Poderia, mas não é. Em vez dessa paisagem quase idílica, são visíveis montanhas de lixo, o cheiro da putrefação, os casebres de chapa e as omnipresentes moscas a apoquentar os antigos moradores da Areia Branca, que ali se instalaram depois de expulsos daquela ilha para um projeto urbanístico que não chegou a acontecer.
Talita Miguel chama-lhe o “massacre do dia 01 de junho de 2013” e compara-o ao 27 de maio de 1977, quando um alegado golpe de uma fação dissidente do Movimento Popular de Libertação de Angola, o partido que governa Angola há quatro décadas, resultou na morte de milhares de pessoas.
“Nós poderíamos decretar o dia 1 de junho de 2013 como o dia do massacre das crianças da Areia Branca”, afirma a representante dos moradores.
Nessa madrugada, o seu bairro, situado no tal pedaço de terra conhecido como Ilha dos Pescadores, foi invadido pela polícia e pelo exército.
Sem aviso prévio, sem diálogo com a população, a comunidade que ali existia há 50 anos viu as suas casas reduzidas a nada depois de arrasadas pelos buldózeres.
“Houve agressões físicas, houve morte, houve espancamentos, as crianças assistiram aos pais a serem espancados”, conta Talita.
A incursão foi o culminar de vários dias de cerco, durante os quais os moradores ficaram privados de alimentos e de água.
Para Talita, a culpada das condições em que habitam atualmente a maioria das 3000 pessoas desalojadas tem um nome: Isabel dos Santos.
Segundo a moradora, a empresária angolana, filha do ex-presidente José Eduardo dos Santos, sonhava pôr em prática um plano urbanístico para aquela zona, avaliado em cerca de 600 milhões de euros, e que foi concedido à sua empresa, a Urbinveste.
A história foi apenas mais uma das que surgiram através da investigação Luanda Leaks, do Consórcio Internacional de Jornalistas de Investigação (ICIJ), que integra o Expresso e a SIC.
“O espaço pertencia a Isabel dos Santos”, assegura Talita Miguel, rejeitando os desmentidos da empresária que negou no Twitter que o projeto da Marginal da Corimba, implicasse a retirada de pessoas.
“É uma estrada em cima de um aterro no mar, nunca desalojámos ninguém. Este projeto não foi pago nem foi construído”, negou a filha de José Eduardo dos Santos, arguida desde quarta-feira num processo relacionado com alegada má gestão e desvio de fundos na Sonangol, depois de o caso ter vindo a público.
“Ela, sendo humana, mãe, acredito que não gostaria de ver os seus filhos nestas condições”, comentou Talita, acrescentando: “Houve mortes e continua a haver mortes porque o sítio onde nós estamos não é um sítio condigno, é um sitio onde não há ar puro, respiramos as impurezas que vem dos resíduos, das fossas”, denuncia.
Passaram mais de seis anos, as promessas de realojamento foram muitas, mas ficaram por isso mesmo.
Apenas algumas das 500 famílias conseguiram fugir do destino que é hoje a realidade de Pedro Alexandrino.
“Viver aqui é difícil”, desabafa. Sem saneamento básico ou abastecimento de água ou eletricidades, as pessoas aglomeram-se entre duas valas de águas residuais que favorecem o aparecimento de doenças como a febre tifoide, a malária ou a cólera.
“Como é que vamos viver com as crianças com lixo aqui ao lado? A situação é muito crítica aqui”, disse o morador no bairro de barracas.
Pedro Alexandrino, recorda-se bem do cerco: “Nada podia entrar, nem água nem alimentação, ninguém podia entrar nem sair”.
Após tumultos e confrontos de vários dias, finalmente as autoridades abriram as barreiras. Depois vieram as máquinas que “partiram as coisas”, os “camiões a carregar pessoas” que eram depois abandonadas na estrada, sem pertences nem respostas.
A comunidade dispersou-se, mas grande parte acabou por se concentrar bem perto do local onde estavam, junto da nova Marginal, num dos pontos emblemáticos da cidade, o memorial erigido em homenagem ao primeiro presidente de Angola, Agostinho Neto.
O sítio a que os habitantes chamaram “Povoado” já foi visitado por deputados e ministros, mas os problemas continuam por resolver
Enquanto espera por soluções, Pedro Alexandrino mostra o amontoado feito de chapas e restos de demolições onde vive, juntamente com outras famílias. Uma “casa” idêntica às outras naquele bairro de becos estreitos e labirínticos.
“Este espaço até é maior, comparado com outros de 4 metros quadrados onde vivem sete famílias”, comenta.
“Porque é que nos apertámos assim? Porque o espaço é pouco. Se fossemos desdobrar-nos ocupávamos mais hectares porque somos muitos. Construímos próximo para dar para todos”, diz.
Quanto à ilha, ficou deserta e assim continua.
“Até ao momento não tem nenhum projeto levantado, vemos sempre a ilha descoberta. Há simplesmente dois estaleiros e não sabemos o que vão fazer lá, só sabemos que o espaço já foi confiscado pelo governo, porque havia um viaduto que ia passar daqui até ao Cuanza Sul, mas só em 2019 é que ouvimos isso”, explicou Talita Miguel.
“Antes, tínhamos ouvido que seria edifícios e que aquela área estava privatizada”, desabafa, sentida, Talita Miguel.
Em maio de 2019, o Presidente angolano, João Lourenço, que sucedeu ao pai de Isabel dos Santos em 2017, anulou o contrato global de implementação do projeto da marginal da Corimba, no valor de 1.300 milhões de dólares (cerca de 1.160 milhões de euros), alegando que se verificaram “sobrefaturações nos valores dos referidos contratos, com serviços onerosos para o Estado”, que impõem “contraprestações manifestamente desproporcionadas em violação dos princípios da moralidade, da justiça, da transparência, da economia e do respeito ao património público, subjacentes à contratação pública”.
A diretora-geral da empresa Urbinveste chegou a ser a própria Isabel dos Santos.
(Por: Raquel Rio da Agência Lusa)
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