Nove unidades de sangue foi a quantidade necessária para manter Rita viva. Tinha vários miomas no útero, perdeu sangue e acabou com uma anemia severa, que nem a medicação foi capaz de debelar. A notícia chegou quando foi ao hospital e teve de ficar internada.

"O médico disse-me que precisava de sangue, fiquei assustadíssima. Depois, explicou-me que precisava de uma intervenção cirúrgica, mas que para fazer a operação teria primeiro de tratar a anemia", conta.

E foi aí que tudo mudou, quando familiares, amigos e colegas de trabalho se voluntariaram para dar sangue. "Um verdadeiro ato de amor. Só quem passa por isso, pela necessidade de receber sangue para salvar a vida, percebe a importância de dar sangue".

Vários dias de internamento e diversas transfusões de sangue depois, chegou finalmente o dia da cirurgia, que "correu muito bem". Rita está hoje completamente recuperada e do susto restam apenas as cicatrizes, que "marcam no corpo o amor à vida".

Há 376.653 dadores de sangue inscritos em Portugal, mas em 2023 foram 205.355 os dadores efetivos, quase 33 mil deram sangue pela primeira vez, segundo o Relatório de Atividade Transfusional e Sistema Português de Hemovigilância mais recente. Olhando para os últimos dez anos, o número de dadores e de dádivas continua a ser inferior a 2014.

Direitos e deveres dos dadores de sangue

Todas as pessoas podem dar sangue?

Todas as pessoas que tenham mais de 18 anos de idade (ou 17 anos mediante consentimento dos pais); 50kg de peso e estilos e hábitos de vida saudáveis. Antes da dádiva de sangue é realizada uma avaliação clínica (triagem) por um profissional de saúde qualificado para avaliar o risco. Se não forem identificadas situações que possam pôr em causa a sua segurança, enquanto dador, e a segurança do receptor, enquanto doente, poderá dar sangue.

Estou a tomar medicamentos. Posso dar sangue?

Depende. Há medicamentos que podem levar à suspensão temporária ou definitiva da possibilidade de dar sangue. Receitados pelo médico ou não, o nome dos medicamentos devem ser comunicados ao profissional de saúde.

Tive anemia. Posso dar sangue?

Deve consultar um profissional de saúde. A causa da anemia deve ser avaliada e confirmada a normalização do valor da hemoglobina. É aconselhável a avaliação das reservas de ferro após a terapêutica.

A obesidade é impeditiva para dar sangue?

A obesidade por si só não contra-indica a dádiva de sangue, desde que não esteja associada a doenças crónicas como diabetes, hipertensão ou doenças cardiovasculares, entre outras.

Fumo "um charro" de vez em quando. Posso dar sangue?

O consumo de droga requer uma avaliação clínica pelo profissional de saúde qualificado sobre a frequência do consumo e a forma de administração, pelo que deverá sempre referir esta situação no âmbito da triagem cínica.

Posso transmitir COVID-19 ao dar sangue?

Não há evidência científica de que a COVID-19 seja transmitida pela transfusão, podendo contudo haver um risco teórico de transmissibilidade. Os serviços de sangue têm implementados critérios de elegibilidade para os dadores de sangue face a contactos de risco ou de doença COVID-19. Está também implementado um procedimento de vigilância, a informação pós dádiva, através do qual os dadores são informados de que devem contactar o serviço de sangue após a dádiva em caso de doença nos sete dias seguintes à dádiva.

Tive um aborto/interrupção da gravidez. Poderei dar sangue?

Uma interrupção de gravidez tem associado um período de suspensão de seis meses.

Tive epilepsia. Posso ser dador de sangue?

A epilepsia contra-indica a dádiva de sangue. Se convulsão durante a infância, ou decorridos pelo menos três anos desde a última data em que a pessoa candidata à dádiva tomou medicação anticonvulsiva e sem recidiva de convulsões, poderá candidatar-se à dádiva de sangue.

Tenho uma tatuagem. Posso dar sangue?

Pode candidatar-se à dádiva de sangue quatro meses depois da realização da tatuagem. As pinturas, stencilling e uso de transfers não contra-indicam a dádiva de sangue. A mesma coisa em relação à colocação de piercings.

Tenho mais de 65 anos de idade. Posso dar sangue?

As pessoas com mais de 65 anos poderão candidatar-se à dádiva de sangue sendo a sua elegibilidade para a dádiva um critério do médico do serviço de sangue.

Tenho fibromialgia. Posso dar sangue?

A fibromialgia é uma síndroma dolorosa não inflamatória caracterizada por dores musculares difusas, fadiga, parestesias e distúrbios do sono. Se a medicação não contra-indicar a dádiva de sangue, e se a pessoa se sentir bem, poderá candidatar-se à dádiva de sangue.

Deixam-me dar sangue se tiver a tensão elevada?

A tensão arterial elevada é um factor de risco para a doença cardiovascular e a existência de doença pode condicionar a resposta do coração à dádiva de sangue. As pessoas hipertensas podem ser admitidas desde que não estejam em estudo e apresentem uma hipertensão controlada (sem compromisso cardíaco, renal e patologia arterial periférica). A medicação com anti-hipertensores não é impeditiva, desde que a pessoa candidata à dádiva de sangue cumpra os requisitos recomendados.

E se for diabético?

As pessoas com diabetes tipo 1 não podem dar sangue. As pessoas com diabetes tipo 2 poderão candidatar-se à dádiva de sangue, se apresentarem: controlo glicémico adequado com dieta; medicação oral ou medicação injetável, que não a insulina; sem alteração do tipo e da dosagem dos antidiabéticos (orais e injetáveis que não a insulina) nas últimas quatro semanas; sem antecedentes recentes de hipotensão postural ou tonturas.

Será a minha profissão de risco? Posso dar sangue?

A exposição a eventos ou situações que aumentem o risco de aquisição de doença infecciosa pode ocorrer em qualquer altura da vida. A procura de informação pelo profissional de saúde qualificado sobre passatempos, profissão, actividades de jardinagem, contactos próximos com animais domésticos e selvagens são fundamentais na avaliação individual da exposição ao risco.

São necessários cuidados especiais após a dádiva?

Na dádiva são colhidos aproximadamente 450 ml de sangue (+/- 10%). A reposição das proteínas e células sanguíneas é efetuada pelo organismo. O reforço de ingestão de líquidos (água) antes e depois da dádiva é muito importante para que a reposição do volume. Poderá voltar à sua ocupação normal, contudo, estão identificadas algumas actividades que requerem uma atenção particular: paraquedistas, condutores de transportes públicos e veículos pesados, mergulhadores, escaladores, trabalhadores em andaimes e instalações eléctricas e mineiros devem aguardar um período mínimo de 12 horas para reiniciar a actividade; pilotos de aviação devem aguardar entre 24 e 72 horas para reiniciar a actividade. Aconselha-se o repouso de seis horas após a dádiva antes de uma viagem superior a 100 Km a conduzir.

Recebi uma transfusão. Posso dar sangue?

Se recebeu uma transfusão de sangue após 1980 não se pode candidatar à dádiva de sangue. A implementação deste critério de suspensão surge na sequência do risco de transmissão secundária de uma variante da Doença de Creutzfeldt-Jakob (vCJD), também designada por doença das vacas loucas, por transfusão. Se recebeu uma transfusão antes de 1980 poderá candidatar-se à dádiva de sangue.

Quando sou considerado "Pessoa Dadora de sangue"?

Pessoa dadora de sangue é toda a pessoa que depois de aceite clinicamente doa, benevolamente e de forma voluntária, parte do seu sangue para fins terapêuticos. À pessoa dadora de sangue é atribuído um Cartão Nacional de Pessoa dadora de sangue após a realização da primeira dádiva efetiva de sangue. O Cartão Nacional de Dador não é emitido a pedido da Pessoa Dadora, mas sim do serviço responsável pela colheita de sangue.

Quais os meus direitos enquanto Pessoa Dadora de sangue?

A pessoa que dá sangue tem direito à salvaguarda da sua integridade física e mental; à informação sobre todos os aspetos relevantes relacionados com a dádiva de sangue; à confidencialidade dos dados; ao reconhecimento público; a não ser objecto de discriminação; à isenção das taxas moderadoras no acesso à prestação de cuidados de saúde do Serviço Nacional de Saúde (SNS), nos termos da legislação em vigor; ao seguro do dador; à acessibilidade gratuita ao estacionamento nos estabelecimentos do SNS, aquando da dádiva de sangue e a ausentar-se das suas atividades profissionais pelo período de tempo necessário para a dádiva de sangue.

"Temos menos dadores do que gostaríamos. Lisboa é o maior consumidor, mas está longe de ser o maior contribuinte. O norte e centro tem mais dadores do que o sul - Douro e Minho, Porto, Aveiro até Leiria são os grandes fornecedores do país -, a província tem mais dadores do que as grandes cidades, onde não há tanto espírito gregário. E há duas alturas do ano muito difíceis, Natal e Ano Novo", afirma o diretor do Serviço de Sangue do Hospital de Santa Maria, Álvaro Beleza.

18 anos: votar, tirar a carta e condução e... dar sangue

A diminuição do número de dádivas tem várias causas, a começar pelo envelhecimento da população de dadores, com um aumento proporcional nos grupos etários entre os 45 e os 65 anos e mais de 65 anos. Por outro lado, tem vindo a aumentar a suspensão temporária de dadores associada a viagens para locais com risco geográfico. Ainda, registou-se um aumento do risco residual para Vírus da Hepatite B e C (VHB e VHC) bem como para Vírus da Imunodeficiência Humana (VIH).

Vistas as coisas pelo lado positivo, "há uma evolução extraordinária nesta matéria e hoje há mais alternativas à transfusão de sangue", diz Álvaro Beleza. Ainda assim, "há situações em que não existe alternativa". Santa Maria faz cerca 17 mil transfusões, mas há hospitais que fazem muito mais do que isso.

"É preciso criar o hábito de dar sangue", diz o médico, e lembra que no "Reino Unido, por exemplo, dar sangue a partir dos 18 anos é tão importante para os jovens como tirar a carta de condução ou votar". Hábitos que ficaram da Segunda Guerra Mundial.

Em Portugal, existe uma rede de colheita de sangue e o Instituto Português do Sangue e da Transplantação (https://ipst.pt/index.php/pt/) tem uma rede de brigadas de recolha que se estende por empresas e paróquias. Mas é preciso mais. Uma dádiva pode salvar até três vidas.

João Pedro tem essa consciência. Aos 12 anos teve uma apendicite aguda, a principal causa de cirurgia abdominal urgente em idade pediátrica. A inflamação do revestimento interno do apêndice, situado na primeira porção do intestino grosso, no lado direito do abdómen, é relativamente comum, mas os sintomas podem ser confundidos com diversos quadros clínicos e atrasar o diagnóstico. Se não for tratada, as complicações podem ser graves, da perfuração do apêndice à septicémia (infeção generalizada).

Foi o que aconteceu a João Pedro, que, por isso, teve de receber uma transfusão de sangue. "Além das dores, acho que só tive consciência de que podia ter morrido mais tarde. Da altura, recordo a agitação, a aflição de todos à minha volta, primeiro, e o alívio, depois. Mas nunca mais me esqueci", relata. Ironia do destino, não pode dar sangue, o que veio a descobrir mais de duas décadas depois.

Marcar a diferença entre a vida e a morte

"Hoje seria impossível uma situação como a do caso dos hemofílicos", garante Álvaro Beleza. O caso dos hemofílicos, que levou à demissão da ministra da Saúde de então, Leonor Beleza, aconteceu nos anos 80, quando doses de um derivado de plasma (Factor VIII) contaminado com VIH foram administradas em doentes hemofílicos, que acabaram por ficar infetados.

"Hoje são feitas análises a todas as doenças infecciosas conhecidas, a triagem é muito grande", assegura o médico. Além disso, "os serviços de sangue são dos mais auditados, com sistemas obrigatórios de controlo de qualidade e inspeção periódica".

Este é, aliás, um dos motivos por que o diretor do Serviço de Sangue do Santa Maria acredita que todas as dádivas devem ser benévolas. "Pagar a dadores pode atrair quem não queremos, fazer aumentar o número de doenças transmissíveis e comportamentos de risco. Hoje, o problema que se põe é o das doenças emergentes, como os vírus tropicais, caso do vírus do Nilo Ocidental".

Dar e receber sangue é hoje uma prática segura. Para quem recebe pode ser a diferença entre a vida e a morte, para quem dá o tal "ato de amor". Inês é dadora há mais de trinta anos: "Não sei quem vai receber o meu sangue, mas saber que posso estar a ajudar alguém num momento difícil, de enorme vulnerabilidade, é suficiente para me fazer desinstalar. Penso sempre: e se fosse comigo ou com um dos meus?".

Ninguém sabe quando será a próxima catástrofe e os acidentes surgem sem aviso, às vezes naquelas que pensamos ser as alturas mais felizes da vida, como dar luz. O parto do segundo filho de Jéssica transformou-se num pesadelo da noite para o dia. Acabou tudo bem, mas a história seria outras se um grupo de dadores não se tivesse mobilizado. Paulo não foi vacinado em bebé e aos 19 anos contraiu meningite meningocócica, uma infeção bacteriana aguda, rapidamente fatal. Esteve em coma induzido diversas semanas depois de ser operado, precisou de várias transfusões, sobreviveu.

Nenhum dos dois, Jéssica ou Paulo, conhece os seus dadores, mas ambos se sentem "eternamente gratos". Ela tornou-se dadora e espera que a sua história inspire outros. Ele, por motivos de saúde, não pode dar sangue, mas tenta convencer todos à sua volta a fazê-lo. "É trocar nada por tudo", diz.