Depois de anos fechada esta igreja de finais do século XVIII foi reaberta ao público e volta a ser notícia. San Antón é padroeiro dos animais e manda a tradição que todos os 17 de Janeiro os donos levem os seus bichos de estimação a ser benzidos pelo padre e abençoados pelo santo. Hoje o templo está a cargo do sacerdote Ángel Garcia Rodriguez, fundador dos Mensajeros de la Paz, que o mantém aberto dia e noite, o ano inteiro, para todos.

Quem passa não tem como não reparar: do lado de fora, na entrada principal, a sinalética informa que tudo o que costuma ser proibido dentro de uma igreja ali é possível: tomar café, ligar-se ao wi-fi, ver televisão, descansar e dormir ou utilizar as casas de banho, entre outras coisas. A comunidade divide-se entre os que elogiam o trabalho do padre Ángel e dos Mensajeros de la Paz e os que vêem tudo aquilo como uma heresia.

créditos: MadreMedia

O SAPO24 chegou à hora combinada, perto das duas tarde, mas o padre Ángel, chegado de viagem, foi requisitado por paroquianos e conversa numa pequena mesa do lado esquerdo de quem entra. De fato e gravata, cabelo branco e sorriso largo, recebe-nos com amabilidade, mas não diz muito mais do que algumas frases feitas. Perguntamos o que queria a senhora com quem esteve a falar antes e que passou por nós num pranto: "Queria que lhe pagássemos o andar, coisas que são impossíveis", responde. Mas há quem venha pedir-me um bilhete de regresso ao seu país, comida, roupa e outras coisas. Depois desculpa-se com um grupo que terá de receber à última hora, entrega um cartão de visita para lhe telefonarmos mais tarde e pede que falemos com Pedro, seu braço direito. Percebemos que está preocupado com outro assunto e não consegue disfarçar o melindre quando se dirige a alguns membros do staff: "Quarenta tios" e ninguém consegue resolver o problema que, aparentemente, existe com uma conta bancária onde é preciso mexer. Antes ainda tem tempo para dizer: "A ver se abrimos uma igreja assim em Portugal".

Pedro apresenta-se como ex-jornalista. Saiu do El Mundo e foi ajudar o sacerdote. Conversamos numa mesa igual à anterior, mas do lado oposto da igreja. À nossa frente, numa espécie de confessionário, um rapaz fala ao telefone. Ficamos a saber que liga para alguém da família, sempre sob a supervisão atenta de um voluntário. Esta é uma das possibilidades que a igreja oferece: um telefone que pode ser utilizado pelo público em geral, nacionais ou estrangeiros, para falar para onde e com quem for necessário. No caso a conversa é para fora de Espanha e demora mais de 20 minutos.

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O antigo jornalista resume a missão daquela igreja tão peculiar, localizada no bairro gay de Chueca, em Madrid: o objectivo é que todos tenham onde se recolher e confortar nos tempos mais difíceis, seja para se abrigar do frio, seja por não terem o que comer ou com quem falar. A horas certas são distribuídas refeições e existem espaços próprios para os visitantes exporem os seus problemas.

Por todo o lado cartazes e dizeres orientam os fiéis e incitam uns a deixar o que podem, outros a tirar o que necessitam. Para os mais críticos, uma faixa no altar com uma frase do Papa Francisco recorda que "A igreja deve estar sempre de portas abertas para acolher os que mais precisam". Aqui dá-se ajuda espiritual e material.

Perto de uma vintena de pessoas estão sentadas nas cadeiras forradas a napa bordeaux e que ocupam quase metade da igreja. Umas conversam, outras dormem, outras, ainda, rezam. Quase todas trazem consigo todos os pertences enfiados numa mala. O que procura esta gente? Alguns apenas consolo, outros que os ajudem a encontrar um emprego ou que lhes paguem a conta da luz ou da água. A maioria não tem casa.

Os Mensajeros de la Paz

A Mensageiros da Paz, assim se diz em português, é uma organização não-governamental (ONG) laica e sem fins lucrativos, fundada pelo padre Ángel em 1962, que tem como objectivo melhorar as oportunidades dos mais necessitados, não apenas em Espanha, onde desenvolve trabalho social em vários âmbitos, mas também ao nível internacional, com projectos e acordos de cooperação estabelecidos com diversos países da América, África e Ásia.

créditos: Mensajeros de la Paz

Ali, Pedro explica que hoje a igreja nem está muito cheia – nos dias de chuva está à cunha. É, além de igreja, templo de culto, com missa diária ao meio-dia e às 19 horas, um centro social. E "todos os dias há um problema novo", afirma. Queremos saber qual o problema do dia e conta-nos que na véspera chegaram dois venezuelanos, aflitos. Não queriam, como tantos, asilo político, "cada vez mais difícil de conseguir. Mas também ajudamos nisso, através de contactos que mantemos com o Ministério do Interior". O que queriam era "um sítio onde ficar e um deles tinha arranjado trabalho, mas não tinha sapatos. Por sorte eu trouxe três pares de sapatos de casa para outra pessoa, mas como não serviram o venezuelano experimentou-os e ficaram perfeitos. Levou-os todos". Ficou, como diz Pedro, resolvido o "pequeno grande problema".

A organização tem quatro andares em Madrid e disponibiliza-os para casos absolutamente prioritários. "Mas não pagamos casas e não arranjamos emprego a ninguém, isso seria complicado. Por exemplo, ainda agora nos pediram alguém para tomar conta de uma vacas numa quintarola. Mas tem de ser alguém que perceba de vacas; eu não percebo de vacas e estas pessoas não percebem de vacas, o que inviabiliza o processo", desabafa.

Cada "viajante" traz a sua história, "temos de nos sentar e de os ouvir". Enquanto falamos aproxima-se um rapaz trazido mais perto por um voluntário. Pedro chama-o: "Então, qual é o teu problema?" "Fome, fome", tenta explicar o rapaz pequeno e magro num meio sorriso, levando a mão à boca. "Falas espanhol, francês, inglês?" O miúdo vai acenando que não com a cabeça e continua a levar a mão à boca. Responde "no" a todas as perguntas. "De onde és?" "De Marruecos". "Bem, se és de Marrocos tens de saber falar espanhol. Pouco, devagarinho, mas fala connosco". "Só quero comer", diz finalmente. "Quantos anos tens?" Tem 22 e Pedro diz-lhe que aparenta 16. Na verdade o rapaz não é assim tão franzino, mas Pedro é grande e aos seus olhos todos parecem pequenos. Finalmente alguém acompanha o marroquino até à sala de refeições, numa porta que poderia ser a da sacristia. "Não ter o que comer é um problema muito fácil e que podemos resolver. Difícil é quando nos pedem 1200 euros para a casa", conclui.

A máquina que não é o que parece

A Fundación Mensajeros de la Paz vive de donativos; dinheiro dos fiéis, de gente que passa e se compadece, empresas que acreditam no seu papel social, além da parte que recebe do Estado, sobretudo através dos IRS. "Servimos o pequeno-almoço e damos o jantar". Antes era também distribuída uma refeição a meio do dia, agora suspensa, e alguns homens que encontramos no adro queixam-se.

Artur, brasileiro, chegou a Madrid há 16 anos e lamenta-se: "Antes o jantar durava três horas, agora dura uma hora e meia e se chegamos fora de horas nem nos deixam entrar. Se você que tem casa chegar aqui às duas da manhã pode entrar na igreja, mas se for eu, que não tenho casa, fico na rua. Aqui servem o café da manhã, nada mais durante o dia inteiro, só pão quando tem".

Francisco é português, de Coimbra, e chegou à capital espanhola há 15 anos, convencido de que a vida seria mais fácil. Confirma as palavras do outro: "Só comemos às sete da tarde, uma refeição que é pequeno-almoço, almoço e jantar. Eu fui falar com o padre, expliquei o meu problema, disse-lhe que não tinha dinheiro e respondeu-me que podia ir à Caritas ou à Assistência Social", indigna-se.

Artur e Francisco são, digamos assim, clientes habituais. Vê-se que estão bem alimentados e com saúde, mas rondam o local a ver se têm sorte com as moedas. "Há ali dentro duas caixas, uma que diz para colocar o que quiser, outra que diz para levar o que precisar, mas essa está sempre vazia", acusa Francisco, que antes de nos deixar ir pede uma moeda, "nem que seja o suficiente para um café" (que tem ali mesmo, disponível e de borla).

A igreja está aberta 24 horas por dia, 365 dias por ano, mas tem regras. Pedro confirma que actualmente servem menos uma refeição do que é hábito "por falta de donativos dos fornecedores [pastelarias e supermercados], que são menos no Verão", explica. "Mas além do pequeno-almoço e do jantar temos muitos programas. As pessoas que não têm casa dormem aqui, tomam duche, utilizam wi-fi ou o telefone. E lá fora está uma máquina que também serve para financiar esta ajuda".

Passámos por ela logo à chegada, parece uma máquina de vender cigarros. O aspecto é igual, mas a substituir as fotografias dos maços de tabaco estão as imagens de outros consumíveis, que podem custar entre um e dez euros. O funcionamento é o mesmo, só que em vez de dispensar o bem, ela dá uma pequena caixa com o respectivo vale dentro, que depois de apresentado aos voluntários dá direito ao bem correspondente. Pode ser um duche, um quilo de arroz, uma lavagem de roupa ou qualquer outra coisa.

créditos: MadreMedia

"Nunca vi que a máquina funcionasse, isso aqui não tem nada", diz Artur. "As pessoas põem o dinheiro e eles ficam com ele. Acho que são como o meu pai, que é ladrão, trabalha com o fabrico e venda de armas para outros países. Eu não sou como eles e estou na rua". Começa a falar alto, e da igreja vem um "shiu!". "Shiu o car****. Aquele é um ajudante, outro otário", refila o brasileiro.

A verdade é que as máquinas não só funcionam como são uma belíssima ideia. "Se os deixássemos ficar com as moedas, corríamos o risco de utilizarem o dinheiro em álcool ou em tabaco", lembra Pedro. E há várias máquinas assim espalhadas pela cidade, passámos por outra ali bem perto, no bairro vizinho de Malaseña. A caixinha da sorte pode ser deixada num cesto ao lado ou entregue directamente a um necessitado. Sabemos que alguém teve a ideia de colocar uma no Parlamento Europeu, mas a intenção acabou por não se concretizar e o padre Ángel não nos soube explicar porquê.

Voluntários e profissionais

A vida dentro da igreja não é fácil. Ali vão parar todo o tipo de pessoas, das mais calmas às mais revoltadas, das mais pacíficas às que vão à procura de briga. Uma prostituta que procura um momento de paz entre dois clientes, um refugiado que busca auxílio, um sem-abrigo com fome ou um rapazola com vontade de armar arruaça. Talvez por isso, conhecedores e preparados, os membros do staff vestidos de escuro por ali andem armados de walkie-talkies.

Pedro ajuda a distinguir os mensajeiros da paz profissionais e os voluntários. Cada um tem a sua função, com horários e tarefas predefinidas. Afinal, só em Madrid a fundação tem três bancos de alimentos - onde as famílias vão abastecer-se para 15 dias - e dois refeitórios sociais. Tudo tem de estar coordenado. "Também temos um médico, um podologista – aparece muita gente com problemas de pés -, um psicólogo e um advogado para tratar as questões legais", acrescenta. Todos estes serviços são grátis.

De colete amarelo, sorridente e vigilante, Estefânia anda de um lado para o outro, solícita. É actriz e faz voluntariado sempre que pode, apesar de o padre Ángel dizer com graça que ela passa mais tempo naquela igreja do que Cristo. Hoje mesmo começou às sete da manhã a servir os pequenos-almoços e a ideia era fazer o telefone dourado e seguir para casa, mas o dia complicou-se e Álvaro, um mensageiro da paz profissional, precisou de ajuda e ela acabou por ficar.

Telefone dourado, o que é? É outro dos serviços prestados pelo grupo, uma linha que serve apenas para receber chamadas e conversar com quem está do outro lado e precisa de orientação ou apenas de desabafar.

Estefânia, que ama Portugal e adora Lisboa, "um sítio onde viveria muito bem" - vem de segunda a sexta-feira e ajuda no que é necessário, ora serve pequenos-almoços, ora está no telefone dourado. "A verdade é que posso fazer qualquer coisa, não importa o quê, desde lavar a varrer, se for preciso. Percebo que alguns voluntários prefiram determinadas tarefas; se estão a tirar Psicologia, é normal que lhes interesse falar com as pessoas que chegam de fora. Mas gosto muito de aqui estar", diz.

A história que mais a impressionou até hoje, "jamais esquecerei", aconteceu num dia em que, por volta das 12/13 horas, faziam a distribuição de sanduíches. Nessa ocasião forma-se uma fila e só quando já todos receberam um pão há direito a repetições, pelo que é frequente haver brigas e confusão. Desta vez, "um rapaz está na fila e outro grita-lhe que é um aldrabão, que já comeu uma vez. Ele diz que não, garante que não come há dias. Quando chega a sua vez dou-lhe o bocadillo e ele, sem sequer sair do sítio onde estava ou sentar-se, atira-se à sanduíche com uma sofreguidão, uma ânsia tal, que vai enfiando a comida na boca e uma lágrima escorre-lhe pela cara", relata Estefânia. "Via-se que, de facto, não comi há dias e estava cheio de fome. Decidi naquele instante ir buscar a maior sanduíche de todas, reservar-lha para uma segunda volta", diz visivelmente emocionada.

Os bocadilhos não são todos iguais e dependem de doações, por isso podem ter fiambre, paio, chouriço ou qualquer outro recheio. "Às vezes damos quatro sanduíches, duas madalenas e um sumo, por exemplo. Depende da quantidade que temos e da quantidade de necessitados. Muitas vezes estas pessoas procuram além da comida assear-se um pouco, tratar da sua higiene", diz.

Por ali está também gente com bom ar. Estefânia explica que é assim sobretudo no princípio do dia e no início do mês. "Muitas pessoas vêm tomar o pequeno-almoço - roupa limpa, cara asseada – e seguem para o trabalho. É gente que não tem o suficiente para viver, o salário não lhes chega para pagar todas as despesas, ou porque têm filhos ou porque ganham pouco ou por qualquer outra razão. Também varia entre o início e o fim do mês, dá para perceber que é um processo, o número de pessoas que nos procuram vai aumentando à medida que o mês vai chegando ao fim, novos e velhos".

créditos: Mensajeros de la Paz

Jaime é espanhol, de Madrid, e está ali há oito meses "porque a lei espanhola protege mais a mulher do que o homem. Tiraram-me tudo". Nunca casou, "mas quando se tem filhos é igual, tanto dá casado ou não". As mudanças vieram em 2004, com as leis Zapatero, ex-chefe do governo espanhol. "Vou fazer 62 anos, quem é que me dá trabalho?", pergunta num inconformismo conformado. "É extremamente difícil. E triste", vai repetindo. Teve diversos negócios, chegou a trabalhar com estações de televisão como a Globo e também para Portugal. Ali, naquela igreja, procura onde ficar. "O que acontece é que aqui há pessoas em situação parecida com a minha e apoiamo-nos uns aos outros. E dão-me de jantar. Repare, não sou propriamente uma pessoa que nunca tenha feito nada na vida. Não gosto que venha gente de fora tirar-me tudo o que tenho, dinheiro, telefone, tudo". Diz que é católico e reza. Pelo quê? "Para ao menos me deixarem como estava antes".

Grande parte dos que ali estão não acreditam na sorte e a fé foi há muito abalada pelas desilusões da vida. A maioria já ali não estará quando chegar a altura das festas, no início do ano, tampouco chegará a conhecer as tradições que fazem a história da igreja de San Antón, como a dos panecillos, biscoitos com a imagem do santo - diz a lenda que se forem guardados perto do porta-moedas durante todo o ano, atraem fortuna e, no caso dos solteiros, até casamento. Mas por ali, nas Vueltas [procissão] de San Antón, em Chueca, sempre existirá um Jaime, uma Estefânia, um Francisco, um Ángel, um Artur ou um Pedro. Enquanto houver vida.