Foi num escritório com livros amontoados, fotografias a trepar pela parede e um mini cesto de basquetebol como pano de fundo que o dr. Anthony S. Fauci — especialista conceituado que dirige as investigações sobre doenças infecciosas nos Institutos Nacionais de Saúde norte-americanos e consultor de Donald Trump —, uma das figuras mais visíveis da área da medicina nos Estados Unidos desde o início da pandemia do covid-19, entrou em direto no Instagram de Stephen Curry, estrela de NBA e jogador dos Golden State Warrior.
Na terceira semana de pausa da maior liga de basquetebol do mundo devido à pandemia provocada pelo novo coronavírus, Curry quis utilizar o seu peso mediático para esclarecer os cerca de 30 milhões de seguidores que o acompanham naquela rede social acerca do Covid-19 — que nos Estados Unidos já contaminou mais de cem mil pessoas e matou mais de 1400.
Entre as 50 mil pessoas que estiveram a acompanhar a conversa, esteve Barack Obama, ex-presidente dos Estados Unidos da América e fã assumido de basquetebol — que no início do direto enviou o emoji de um ‘shaka’ ao jogador que esta época soma apenas cinco jogos, depois de quatro meses de ausência na sequência de uma lesão na mão esquerda feita em outubro de 2019, num jogo contra os Phoenix Suns.
A entrevista durou aproximadamente 30 minutos e percorreu vários dos tópicos que o Fauci tem endereçado à população nas conferências de imprensa e entrevistas que tem dado, desde a importância do distanciamento social, às diferenças entre o covid-19 e a gripe sazonal ou esta ideia de que os mais novos não correm grande risco. A mensagem principal é clara: "Isto é sério, nós não estamos a exagerar".
Direto, sem recurso a palavras caras, Fauci procurou esclarecer muitas das dúvidas — e mitos – que têm circulado. E isto é que tem para dizer:
A primeira coisa que Curry quis saber foi se este novo coronavírus é ou não como a gripe sazonal. O covid-19 "é similar em alguns aspetos", nomeadamente por ser "uma doença respiratória que pode evoluir para pneumonia". No entanto, há diferenças importantes a considerar diz Fauci: "é muito mais transmissível que a gripe e, mais importante, é significativamente mais séria".
"Deixa-me dar-te uns números rápidos: a mortalidade da gripe sazonal, que enfrentamos todos os anos, é de 0,1%; a mortalidade coronavírus é de cerca de 1% — e às vezes, como na China, até de 2 ou 3%. Isto significa que é [um vírus] dez vezes mais sério que a gripe típica", explicou.
Já sobre o "mito" de que os mais novos estão isentos do risco, porque este só afeta de forma grave pessoas idosas ou com problemas de saúde prévios, Fauci deita uma pedrada no charco: "O que estamos a começar a ver são pessoas mais novas, mais ou menos da tua idade, sem problemas prévios, que estão também a ficar gravemente doentes. Ainda é uma minoria, mas significa que as pessoas mais novas não podem sentir-se isentas de qualquer risco".
Apesar de assumir que — com base no que aconteceu ou está a acontecer na China, Coreia do Sul e Europa — o vírus ser "razoavelmente benigno" para os jovens, o caso é muito diferente com idosos e pessoas com condições de saúde prévias: "idosos e pessoas com doenças prévias, como problemas de coração, problemas respiratórios, diabetes, problemas renais, essas são as pessoas que têm um grau de mortalidade maior".
"Por isso é que salientamos a importância de ter cuidado, da distancia física, do isolamento social. Isso não é só importante para os mais velhos, mas os mais novos devem fazê-lo também por duas razões: em primeiro lugar, precisas de te proteger a ti mesmo porque não estás livre de ficar seriamente doente; em segundo lugar, podes tornar-te um veículo de infeção porque quando ficas infetado e te sentes bem podes inadvertidamente transmitir isto aos teus avós, aos teus tios, que por exemplo estão a fazer quimioterapia. E é por isso que precisamos de ter cuidado".
"Temos a responsabilidade de proteger os mais vulneráveis. E os mais vulneráveis são os mais idosos e aqueles que têm condições de saúde prévias. Temos de garantir que eles estão protegidos disto", reiterou.
Questionado sobre quando é que se pode pensar em aliviar as restrições em vigor — que por exemplo impedem a realização de grandes eventos como jogos de NBA — Fauci aproveitou a oportunidade para explicar como funciona a curva de um surto.
"Nós podemos ponderar voltar a alguma normalidade quando o país como um todo tiver feito a curva do pico do surto e começar a descer", resumiu, fazendo com o dedo o sinal de uma onda. Ou seja, "precisas de ver a trajetória da curva do surto baixar. Vimos isso na China: eles aumentaram [o número de casos] e depois baixaram e só aí retomaram a vida normal. Agora eles têm de ter cuidado para não reintroduzir o vírus na China. A Coreia do Sul está a começar a descer na curva. Já a Europa está numa situação terrível, eles ainda estão a subir [no número de casos]".
Também nos EUA muitos se questionam sobre quando devem fazer um teste para covid-19, como podem ter acesso e que testes existem.
"Se alguém agora ficar com sintomas de gripe, como febre, dores musculares e tosse, a primeira coisa a fazer é ficar em casa. Não vás às urgências porque dessa forma pode infetar outros", alerta Fauci. Então o que fazer? "Telefona para um médico ou uma enfermeira, segue as suas instruções e se possível faz um teste. Mas o que é crítico é não inundar as urgências. Claro que se estiveres seriamente doente terás de ir às urgências, mas se são só dores musculares fica onde estás e fala com o teu médico", reiterou.
Em Portugal, a Direção Geral de Saúde faz um apelo semelhante: se desconfia de infeção não corra para as urgências ou para o centro de saúde. Fique em casa, ligue para o SNS24 (808 24 24 24) e siga as instruções que lhe forem dadas.
Ainda sobre os testes, no caso dos EUA, explica o especialista, o Estado decidiu envolver o sector privado na produção e realização de testes, pelo que a expectativa é de um maior acesso a quem sentir necessidade de os realizar no futuro próximo.
Depois é de referi que existem "dois tipos de teste: um é para determinar se estás agora infetado; o outro determina se em algum momento estiveste infetado. Trata-se de um teste de anti-corpos que é mais rápido e mais barato. São esses testes que nos dizem quantas pessoas estiveram infetadas em algum momento e recuperaram — e essa é uma informação importante que precisamos de ter".
Porquê? A explicação vem logo se seguida: "Ainda não fizemos testes para determinar se uma pessoa pode ficar infetada uma segunda vez, mas se este vírus agir como os similares que conhecemos, são grandes as hipóteses de, uma vez recuperado, não ficares infetado novamente. O que significa que aí podes sair, podes estar junto da comunidade de forma segura, podes ser imune (...) e terás aquilo a que chamamos imunidade de grupo: se pessoas suficientes recuperarem na comunidade isso dá ao vírus poucas hipóteses de se espalhar rapidamente". Ou seja, pessoas imunes acabam por servir de escudo para pessoas não imunes. Todavia, ainda está por apurar se no caso do covid-19 tal se aplica.
Porque está tudo a contar os dias para regressar à normalidade, Stephen Curry perguntou ao especialista quando é que é seguro voltar a sair à rua depois de se estar infetado com o novo coronavírus: "A regra geral é de que deves ter dois testes negativos com uma diferença de 24 horas entre eles. À medida que mais pessoas ficarem infetadas, é provável que não seja realista fazer isso. Então vamos ter de definir x dias a partir da diminuição de sintomas para ser seguro sair. Mas não estamos nesse ponto ainda", explicou.
Com o verão a aproximar-se é inevitável questionar se o tempo quente no hemisfério norte vai ajudar a combater este surto. "Com outros vírus sazonais como a gripe, com que lidamos todos os anos, assim como outros coronavírus que são mais benignos, é verdade: os vírus tendem a dar-se pior em tempos quentes e húmidos, e melhor em tempos frios e secos. (...) A questão é que nós não sabemos se isso vai acontecer com este vírus, porque é a primeira vez que estamos a lidar com ele", assumiu o especialista.
Questionado sobre a possibilidade de uma vacina, Fauci explicou porque é que esta pode demorar entre um ano a um ano de meio a ser desenvolvida: "Começámos a desenvolver uma vacina mais rápido do que na história de qualquer outro vírus (...), mas para testar uma vacina são precisas multiplas fases. A primeira coisa que tens de fazer é garantir que é segura e começámos isso há umas semanas. Quando descobres que é segura e responde da forma como queres que ela responda, então fazes o teste em várias pessoas, em centenas ou milhares, para determinar se funciona. E isso pode levar mais uns oito meses. Então, quando juntas os três ou quatro meses da fase um, mais sete ou oito meses da fase dois tens um ano, um ano e meio, mais ou menos" de espera.
No entanto, o especialista acredita que com o esforço certo é possível que por altura do próximo inverno estejamos capazes de saber se há uma vacina viável contra este coronavírus — até porque a sua expectativa de que o covid-19 não desapareça tão cedo. "Este vírus é muito transmissível, por isso não imagino que vá só desaparecer. As vacinas vão ser importantes para a próxima ronda, mas não para aquilo com que estamos a lidar agora".
Com uma nota de esperança, acrescentou que a sua expectativa é de que, mesmo que o vírus volte numa nova temporada, estejamos todos muito mais preparados para o combater, isto é, com "capacidade para identificar prontamente, isolar e traçar as vias de transmissão. Se fizeres isso de forma eficaz não tens um surto porque consegues conter num momento muito inicial".
Já perto do final da entrevista, o jogador dos Golden State Warriors quis saber se afinal devemos ou não utilizar todos máscara. Fauci diz que é uma questão de prioridades — e de não cair no erro da falsa segurança.
"Tens de priorizar quem precisa de uma máscara e quem a deve usar. Antes de mais, devem usar máscara os prestadores de cuidados de saúde, os médicos e enfermeiros que estão a tomar conta com alguém com coronavírus. O que aconteceu em Itália e na China é que [sem proteção] podes ter um knock out [referência a deixar sem sentidos no boxe] da tua força de profissionais de saúde e depois estás mesmo em problemas. Depois, se estás infetado deves colocar uma máscara para prevenir que contagies outros. A terceira prioridade é a população geral — que pode assumir que ao usar uma máscara está 100% protegida, o que não é verdade, [a proteção] é cerca de 50%. Por isso quando dizemos que não precisas de usar uma máscara, o que estamos verdadeiramente a dizer é que é preciso priorizar o uso de máscaras para quem delas realmente precisa".
Considerando que o seu papel tem sido, ao longo das últimas semanas, manter os norte-americanos informados e aconselhar a Casa Branca, Curry perguntou a Fauci a que mito gostaria de deixar knock out.
"Tens de conseguir que as pessoas percebam que estamos a lidar com um problema sério. É algo que modifica as nossas vidas, não é conveniente ficar fechado em casa e inibirmo-nos de fazer coisas, não é conveniente para ti não jogar basquetebol, mas é tempo de o país ficar unido, não podemos ficar assustados ou intimidados, mas temos de usar a energia que temos para confrontar este problema e pôr-lhe um ponto final. Quero acabar com esta conceção errada de que ou o mundo vai acabar ou não temos de fazer nada. Não é isso, é algo no meio".
Conversa terminada, o facto é que para muitos fãs nas redes sociais, com este vídeo, Stephen Curry fez um dos melhores 'lançamentos' da sua carreira.
(Notícia atualizada às 23:02. Atualiza o número de infetados nos Estados Unidos)
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