Antes da pandemia ter chegado a Portugal já tinha havido “primeiros dias”, como recordou à agência Lusa Fernando Almeida, presidente do Instituto Nacional Ricardo Jorge (INSA), o laboratório de referência de saúde pública em Portugal, fundado em 1899 pelo médico e humanista Ricardo Jorge.

“Nós estamos sempre em prontidão e sempre que há algum fenómeno destes nós respondemos (…) e desde há muito tempo, finais de novembro princípios de dezembro, que nós estávamos preparados”, contou à agência Lusa Fernando Almeida.

Até à confirmação em 02 de março dos primeiros casos de infeção pelo SARS-CoV-2 em Portugal já tinham sido feitas muitas análises: “as pessoas não sabiam, mas nós estávamos permanentemente a testar suspeitos de casos importados”.

“Hoje um, amanhã dois, mas isso criava muita ansiedade e fez-nos até recordar um bocadinho aquilo que se passou com o ébola” em que não importava a hora a que era feita a colheita para depois comunicar à tutela o resultado da análise.

O mesmo se passou com a covid-19 em que era preciso dar “o resultado o mais rapidamente possível” para “cortar imediatamente a cadeia de transmissão”.

Foi um “momento de muita pressão”, mas as coisas foram evoluindo e o INSA preparou 30 hospitais da rede de diagnóstico da gripe para realizar os testes, além de contar com o apoio de laboratórios.

“Nós neste momento já estamos com mais de 320 mil testes realizados, não estamos muito mal a nível do ranking europeu”, disse Fernando Almeida, referindo que há dias em que são realizados 800 testes. “Há dias em que temos menos, mas não paramos”.

Na Unidade de Resposta a Emergências e Biopreparação, onde apenas entra quem tem o código de acesso e devidamente equipado, trabalha-se sem cessar para que os resultados das amostras possam ser dados algumas horas depois.

Ali, os investigadores fazem um trabalho minucioso que começa por inativar a amostra, o que exige cuidados redobrados. Após a certificação que “já não causa problemas de biossegurança para as pessoas”, a amostra é manipulada e extraído o RNA, os ácidos nucleicos, para ser observada no equipamento e obter o diagnóstico.

Muitas das amostras biológicas do vírus são transportadas num carrinho para o Laboratório de Segurança Biológica pela auxiliar Maria da Conceição Moreira, que trabalha há 42 anos no INSA.

Habituada a este trabalho, Maria da Conceição disse não ter qualquer receio de transportar este material. “A gente protege-se, temos o nosso cuidado e não temos medo”.

A covid-19 trouxe foi mais trabalho, além do que já havia, e ainda mais precaução. “A gente tem sempre cuidado, mas com este mais ainda, todos os cuidados são poucos”, disse à Lusa.

Segundo Fernando Almeida, mais de meia centena de pessoas estão dedicadas ao diagnóstico da covid-19 no Departamento de Doenças Infecciosas, mas também está a ser feita muita investigação.

Na Unidade de Investigação Epidemiológica, coordenada por Baltazar Nunes, faz-se a elaboração de cenários, modelação matemática e estuda-se a curva epidémica, que consiste na distribuição do número de casos novos de covid pela data de início dos seus sintomas.

A curva permite perceber “a velocidade” a que a epidemia se está a desenvolver no país, explicou Baltazar Nunes.

Comentando o seu comportamento, o epidemiologista afirmou que houve um “crescimento exponencial” numa primeira fase, até 16 de março, dia em que foram introduzidas as medidas de confinamento, e agora tem estado estável.

Os “primeiros tempos de contacto com o vírus” também foram recordados à Lusa pelo coordenador do Departamento de Epidemiologia, Carlos Dias.

“Foram momentos muito intensos” para o INSA, para as instituições do Ministério da Saúde e para a sociedade, “mas penso que o país, no cômputo geral, reagiu muito bem com uma tranquilidade que, apesar de tudo, é de notar e deu a resposta que hoje faz com que de facto em termos epidemiológicos a sua situação não seja das mais graves da Europa, nem do mundo”.

Em termos de incidência da doença, necessidade de cuidados diferenciados hospitalares, mortalidade, a situação “está “controlada”, considerou Carlos Dias.

Na Unidade de Bioinformática, o investigador Vítor Borges reparte os seus dias entre o laboratório, onde analisa as amostras do SARS-CoV-2 já inativado para fazer a sequenciação do genoma, e a plataforma informática que permite descobrir “a singularidade e as diferenças entre os vírus que estão a circular em Portugal”.

Atualmente, já temos cerca de 300 genomas, “um número considerável”, mas o objetivo é atingir num curto prazo os 1.000, tendo o INSA recebido para isso um financiamento da Fundação para a Ciência e Tecnologia.

Sobre se esta investigação é um desafio, Vítor Borges afirmou que sim porque “é um vírus novo” e uma tecnologia diferente que estão a testar pela primeira vez.

“Estamos com uma epidemia que está a acontecer agora e estamos a conseguir gerar dados em tempo real que podem ser úteis para o momento”, concluiu.

Sistema de vigilância da gripe sazonal vai ser alargado ao SARS-Cov-2

O sistema de vigilância sentinela da gripe sazonal vai ser alargado à covid-19 para “conhecer com detalhe” o que se vai passar na população portuguesa com a coexistência dos dois vírus, revelou à Lusa o epidemiologista Carlos Dias.

Desde 1990 que a Rede Médicos-Sentinela, um sistema de observação baseado nos cuidados de saúde primários, faz a vigilância epidemiológica da gripe, sendo o objetivo adaptá-la ao novo coronavírus SARS-Cov2, adiantou o coordenador do Departamento de Epidemiologia do Instituto Nacional Dr. Ricardo Jorge (INSA).

“Esse é um aspeto muito importante que está a ser preparado desde já” porque são duas “doenças que têm uma expressão respiratória óbvia, em termos de sinais, de sintomas, a tosse, febre, dificuldade respiratória, etc”, disse Carlos Dias.

Portanto, quando existem “sistemas que vão recolhendo dados sobre pessoas com estas queixas convém destrinçar que agente está envolvido e convém fazê-lo o mais precocemente possível”.

“Estamos no final da época gripal 2019/2020, mas é conveniente desde já preparar a próxima época de gripe porque existe a possibilidade, não negligenciável, de que no próximo inverno tenhamos em Portugal, na Europa e no mundo a circulação desses dois vírus, ou seja, ao mesmo tempo podemos ser infetados pelo vírus da gripe sazonal e pelo vírus que causa a covid”, salientou.

Carlos Dias explicou que a gripe sazonal tem épocas em que o vírus é pouco agressivo, mas tem outras em que é mais agressivo.

O vírus que causa a doença covid-19, apesar de já ter sofrido algumas mutações, não tem evidência ainda de que essas mutações tenham resultado em formas menos agressivas da sua infeção.

Portanto, defendeu, o país tem que “se preparar desde já” com sistemas de informação para que “até a próxima época de gripe” e durante toda a época se possa “conhecer com detalhe e com um atraso mínimo o que é que se vai passar na população portuguesa quanto à coexistência deste dois vírus”.

O SARS-Cov-2 “é um vírus novo que pertence a uma família de vírus corona” que “todos os invernos circula na população portuguesa e noutras”.

Sendo novo, “é mais infeccioso, tanto quanto se sabe, e tem uma letalidade maior do que a da gripe, mas muito menor” do que por exemplo o ébola ou outros vírus de famílias diferentes “muito mais letais”.

O investigador da unidade de bioinformática do Instituto Nacional de Saúde Ricardo Jorge (INSA), Vítor Borges, procede à análise de uma amostra, em Lisboa, 24 de abril de 2020. créditos: JOSÉ SENA GOULÃO/LUSA

No entanto, a doença causa numa proporção de pessoas, sobretudo idosas e com doenças associadas, necessidades de cuidados diferenciados hospitalares, cuidados intensivos, auxílio e suporte à respiração e ao funcionamento dos órgãos que “são preocupantes”.

O investigador Vítor Borges, da Unidade Bioinformática, do INSA, que está a estudar a diversidade genética do SARS-CoV-2 em Portugal com base na análise do genoma, disse que já se começa a perceber a dinâmica da sua evolução em Portugal.

“Tem “bastante diversidade”, o que significa que houve “introduções de vários pontos geográficos do vírus” em Portugal.

Vítor Borges explicou que o vírus acumula cerca de duas ou três mutações por mês. “Cada vírus que sequenciamos, agora nesta fase, passados quatro meses do início da epidemia, tem cerca de nove, dez mutações em relação ao vírus inicialmente sequenciado na China”.

A maior parte dos vírus que circula em Portugal é de “uma linhagem que circula maioritariamente na Europa”, mas há outras linhagens menos frequentes. Deu como exemplo, os genomas já conhecidos do Alentejo, nomeadamente de Évora, que têm um perfil genético que não é o que mais circula na Europa.

São variantes com “alguma expressão” em Espanha, “o que indica que potencialmente houve alguma introdução na região do Alentejo que terá vindo de Espanha”.

Com este estudo, Portugal está a contribuir para “um conhecimento à escala global” e para um “desenho da vacina mais direcionado para as grandes variantes que estão a circular e que possa ser mais eficiente”, considerou.

Países lusófonos capazes de testar novo coronavírus e com apoio do INSA

Os países africanos de língua portuguesa e Timor-Leste dispõem atualmente de capacidade para testar a covid-19 e contam com a colaboração do Instituto Nacional de Saúde Dr. Ricardo Jorge (INSA), disse à Lusa o seu presidente.

“Temos uma relação muito forte com os países, não só os Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa (PALOP), mas também a CPLP, que inclui Timor-Leste”, disse Fernando de Almeida, a propósito da tradicional colaboração entre este instituto e os laboratórios dos países da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP).

Uma técnica de saúde procede a testes ao coronavírus no Instituto Nacional de Saúde Ricardo Jorge (INSA), em Lisboa. créditos: JOSÉ SENA GOULÃO/LUSA

Ainda antes de declarada a pandemia, o INSA disponibilizou-se para ajudar os laboratórios destes países e desde logo recebeu pedidos de cooperação de alguns Estados, como Moçambique, Guiné-Bissau e Cabo Verde.

A colaboração nesta fase pandémica tem-se registado com Moçambique, Cabo Verde, Guiné-Bissau, São Tomé e Príncipe e Angola.

Em relação a São Tomé e Príncipe, Fernando de Almeida explicou que se trata de uma colaboração “mais recente”.

“Temos vindo a dar apoio, não só em termos técnicos e de avaliação e de ajuda na metodologia que eles estão a implementar, mas também já fizemos alguns testes para comparar e para perceber o momento de aflição que eles tiveram lá”, adiantou.

E prosseguiu: “Com Cabo Verde a mesma coisa. Estamos a ajudar a montar a técnica e estamos em colaboração permanentemente”.

“Hoje em dia, felizmente, as novas tecnologias permitem-nos fazer estas videoconferências e é muito mais fácil, pois estamos relativamente impedidos de viajar para esses países”, acrescentou o responsável.

Na Guiné-Bissau, o INSA está a apoiar com técnicos no terreno, com quem os especialistas portugueses têm trocado conhecimentos por videoconferência.

Neste país, “a metodologia foi montada com base nos equipamentos e no ensinamento” do INSA “para a capacitação de recursos humanos quando foi do Ébola”.

“Conseguimos fazer a capacitação. Felizmente não houve nada na Guiné-Bissau sobre o Ébola, mas enquanto lá estivemos formámos e capacitámos pessoas e ficou lá algum equipamento. Agora, eles já conseguiram fazer essa metodologia”, referiu.

A colaboração também se estende a Angola, país com o qual o INSA tem colaborado ao nível dos testes e com quem está “permanentemente em conversação”.

Com Timor-Leste, os especialistas do instituto têm trocado informações técnicas científicas sobre os novos testes, nomeadamente quais os que devem ser utilizados.

A colaboração com estes países deverá em breve aumentar, uma vez que o INSA está em articulação com o Camões – Instituto da Cooperação e da Língua para ver que o tipo de colaboração que, tal como outras instituições, fornecer a Angola, Moçambique, Timor-Leste, Guiné-Bissau, São Tomé e Cabo Verde.

Fernando de Almeida acredita que estes países já dispõem, de um modo geral, de capacidade de resposta à pandemia.

“Podem ter alguma dificuldade momentânea, faltar um regente aqui ou ali, mas a ideia que me chega é que eles têm essa capacidade e está tudo a correr como aquilo que é possível e desejável, atendendo às circunstâncias desta pandemia”, disse.

A nível global, segundo um balanço da agência de notícias AFP, a pandemia de covid-19 já provocou mais de 214 mil mortos e infetou mais de três milhões de pessoas em 193 países e territórios. Mais de 840 mil doentes foram considerados curados.

O número de mortes provocadas pela covid-19 em África subiu para 1.467, com 33.273 casos da doença registados em 52 países, segundo as estatísticas mais recentes sobre a pandemia no continente.

Entre os países africanos que têm o português como língua oficial, Guiné Equatorial lidera em número de infeções (258) e uma morte, seguido de Cabo Verde (113 e uma morte), Moçambique (76), Guiné-Bissau (74 e uma morte), Angola (27 infetados e dois mortos) e São Tomé e Príncipe tem oito casos confirmados.

Em Portugal, morreram 948 pessoas das 24.322 confirmadas como infetadas, e há 1.389 casos recuperados, de acordo com a Direção-Geral da Saúde.

A doença é transmitida por um novo coronavírus detetado no final de dezembro, em Wuhan, uma cidade do centro da China.

* Helena Marques Neves (texto), Pedro Lapinha (câmara) e José Sena Goulão (fotos), da agência Lusa