Passaram sete meses desde a Jornada Mundial da Juventude (JMJ), mas ainda há muito a dizer e várias contas a serem feitas. Prova disso é o alerta de hoje, por parte do Tribunal de Contas (TdC), que veio chamar a atenção dos responsáveis pelo encontro para o excesso de adjudicações por ajuste direto, que representaram mais de metade dos contratos.

O que está em causa?

Segundo o relatório de auditoria às contas do evento da Igreja Católica, realizado em Lisboa em agosto do ano passado, foram reportados ao TdC 432 contratos, incluindo as respetivas modificações, no valor global de 64.131.635,89 euros, abaixo dos 75 milhões de euros previstos inicialmente, prevalecendo o ajuste direto, com 55,05% do valor adjudicado – 34.454.650,72 euros.

“Tendo em conta que a realização da JMJ2023 em Lisboa foi anunciada pelo Vaticano em 27/01/2019, não são inteiramente razoáveis as razões invocadas naquele regime especial permissivo para o ajuste direto”, observou o TdC no relatório hoje divulgado.

De acordo com o TdC, o legislador poderia “ter optado por um regime menos restritivo da concorrência”, como a consulta prévia com convite a, pelo menos, cinco entidades, depois de se ter verificado a existência de “uma situação de urgência”.

“Não sendo este um processo concorrencial, sempre permitiria a obtenção de mais propostas para escolha da melhor e assim ficaria mais bem assegurado o interesse público”, indicou.

O TdC avisou ainda a Assembleia da República e o Governo que, “em situações futuras e relacionadas com a realização de eventos que impliquem a celebração de contratos públicos, diligenciem atempadamente pela sua organização, não aprovando regimes especiais que derroguem os procedimentos que salvaguardam a concorrência”.

Os três contratos que constituíram o objeto da auditora são referentes às fundações e à construção do altar-palco e aos terrenos da Bobadela, tendo sido adjudicados pelos valores de 1.063.937,62 euros, 2.980.000,00 euros e 4.285.094,23 euros, respetivamente, na sequência de procedimentos por ajuste direto e consulta prévia, por aplicação do regime especial de contratação pública.

“Constatou-se, ainda assim, que um volume significativo de dinheiro público foi subtraído à concorrência. Caso não tivesse sido aprovado aquele regime especial constante das LOE [Lei do Orçamento de Estado] de 2022 e 2023, cada um destes contratos teria de ter sido precedido de concurso público ou limitado por prévia qualificação”, salientou o TdC.

Quanto foi gasto na JMJ?

O custo final da empreitada das fundações indiretas da cobertura do altar-palco foi de 1.104.917,34 euros, representando um acréscimo de 3,85 % do valor inicial.

Já a empreitada de construção do altar-palco teve um custo total de 2.959.128,05 euros, representando um decréscimo de 0,70 % do preço contratual modificado e 30,21 % do valor contratado inicialmente.

O valor inicial previsto para a construção do altar-palco no Parque Tejo-Trancão - 4.240.000,00 euros - gerou polémica pelo elevado montante o que levou a uma redução para 2.980.000,00 euros.

Por seu lado, a empreitada de preparação dos terrenos da Zona Ribeirinha da Bobadela foi adjudicada por consulta prévia e o custo final foi de 3.937.860,47 euros, representando um decréscimo de 8,10 % do valor inicial.

O relatório indica ainda 66 contratos de empreitada, avaliados em 34.653.160,49 euros, 108 de aquisição de bens (5.531.697,23 euros), 199 de aquisição de serviços (19.788.156,63 euros), 53 contratos de locação de bens (2.768.358,34 euros), um contrato de aquisição de bens móveis (1.148.248,00 euros), um contrato de aquisição e locação de bens móveis, dois de aquisição de serviços e locação de bens e dois de aquisição de bens e serviços (242.015,19 euros).

O Tribunal de Contas refere que outros 71 contratos – num valor de 34.06.546,85 euros – representam investimentos para o futuro.

Como reagiu a Fundação JMJ Lisboa 2023 a estas conclusões?

O presidente da Fundação, cardeal D. Américo Aguiar, elogiou o contributo do Tribunal de Contas.

“O relatório do Tribunal de Contas referente aos apoios públicos à realização da JMJ Lisboa 2023 é um sinal muito positivo do normal funcionamento das instituições nacionais”, salientou o bispo de Setúbal numa mensagem enviada às redações.

Sem nunca se referir ao excesso de adjudicações por ajuste direto, D. Américo Aguiar lembrou que o “escrutínio e a transparência na utilização dos investimentos públicos são bases fundamentais de funcionamento de uma sociedade democrática”.

Referindo que não lhe compete, enquanto presidente da Fundação JMJ Lisboa, “tecer considerações” sobre o trabalho do TdC, destacou apenas a importância da “tarefa de fiscalização” daquele tribunal.

“As recomendações do Tribunal de Contas são importantes contributos para a melhoria dos procedimentos na Administração Pública e um incentivo para continuar um caminho de progresso no sentido do bem comum”, sublinhou.

D. Américo Aguiar agradeceu ainda à Presidência da República, ao Governo e, entre outras entidades públicas, às autarquias de Lisboa, Loures, Oeiras e Cascais, dizendo que foram “incansáveis na preparação e vivência” do evento, desde a primeira hora.

Além disso, o bispo de Setúbal garantiu que as contas finais do evento da Igreja Católica deverão ser apresentadas publicamente até maio, assim que a Delloite concluir a auditoria.

“Todos os portugueses vão ter acesso a toda a informação e – na liberdade que nos caracteriza a todos e que deve caracterizar o regime de direito neste Estado de direito em que vivemos – depois cada um acha bem ou acha mal, concorda ou discorda”, observou.

De recordar que a Fundação JMJ Lisboa 2023 previa apresentar publicamente no primeiro trimestre deste ano as contas finais do encontro mundial de jovens com o Papa realizado em agosto, com a expectativa de lucro.

O que diz a Câmara de Lisboa?

O vice-presidente da Câmara de Lisboa enalteceu também o escrutínio do Tribunal de Contas. “Não obstante a grande dificuldade ou o grande desafio que representou a organização da JMJ, na câmara tivemos 236 procedimentos e de todos aqueles que foram analisados pelo TdC não há nenhum reparo de ilegalidade. Não há indicação de ilegalidade em relação a nenhum procedimento e isso deixa-nos naturalmente muito satisfeitos”, declarou Filipe Anacoreta Correia (CDS-PP), em declarações à agência Lusa.

Relativamente ao excesso de contratos por ajuste direto, o vice-presidente da CML concordou com a conclusão do TdC, defendendo que, se o trabalho de preparação da JMJ tivesse começado antes, “provavelmente não seria necessário este recurso”.

Anacoreta Correia lembrou que o atual executivo municipal tomou posse em outubro de 2021 e “nessa altura apenas dois dos 236 procedimentos tinham começado, um deles tinha começado uma semana antes das eleições [em 26 de setembro de 2021]”, considerando “um pouco estranho”, uma vez que o evento da JMJ foi anunciado em 2019.

Além disso, o memorando que foi assinado entre as várias entidades envolvidas na JMJ “foi apenas fechado no final do segundo semestre de 2022”, apontou o autarca de Lisboa, reforçando que “poderia ter havido outro planeamento”.

Apesar de “metade do valor” despendido pela CML ter sido com recurso a ajustes diretos, no montante global de 34 milhões de euros, Anacoreta Correia sublinhou que “sempre que possível” o município consultou o mercado, pelo menos três fornecedores, e escolheu o melhor preço para cada contrato.

“Conseguimos ficar abaixo do orçamento, que era de 35 milhões de euros e ficou em 34 milhões de euros, portanto não há evidência que o recurso ao ajuste direto tenha representado um agravamento do orçamento, pelo contrário”, indicou o vice-presidente, ressalvando que entende e valoriza o escrutínio do TdC.

Dando como exemplo a obra do altar-palco no Parque Tejo, o autarca explicou que, embora a CML estivesse legalmente habilitada a fazer um ajuste direto sem consulta ao mercado, a opção do município foi avaliar propostas de sete empresas, que tiveram de “disputar o melhor preço”.

Além disso, a empresa escolhida teve de repensar a empreitada, para uma diminuição do custo, de 4,2 para 2,9 milhões de euros, e prescindiu de 20% de indemnização a que nos termos da lei tinha direito, lembrou, destacando o empenho de todas as entidades com quem a CML se relacionou na gestão deste processo para a JMJ.

“Apesar de ser ajuste direto formalmente, não foi um processo que possamos dizer que em absoluto excluiu a concorrência”, apontou o vice-presidente da CML, acrescentando que houve uma preocupação de salvaguarda do interesse público, de procurar encontrar concorrentes e de não acarretar um acréscimo de custo para o erário público.

Anacoreta Correia referiu ainda a indicação do TdC de que “apenas cerca de metade do valor despendido na JMJ fica para o futuro”, afirmando que no caso de Lisboa “essa percentagem é muito superior”, na ordem dos 70%, uma vez que, dos 34 milhões de euros investidos, cerca de 25 milhões ficam na cidade, inclusive instalações sanitárias, equipamento dos bombeiros e da Polícia Municipal.

Apesar de todas as justificações, a oposição não ficou calada: o PS na Câmara de Lisboa acusou a liderança PSD/CDS-PP de desresponsabilização pelos ajustes diretos no âmbito da JMJ, afirmando que os dois contratos lançados pelo anterior executivo foram através de concurso público internacional.

E o Governo?

“Os ajustes diretos ajudaram à concretização da obra, mas sem nunca pôr em causa a aplicação correta dos dinheiros públicos e a transparência da organização, por parte do Governo”, defendeu em comunicado o gabinete da ministra Adjunta e dos Assuntos Parlamentares, Ana Catarina Mendes, que teve a tutela do planeamento do evento da Igreja Católica no Governo.

O gabinete lembrou também que o relatório do TdC é “globalmente positivo na avaliação”.

Sobre as falhas apontadas ao planeamento, a tutela de Ana Catarina Mendes apontou que a pandemia de covid-19, entre 2020 e 2022, “colocou muitos entraves na organização política e social do país (e de todo o mundo)”, levando ao adiamento da data inicial da JMJ, de 2022 para 2023.

Também assinalou que, em 2021, se verificou a dissolução do parlamento, e consequente convocação de eleições legislativas, atrasando “uma preparação mais atempada do evento”.

O departamento governamental referiu também que “não se verificaram desvios aos gastos orçamentados”, com o montante dos procedimentos a totalizarem 18,24 milhões de euros, correspondendo a “cerca de 91% do orçamento inicialmente definido para este efeito (20 milhões de euros)”.

O Governo acrescentou que foram promovidos um total de 56 procedimentos: cinco concursos públicos ou procedimentos sujeitos a visto prévio do TdC, com um total de 15,33 milhões de euros (84% do montante em análise), três procedimentos de contratação excluída, de 684,63 mil euros (4% do montante em análise), 26 ajustes diretos (sem recurso à regra de exceção constante do OE), com um total de 238,11 mil euros (1% do montante em análise) e 22 ajustes diretos (com recurso à regra de exceção constante do OE), com um total de 1,99 milhões de euros (11 % do montante em análise).

No caso dos cinco concursos públicos ou procedimentos sujeitos a visto prévio do TdC, se forem considerados os contratos remetidos para fiscalização, o montante aumenta para 17,21 milhões de euros (94% do montante em análise).

*Com Lusa