O presidente da República pediu uma solução nacional para os sem-abrigo até 2023 e o vereador Manuel Grilo (BE) tem a ambição de tirar das ruas de Lisboa as pessoas sem-teto até 2021, segundo o “Plano Municipal Para a Pessoa em Situação de Sem-Abrigo 2019/2021″, que ainda não está em vigor, prevendo um investimento de 4,3 milhões de euros para as várias vertentes de apoio.

Em Lisboa há mais de dois mil sem-abrigo, de acordo com a mais recente contagem, dos quais 361 pessoas vivem sem-teto, nas ruas. Os restantes “estão em abrigos ou em quartos, mas que, na verdade, não têm casa própria, não têm onde estar e um sítio a que possam chamar casa”, salientou Manuel Grilo.

“No plano municipal, elegemos 2021 como o ano para retirar as 361 pessoas da rua através de proposta. É evidente que haverá alguns que provavelmente não aceitarão as propostas que teremos para fazer, mas nós queremos ter disponíveis propostas para as 361 pessoas. É verdade que há muita gente a sair da rua já. É verdade que há muita gente a chegar à rua também, mas nós queremos encontrar metodologias que nos permitam encontrar soluções para todos, sem deixar ninguém para trás”, disse.

Uma das principais apostas da autarquia é o programa “Housing First”, ou Casas Primeiro, considerado “um modelo por excelência para a integração” destas pessoas “numa casa, num prédio, na convivência com vizinhos, num bairro, num centro de saúde, como um cidadão de plenos direitos e deveres”, afirmou.

Neste caso, o sem-abrigo que vive na rua é desafiado a aceitar viver numa casa e, caso o aceite, há associações que vão acompanhar o seu caso particular e desenvolver com ele um projeto.

“É uma metodologia que inverteu o passado, tudo aquilo que era dado como adquirido, que era uma estratégia em escada. A pessoa tinha que merecer para passar para o estágio seguinte. Aqui é exatamente ao contrário. Partimos da casa e depois da casa vem tudo o resto e vem tudo o resto com propostas que são feitas às pessoas respeitando-as, respeitando a sua individualidade, percebendo que cada pessoa é uma pessoa e cada pessoa reage de forma diferente”, explicou.

Atualmente há 80 casas distribuídas para este conceito, mas a autarquia vai reforçar o programa e na semana passada foram aprovadas mais de 100 habitações por “unanimidade de todas as forças políticas”.

O “Housing First” faz parte de um dispositivo articulado na resposta a sem-abrigo coordenado pelo Núcleo de Planeamento e Intervenção Sem-Abrigo (NPISA) de Lisboa que inclui programas de apoio alimentar, de acolhimento de emergência, equipas técnicas de rua e outras respostas, como os quartos em articulação com a Santa Casa da Misericórdia ou com a Segurança Social.

Quem vive na rua?

Nas ruas, são 31 as instituições que ajudam as pessoas sem-teto, principalmente ao nível de distribuição de refeições, roupa, produtos de higiene e de assistência médica.

As pessoas que vivem nas ruas de Lisboa são sobretudo do sexo masculino (89%), mas existem 10% de mulheres e 1% de outros géneros.

Mais de metade (57,62%) são acompanhadas por problemas mentais ou dependências.

Quanto à distribuição, 38,7% vive nas ruas da zona histórica de Lisboa, 26,6% na zona centro, 19,8% na zona ocidental e 10,3% na zona oriental.

Setenta por cento dessas pessoas tem nacionalidade portuguesa, 11,4% são cidadãos de outros países da Europa e 9,3% originários de países africanos de língua oficial portuguesa.

"Sei lá, às vezes podia aparecer um maluco qualquer, não é?"

Sónia e Paulo moraram mais de 10 anos em ruas de Lisboa, mas hoje vivem em casas do projeto "Housing First".

A primeira vez que uma equipa de apoio a sem-abrigo chegou ao pé de Sónia e lhe disse que tinha uma casa para ela, a mulher, a viver há 10 anos numa rua junto ao Bairro Alto, não acreditou.

"Sei lá, às vezes podia aparecer um maluco qualquer, não é?", disse.

Mas não foi o caso e há nove anos que tem uma casa só para si, com o acompanhamento da AEIPS -- Associação para o Estudo e Integração Psicossocial, que desenvolve aquele projeto desde 2009.

As casas estão dispersas pela cidade, são individuais, em bairros onde existem serviços, comércio, transportes e onde seja mais fácil as pessoas estabelecerem relações de vizinhança.

Inês Almas, a técnica que acompanha Sónia, revela que a associação apoia 50 pessoas em situação de doença mental, que saíram das ruas para uma casa e que estão a ser acompanhadas, no processo de integração, a aceder a coisas tão básicas como ter documentos.

A integração da pessoa "passa por conhecer tudo o que a envolve", de forma individualizada, como avaliar "se para ela é fácil abrir e fechar a porta", usar eletrodomésticos, fazer compras, escolher produtos, confecionar refeições, utilizar e gerir dinheiro, explicou.

"Obviamente que as necessidades vão sendo diferentes à medida que o tempo vai passando", disse.

Aos 10 anos, após a morte da mãe, Sónia foi entregue pelas autoridades ao progenitor, que considerava um estranho, e a vida com a nova família foi de fome, espancamentos, abusos e abandono.

"Quando a minha mãe faleceu, souberam, o Estado, vir ter comigo para eu ir viver com o tal [o pai], mas nunca foram à minha procura, saber se eu ainda continuava na casa de meu pai, se estava tudo bem comigo. (...) Nunca ninguém procurou por mim. Vivi abandonada até aos 28 anos. Foi esta equipa que me deu abrigo, porque, senão, ainda lá estaria", disse.

Sónia Varela, nascida no Hospital de São Francisco Xavier há 36 anos, foi "posta na rua" quando tinha apenas 13, vinha ela cansada de "um dia de trabalho" nas limpezas. Nessa noite, dormiu numa paragem de autocarro "atrás da 'Triunfo'", em Algés.

Hoje, considera "uma bênção de Deus" ter sido expulsa da casa paterna, porque "aquele homem ainda a matava", e salienta que, na zona do Bairro Alto, para onde foi a duas semanas dos 18 anos, "passava todo o tipo de gente de madrugada", mas, ao contrário do que acontecia em casa, "nunca levou um pontapé".

A adaptação a viver de novo numa casa é que "foi mais complicada".

"Os olhos, nos primeiros dias, não queriam abrir, (...) não tinha muita mobilidade, não me conseguia movimentar como deve ser porque fiquei quente. Aquilo que eu vivia, o frio do inverno, os ventos... [e depois] dormir agasalhada durante uma semana, duas... É diferente. Hoje é diferente. Para quem não conhece, é difícil explicar", contou.

Junto à janela da sua casa, que, apesar do dia rigoroso, mantém aberta para um pátio, explica que agora faz uma vida normal, como qualquer outra pessoa e até gostava de fazer muito mais, mas não tem habilitações para nada, a não ser "fazer umas limpezas", mas tem "o corpo acabado", quase não consegue andar.

"E depois lá veio o mundo da rua, os vícios, os consumos e a solidão"

A 15 minutos de carro dali, Luís Paulo Neves, 54 anos, 14 deles na rua, mostra, orgulhoso, a casa onde mora há três anos.

Trabalhou "como qualquer outra pessoa", foi chefe de família, "e depois lá veio o mundo da rua, os vícios, os consumos e a solidão", as doenças, o afastamento "de tudo e de todos", o dia a dia "sem interesse por nada".

"Há certas situações que eu também não gosto de mencionar, mas foi muito difícil. Nos últimos quatro anos é que eu tive um bocado de luz ao fundo do túnel", afirmou.

Quando a Associação Crescer, que acompanha 36 pessoas, lhe disse que tinham uma casa para lhe atribuir, "andava sempre a perguntar, para saber se já estava pronta".

"Gostei muito logo à primeira vista da casa, da vista dela, de tudo o que ela representa. Gostei imenso. Já me deram a oportunidade de querer ir para outra casa, mudar de sítio, mas eu não quero. Aqui estou bem, dou-me bem com a vizinhança", sublinhou.

Hoje tenta "reconstruir tudo o que tinha perdido", mas "as coisas levam o seu tempo": tratar de documentação, da saúde, do cuidado com a sua casa e com o Nazareno, o canário cantor que lhe faz companhia.

Depois de instalada, a primeira coisa que a equipa faz com a pessoa é inscrevê-la no Centro de Saúde e pedir à Junta de Freguesia os mesmos apoios de qualquer caso de pobreza, explica Américo Nave, diretor executivo da associação, salientando que o programa é sobretudo para as pessoas com maior vulnerabilidade, numa situação "mais complexa", que são integradas na comunidade, "em casas onde não há qualquer identificação", o que "reduz imenso o estigma" e "conta muito para a recuperação".

"É um mito que as pessoas não querem sair da rua, é um mito que estas pessoas são preguiçosas e não querem trabalhar"

"É um mito que as pessoas não querem sair da rua, é um mito que estas pessoas são preguiçosas e não querem trabalhar e é um mito que todas estas pessoas tem um problema de saúde mental. Eu até acho que é dar um pontapé na cabeça a alguém que acabou de cair. Porque alguém que ficou sem casa, ficou sem emprego e veio parar à rua, ainda por cima leva logo com o estigma de que é maluco e tem um problema de saúde mental", considerou.

O sucesso do programa "é que 90% não voltem à situação de sem-abrigo", não é medido pela taxa de empregabilidade, até porque a maior parte já não consegue ou não tem idade para entrar no mercado de trabalho.

Luís Paulo Neves, que foi pintor de casas, é o exemplo disso. Agora não consegue fazer esforços, nem "correr para apanhar um autocarro", diz, enquanto se encosta ao balcão da cozinha, ao lado da bicicleta com os pneus "em baixo", à espera de melhores dias.