O Ioga é, além de uma atividade física, uma filosofia de vida e uma forma de viver. Com raízes orientais mas já espalhado por todo o mundo, esta modalidade não é nova em Portugal. Porém, existem sempre formas não tão conhecidas de praticar esta atividade.

Joana Fartaria, instrutora de Ioga nas diferentes formas e, nas suas palavras, “ativista” pela nudez, decidiu juntar a atividade que pratica, ao gosto de estar nua e ensinar aos seus alunos um novo tipo de Ioga, o Ioga Nu, praticado em pequenos grupos em que, como o nome indica, todos os participantes estão despidos.

Em entrevista ao SAPO24, diz, sem medos, que esta prática está aberta a qualquer idade e que de duas em duas semanas a pequena turma de 5 a 12 alunos se encontra em busca de um “espaço de liberdade”.

Com um passado de atriz e modelo de aulas de desenho, a nudez sempre fez parte da sua vida e afirma que é importante para os alunos encontrar espaços “onde não exista uma sexualização da nudez”. Por isso, dois sábados por mês reúne-se entre as 10:00 e as 11:00 com o seu grupo no Estúdio Laya, na Parede.

Ali, não é obrigatório os alunos despirem-se completamente, mas todos podem estar sem roupa. Metade da turma é estrangeira mas tem muitos interessados portugueses. As aulas podem ser bilingues e neste momento é o único sítio em Portugal onde se pode praticar Ioga Nu.

Além da nudez, em que consiste o Ioga Nu?

A intenção é que as pessoas possam fazer uma prática física, neste caso o Ioga, sem roupa. E é basicamente isso, uma aula de Ioga convencional mas em que os participantes estão sem roupa ou podem estar sem roupa.

É obrigatório estar sem roupa nas aulas?

Quando as pessoas participam neste tipo de aula, são convidadas a estar sem roupa, ou seja, ninguém é obrigado a estar totalmente nu, mas tem de querer experimentar a nudez de alguma forma. Ninguém pode participar nesta aula sem entrar no espírito, que é a nudez e a confiança. Se as outras pessoas estão despidas, não pode entrar uma nova que não vai fazer o mesmo.

A ideia é criar um espaço seguro para todos com confiança e disponibilidade e que toda a gente esteja no mesmo ponto.

Ioga Nu, por Ruy Coelho
Ioga Nu, por Ruy Coelho créditos: Ruy Coelho

Quem são as pessoas que vão a estas aulas?

A maior parte das pessoas interessadas neste tipo de Ioga são da área do naturismo, ou seja, pessoas que gostam de fazer atividades nuas, como campismo, ou ir a praias naturistas (que existem muitas em Portugal, e não existem muitos espaços sociais em que se possa estar despido). Aqui é possível.

Não se pode ir às compras despido, não se pode ir ao bar despido, não se pode ir jantar despido, não existem ginásios nudistas - existem noutros países mas aqui não - e por isso as pessoas procuram estes espaços que, para elas, são um espaço de liberdade.

"A sexualização da nudez é uma ideia que foi acrescentada e há poucos espaços onde a nudez é tratada desta forma, de uma forma natural"

E pessoas não naturistas também se interessam por este tipo de Ioga?

Para uma pessoa que não pratique naturismo, ao ouvir sobre esta prática, e ao pensar praticar, pode sentir um pouco de desconforto, no bom sentido. Mas há algumas pessoas que vêm para desafiar esse desconforto.

A maior parte das pessoas que aparecem vêm de uma realidade do naturismo, mas outras dizem só: eu gosto de estar nu e gostava de experienciar o que é estar em nudez com outras pessoas, isso é difícil para mim por isso acho que seria bom poder explorar isso. E aqui podem.

É importante realçar que existem muito poucos espaços onde a nudez é abordada como uma coisa natural e onde não exista uma sexualização da nudez, porque a nudez não é sexual, a nudez é natural. Todos nós temos um corpo nu, todos nascemos nus e todos nós na nossa base somos assim. A sexualização da nudez é uma ideia que foi acrescentada e há poucos espaços onde a nudez é tratada desta forma, de uma forma natural.

Quais as preocupações dos praticantes quando começam a ter aulas de Ioga Nu?

Aqui não há preocupação em ficar mal, ser atraente ou não ser atraente, isso são preocupações do mundo exterior fora da aula de Ioga. A aula é o foco na prática, cada pessoa focada na sua atividade, existe até quem pratique de olhos fechados, mas nus e num contacto mais real com o corpo.

O objetivo é também estar mais em contacto com a natureza? Fazem aulas no exterior?

Eu já fiz uma aula ao ar livre, numa praia naturista, porque obviamente não se pode simplesmente ir a um parque e fazer esta aula. Em Portugal isso não é permitido, mas existem espaços de naturismo e nesses espaços é possível.

Porém, as aulas regulares a cada duas semanas, dois sábados por mês, são num estúdio interior, onde a ideia é também o contacto com a natureza porque estou a contactar entre mim e o meu próprio corpo.

Se pensarmos mesmo em termos de auto-estima, nós estamos habituados a ver o nosso corpo ao espelho ou em fotografias, sempre numa visão de censura do corpo, ou seja, o que está errado, bonito, etc. E obviamente na prática de Ioga o corpo vai estar em posições estranhas, onde aparecem imperfeições, cores diferentes, pelos, texturas que não estamos habituados a ver e a sentir no nosso corpo e isso é bom para a naturalização da nudez, até porque toda a gente em volta está a fazer e a sentir o mesmo.

O contacto com a natureza também é o contacto com o nosso corpo, como parte da natureza, até porque o nosso corpo é de facto o primeiro contacto com a natureza.

Eu gostava de fazer mais aulas no exterior, na praia, em parques, mas é sempre uma logística um pouco exigente para conseguirmos que toda a gente esteja confortável e que isso não seja uma invasão para os outros. Não podemos impor a nossa nudez a quem também não a quer. O consentimento é importante para quem está a praticar, como para quem eventualmente possa observar.

Ioga Nu, por Ruy Coelho
Ioga Nu, por Ruy Coelho créditos: Ruy Coelho

Qual é a procura por esta atividade?

Eu tenho mais pessoas curiosas do que pessoas que têm mesmo a coragem de vir e isso é sempre interessante. Recebo sempre muitas mensagens com perguntas, mas depois são menos os que vêm à aula.

Quem efetivamente aparece é o meu grupo regular, entre 5 e 12 pessoas, que vêm regularmente e por vezes temos um curioso que aparece, mas o feedback tem sido sempre muito bom que é as pessoas estarem sempre confortáveis, libertas e num espaço em que podem fazer Ioga sem constrangimentos.

Existem distrações durante a aula, tendo em conta que estão todos nus, sendo que o Ioga é algo muito introspetivo?

Eu penso que não existem distrações, no entanto por vezes recebo mensagens de pessoas que me dizem que é a primeira vez que vão praticar e pergunto sempre: é a primeira vez a fazer Ioga ou em práticas de grupo nu? Se ambas estas coisas são verdade eu não recomendo, porque pode ser demasiado para uma primeira vez.

Se calhar nessa situação o melhor é começar por uma aula de Ioga convencional, para depois ter mais foco no que está a fazer nu, porque pode haver distração, mas isso depende sempre de cada pessoa.

Lembro que na prática de Ioga, assim como em qualquer prática que envolva uma certa espiritualidade, é difícil eu saber onde é que a pessoa está mentalmente, ou o que se passa na cabeça do aluno, podendo estar em introspecção ou com super pensamentos na cabeça.

Posso dizer que normalmente vejo as pessoas serenamente a praticar e, mesmo quando temos pessoas novas e chegam um bocadinho preocupadas, o resto da turma não liga nenhuma e está concentrada na sua prática.

Mas isto de novo traz o tema da nudez ser um tema tabu, ter muitas camadas e é necessário muitas vezes uma pessoa nova na prática desconstrua a ideia de nudez e perceba que não vai ser alvo de sexualização. Tudo isto depende de onde as pessoas estão neste momento.

"Qualquer forma é aceitável para a aula, a forma humana é a que está certa, isto não é um desfile, ninguém vai para se mostrar"

Que perguntas fazem as pessoas quando mostram interesse em praticar Ioga Nu?

Além das perguntas normais em qualquer prática de atividade física, aqui juntam-se alguns receios das pessoas.

Tenho algumas que me questionam se existem mais mulheres ou mais homens na aula, nunca percebi a relevância desta questão, não faz diferença nenhuma.

Existe também quem me tenha dito que só faria uma aula quando estivesse ”em forma”, e eu respondi que qualquer forma é aceitável para a aula, a forma humana é a que está certa, isto não é um desfile, ninguém vai para se mostrar.

Fazer este tipo de Ioga ou não depende de como as pessoas se observam e veem o seu próprio corpo na sociedade. Por vezes, quando nos vestimos vemos a roupa como uma forma de nos afirmarmos ao outro, ser bom ou mau, importante ou não importante, e na nudez é igual. Existem pessoas que se sentem empoderadas nuas e outras que sentem o oposto, em vulnerabilidade, e ambas estas características têm lugar numa aula de Ioga.

O que observo durante a aula é que as pessoas se despem de todas estas camadas e chega a uma altura em que as pessoas, como acontece várias vezes no relaxamento final, simplesmente adormecem.

"Acho que o tema do corpo e da nudez é uma ferramenta para a cura e a melhor aceitação de cada um"

Existe algum tipo de preparação para chegar a este nível de exposição do corpo?

Acho que depende de cada pessoa e de cada história. Como exemplo, eu tive uma pessoa que veio praticar e era alguém com um percurso complicado no que diz respeito à aceitação do próprio corpo. Era um processo longuíssimo de grande insegurança em relação à aparência e o Ioga teve um papel incrível para este processo, mas é algo que a pessoa vive sozinha, e eu nunca teria sabido se a pessoa em questão não tivesse partilhado.

A questão de uma eventual preparação é mais uma questão terapêutica em que depende de cada pessoa e da forma como vê o seu corpo. Seria necessário as aulas serem acompanhadas por terapia para percebermos todos os processos mentais que as pessoas têm de ultrapassar para expor o corpo.

A maior parte das pessoas já sabem o que conseguem fazer e como gerem a aceitação do corpo e partilham-no comigo, outras vêm descobrir.

Acho que o tema do corpo e da nudez é uma ferramenta para a cura e a melhor aceitação de cada um e talvez a maior parte das pessoas passam muito por cima da questão do corpo. Se pensarmos na nossa cultura, quase não temos relação com o corpo, talvez pela sexualização constante deste.

Nós passamos de bebés nus na praia, algo visto com normalidade pela maior parte das pessoas, e aí aos seis anos já não achamos normal. Porquê? Não existe justificação.

Esta falta de relação com o corpo chega ao ponto das minhas aulas de Ioga Nu não poderem ter uma página no Instagram. Já tiveram e foi banida, mesmo aplicando a censura supostamente adequada.

Todos os corpos são bem-vindos nestas aulas?

Todos, e tentamos passar por cima da questão da pouca relação que as pessoas hoje em dia têm com o corpo.

Muitas pessoas acham que a nudez bonita deve ser limpinha, depilada e cheirosa. Agora nudez natural, com pelos, com lama porque andou no chão, com cheio a suor, que é um cheiro normal no verão, isso já não é ideal. O que é o corpo ideal? O que é o corpo desejável? São tudo questões que não se colocam neste contexto. Toda a gente tem corpo para vir a esta aula.

Ioga Nu, por Ruy Coelho
Ioga Nu, por Ruy Coelho créditos: Ruy Coelho

Existe algum código de higiene para frequentar as aulas? Alguma norma de comportamento?

Exijo tudo dentro da normalidade numa prática desportiva no que diz respeito a saúde, higiene e segurança. Eu tento que o espaço esteja sempre o mais limpo possível, e que eu esteja também limpa, antes de mais para o meu conforto individual, não é só para os outros, é para mim própria, para estar bem com o meu corpo e com a minha pele. A partir deste ponto está tudo certo.

Se todos nós estivermos assim, todos nós vamos estar bem naquele espaço.

Existe algum ritual no início das aulas ao começar?

Sempre que começo a aula, as pessoas chegam vestidas normalmente, em especial no inverno quando está frio e eu digo: este é o momento para se despirem. Depois disso, eu peço às pessoas para se despirem até estarem confortáveis e não para lá disso, para nada disto ser uma violência para o corpo da pessoa. Atenção que neste momento a pessoa pode ir embora e perceber que não é para ela.

Nunca aconteceu ninguém querer sair neste momento e todas as pessoas se despem. Se algum dia acontecer, eu deixo a decisão ao grupo sobre a permanência daquela pessoa na aula, porque estando todos despidos é o grupo que deve decidir se a pessoa pode ficar vestida.

O mais importante é o consenso de quem está presente, até em situações em que existem pessoas que pedem para filmar a aula, que já aconteceu. Pergunta-se ao grupo e se o grupo aceitar acontecerá.

Existem muitos sítios em Portugal onde se pratica este tipo de Ioga?

Eu sou a única pessoa em Portugal a fazer Ioga Nu. Já existiram outros no passado, mas agora não.

E um número de praticantes máximo?

Para garantir o conforto fazemos entre 5 e 12 pessoas, que é a capacidade máxima da sala.

São só portugueses a frequentar as aulas ou existem também pessoas da comunidade internacional?

Eu diria que metade dos meus alunos são estrangeiros. As aulas são em português, mas são também bilingues quando está presente alguém que não fala português.

Existe alguma idade mínima para praticar?

Este é um espaço que eu considero perfeitamente seguro para crianças, desde que os pais os tenham habituado a estar neste tipo de espaço e isto depende de cada família, mas não tenho nenhum problema que venha uma mãe e um filho ou filha. Este não é um espaço fechado a famílias ou crianças, simplesmente não é uma aula de Ioga direcionada a crianças que são normalmente organizadas de outra forma com outro alinhamento.

Pessoalmente, posso dizer que tenho um filho com 10 anos e não teria problema nenhum que ele viesse à aula comigo depois de lhe explicar o que era.

Esta não é uma experiência chocante para menores de idade, na minha perspetiva tanto como instrutora de Ioga como enquanto mãe.

Como é que surgiu este fascínio pela exploração do significado da nudez?

Eu sou um bocadinho ativista com esta questão da nudez. Além de instrutora de Ioga, tenho também um passado como atriz de teatro durante muitos anos e, neste momento, sou também modelo em aulas de desenho, onde também existe modelo nu. E por isso, para mim, estas aulas de desenho vão na mesma linha de pensamento, o trabalho de um modelo nu é das poucas áreas onde socialmente existe uma pessoa nua à nossa frente sem haver sexualização, porque as pessoas estão simplesmente a desenhar e nem sempre estão a olhar para quem desenham.

Para mim, é um previlégio estar nua e não estar a ser objetificada. Estou na minha liberdade e gosto muito de dar essa oportunidade aos artistas, porque é um trabalho muito importante para o trabalho académico e para o estudo do corpo humano, sendo que é feito há milénios.