõe seja o líder do grupo que estava a controlar a manifestação, a abusar de alguém que não representava nenhum perigo", relatou

De acordo com Zenaida Machado, a informação e o material que a HRW tem estado a receber revela que "há claramente um excesso de força por parte das forças de defesa e segurança e há também uma forma irregular de tratar pessoas que não demonstram nenhum perigo no momento em que estão a ser detidas".

A mesma tese foi adiantada pelo o diretor-executivo da organização não-governamental angolana OMUNGA, João Malavindele, que fala num vídeo que circula nas redes sociais filmado em 30 de janeiro que mostra vários corpos no chão, enquanto um polícia pontapeia e pisa a cabeça de uma vítima gravemente ferida.

"As autoridades angolanas devem lançar uma investigação rápida, exaustiva, independente, eficaz e transparente sobre os assassínios e levar os suspeitos à justiça em julgamentos justos que satisfaçam os padrões internacionais. As vítimas e as suas famílias devem ter acesso à justiça e a vias de recurso eficazes", acrescentou João Malavindele.

Já a Amnistia Internacional, por exemplo, pela voz da sua diretora-adjunta para a África Austral, Muleya Mwananyanda, alertou que "as autoridades continuam a perseguir manifestantes pacíficos cujo único crime tem sido contestar as condições de vida deploráveis" na província.

A ONG Friends of Angola, por seu lado, exigiu que as autoridades angolanas abram um inquérito para levar à justiça os responsáveis pela violação dos direitos humanos e liberdade de expressão, de manifestantes na província da Lunda Norte.

"Esperamos também que o Presidente (João) Lourenço abrace os valores democráticos, respeitando a liberdade de reunião e expressão dos cidadãos angolanos", refere-se no comunicado.

Que outras reações houve?

Para além das denúncias das ONGs, desde sábado que se têm vindo a somar várias reações por parte dos partidos políticos angolanos e também das instâncias religiosas.

O principal partido da oposição angolana, o União Nacional para a Independência Total de Angola (UNITA) e a coligação Colégio Presidencial da Convergência Ampla de Salvação de Angola – Coligação Eleitoral (CASA-CE) condenaram os incidentes, tal como Partido de Renovação Social (PRS).

Num comunicado divulgado no sábado à noite, o Secretariado Executivo do Comité Permanente da UNITA condenou "com veemência o ato bárbaro perpetrado por agentes das forças de defesa e segurança, contra populações indefesas, que procuravam apenas exprimir a sua vontade de ver os problemas das suas comunidades resolvidos".

No mesmo documento, a UNITA manifesta perplexidade face ao conteúdo do comunicado emitido pelo Comando da Polícia Nacional na Lunda Norte, cujas informações foram "desmentidas no terreno" e, face à gravidade dos factos, insta a Assembleia Nacional de Angola a criar, com caráter de urgência, uma Comissão Parlamentar de Inquérito, exigindo ao Presidente da República a tomada de uma posição perante o ocorrido.

Também o CASA-CE, terceira força parlamentar angolana, reagiu com "incontida preocupação" às denúncias de buscas e assassinatos de vários ativistas da Lunda Norte.

A CASA-CE destacou a "gravidade das denúncias, suportados por conteúdos audiovisuais, que reportam episódios de autêntica selvajaria à moda primitiva" com cidadãos "gravemente feridos" expostos a humilhação e carentes de assistência médica, sob custódia de agentes da Polícia Nacional e das Forças Armadas Angolanas.

A CASA-CE instou as autoridades angolanas a instaurar um inquérito no sentido de apurar a verdade das denúncias e, caso se confirmem, responsabilizar civil e criminalmente os seus autores, apelando ainda ao poder legislativo para agendar "com caráter de urgência, o debate parlamentar sobre o exercício dos direitos de cidadania em Angola" e encoraja o povo Lunda a manter a serenidade.

O PRS, por sua vez, exigiu às autoridades angolanas explicações concretas sobre "tamanha brutalidade contra manifestantes". O seu líder deste partido com forte representação nas províncias das Lundas Norte e Sul, disse que "Angola tem problemas de separação estrutural e de exclusão, que têm de ser resolvidos com urgência".

"Estamos chocados e indignados com as mortes e detenções dos manifestantes, assim como com o uso excessivo de força utilizada pelas forças armadas e Polícia Nacional para repelir uma manifestação de cidadãos indefesos", referiu Benedito Daniel.

O líder do PRS disse estar igualmente surpreendido com "a habilidade" da polícia na justificação dos "assassínios, com o massacre perpetrado". "O que aconteceu no sábado foi uma tortura e assassínio de jovens angolanos por cidadãos angolanos que estavam em cumprimento de ordens superiores, pois a caça aos proponentes da manifestação começou dias antes. Independentemente das reivindicações dos incautos, nada justifica a sua morte, pelo contrário, o executivo precisava criar condições de dialogar com os contestatários", disse.

Para além dos partidos políticos, também a Igreja Católica angolana alertou para um "grave massacre", tendo vários bispos católicos angolanos que integram a Conferência Episcopal de Angola e São Tomé (CEAST) condenado através das redes sociais as mortes dos manifestantes pela polícia.

Por exemplo, o arcebispo de Saurimo, José Manuel Imbamba, que já foi o bispo da diocese onde se localiza Cafunfo, escreveu na rede social Facebook um "desabafo em voz alta", lamentando o sangue "derramado inutilmente" e questionando se havia necessidade para "tanta violência e desumanidade".

"Os problemas sociais, de miséria, exclusão e analfabetismo são mais do que evidentes nesta região leste. Em vez da política dos músculos, não seria mais sensato cultivarmos a política do diálogo para juntos resolvermos e venceríamos as assimetrias sociais gritantes tão notórias?", questionou.

O também vice-presidente da CEAST e responsável pela província eclesiástica que tutela a diocese do Dundo diz estar "profundamente chocado e consternado" com o sucedido, esperando que a investigação seja "vigorosa e responsabilize os que agiram mal".

Paulo de Almeida
Paulo de Almeida, comandante geral da polícia nacional. Luanda, Angola, 13 de novembro de 2018. créditos: AMPE ROGÉRIO/LUSA

O que fez o Estado angolano?

No domingo, a 31 de janeiro, a Polícia Nacional angolana informou que o seu comandante-geral, Paulo de Almeida, se deslocou a Cafunfo para levar a cabo uma “comissão de inquérito”.

De acordo com a ANGOP, tomando a versão da polícia, o comandante-geral fez a viagem para trabalhar com o Comando Municipal e assim "se inteirar das reais motivações da rebelião e as consequências" de tal ato.

O mesmo, porém, afirmou na terça-feira, dia 2 de fevereiro, que pelo lado das autoridades não está a decorrer nenhum inquérito, apenas o processo-crime que foi aberto. "Vou inquirir o quê? Eu não fui lá [Cafunfo] para fazer inquérito, fui lá para constatar a situação que ocorreu. Há um processo-crime que está a correr os seus trâmites legais, é aí e ponto final, não há inquérito. Se algumas organizações querem fazer isso já é um outro assunto, connosco não há inquérito, [que] fique bem claro", Paulo de Almeida. 

O comandante-geral defendeu também a ação da polícia, ainda que desproporcional face aos protestos. Paulo de Almeida avisou que "aqueles que tentarem invadir as esquadras ou qualquer outra instituição para tomada de poder, vão ter resposta pronta, eficiente e desproporcional da Polícia Nacional".

"Você está a atacar o Estado angolano com faca, ele responde-te com pistola, se você estiver a atacar com pistola ele responde com AKM, se você estiver a atacar com AKM, ele responde com bazuca, se você estiver a atacar com bazuca, ele responde com míssil, seja terra a terra, terra-mar ou ainda que for um intercontinental, vai dar a volta depois vai atacar", referiu.

Entretanto, o ministro do Interior, Eugénio Laborinho, não só elogiou a ação da polícia, como anunciou que o presidente do MPPTL, José Mateus Zecamutchima, foi indiciado pela justiça angolana. 

"Não é possível estar num posto a fazer a guarnição e aparecer um grupo armado e atacar o posto. Eu sou o garante da ordem, o que é que vou fazer? Tenho que responder. Se estão a atirar contra mim, com catanas e armas, a resposta é igual e a proporção diferente", disse Eugénio Laborinho.

Eugénio Laborinho
O ministro do Interior angolano, Eugénio Laborinho. Luanda, Angola, 25 de junho de 2020. créditos: AMPE ROGÉRIO/LUSA

O titular da pasta do Interior de Angola lamentou a atitude dos atacantes, reforçando que não havia outra hipótese "se não manter a segurança pública e a ordem no território".

"A autoridade do Estado tem que ser mantida a todo o custo. Nós apelamos mais uma vez que entendam, compreendam, que a atitude de resposta da polícia foi de acordo à situação surgida no momento", sublinhou.

Segundo o ministro, "o grupo de rebeldes" não está autorizado por lei a fazer qualquer manifestação, admitindo que no dia 16 de janeiro, num dia de semana, os mesmos pretenderam realizar uma manifestação contra o governo provincial, mas foram impedidos.

"Já tínhamos domínio [noção] do que este movimento queria fazer e [que] ia dar uma situação fora do normal, uma vez que eles não tinham sido autorizados", disse.

De acordo com Eugénio Laborinho, o líder do movimento foi indiciado porque as pessoas envolvidas no processo-crime aberto, na sequência do incidente, já o acusaram "e a justiça vai tratar dele".

"Ele vai justificar por que razão insiste em criar situações de embaraço na região leste, nomeadamente na província da Lunda Norte, quais são os objetivos, quem está por detrás disso e o que é que lhe vai na alma, para se justificar", referiu. "Temos provas materiais, e a outra são os intentos, os objetivos desta rebelião. Os processos estão aí, vocês vão ter a oportunidade de ver", disse ainda.

Ainda não houve, porém, à data qualquer reação por parte do Presidente de Angola, João Lourenço, nem do partido de Governo, o MPLA.