A gravação de dois minutos e 16 segundos não mostra precisamente os tiros, mas captura os momentos que levaram até esse momento, quando a mulher de Keith Lamont Scott, de 43 anos, pedia aos polícias que não atirassem. "Não atirem. Não atirem, ele não tem uma arma. Não tem arma. Não atirem", diz a mulher no início da filmagem. "Ele tem uma TBI, não vai fazer nada, rapazes", continua, aparentemente se referindo a uma lesão cerebral (traumatic brain injury). Muitos vizinhos do casal disseram à AFP que Scott era deficiente e tinha problemas de fala. "Keith, não faz isso", diz a sua mulher, Rakeyia Scott, pouco antes de se escutar o som de quatro rápidos disparos, momento em que o telemóvel se desvia do local dos tiros. Depois Scott cai no asfalto, rodeado por polícias.
A polícia de Charlotte, na Carolina do Norte, recusou-se até aqui a mostrar as imagens feitas na terça-feira, dia 20, pelas suas próprias câmaras e que supostamente mostram Keith Lamont Scott como uma ameaça para as forças policiais. Mas ontem, os advogados de Rakeyia Scott entregaram a vários meios de comunicação, o vídeo gravado no seu smartphone e que deverá aumentar a pressão sobre as autoridades de Charlotte para revelar as suas próprias imagens.
Na noite de quinta-feira, centenas de pessoas protestaram nas ruas de Charlotte, sob a vigilância das forças de ordem, apesar de estar declarado o toque de recolher obrigatório da meia-noite às 06H00 local. Durante as manifestações, que exigiam a publicação do vídeo da polícia, foram registados episódios de violência com polícias a dispersar um grupo com gás lacrimogéneo, ainda que tenha sido uma noite menos turbulenta do que as dos dias anteriores.
Na quinta-feira, a polícia aceitou mostrar aos pais de Scott as imagens registadas durante sua morte. Porém não chegaram a esclarecer o principal ponto de discórdia entre as forças policiais, que afirmam que Scott tinha uma arma na mão, e os seus familiares, que asseguram que se tratava de um livro.
"O vídeo deve ser publicado", disse ontem a presidente da câmara de Charlotte, Jennifer Roberts, em conferência de imprensa, assegurando que "é uma questão de tempo". A investigação ainda está em curso, afirmou. "Se uma parte (do relatório) for divulgada antes, isso pode colocar em risco a investigação no seu conjunto".
A chefe da polícia local, Kerr Putney, assegurou saber da "espera" pelo vídeo, que é visto "como a panaceia" do caso. "Mas posso dizer-vos que não é", afirmou, sugerindo que as imagens não permitirão determinar eventuais responsáveis. "Se eu divulgo como está e não coloco num bom contexto, (o vídeo) pode lançar lenha na fogueira e piorar a situação. Isso aumentaria a desconfiança", acrescentou.
Hillary Clinton adia visita a Charlotte
A declaração soou como uma resposta à chuva de críticas contra a polícia. A candidata democrata à Presidência, Hillary Clinton, solicitou, na sua conta no Twitter, que os vídeos da polícia sobre a morte de Scott sejam divulgados. Clinton, que pretendia visitar Charlotte no domingo, adiou a viagem após um apelo de Jennifer Roberts. A autarca pediu a Clinton e ao seu adversário republicano, Donald Trump, que adiem as suas visitas face à falta de recursos para garantir a segurança dos candidatos. "Após discutir profundamente com os líderes da comunidade, decidimos adiar a viagem de domingo para não afetar os recursos da cidade", declarou um assessor de Hillary Clinton.
O secretário de Justiça da Carolina do Norte, Roy Cooper, considerou ontem que a melhor forma de "procurar a verdade" é "publicando os vídeos". A secretária de Justiça americana, Loretta Lynch, também se pronunciou de forma indireta a favor da divulgação das imagens. "Não vou dar ordens à polícia por enquanto", disse na quinta-feira. "Penso sempre que, nas situações onde a informação é publicada, ainda que essa informação seja difícil de ver, o facto de oferecer uma maior transparência é mais útil do que o contrário". Este foi o caso, há uma semana, em Tulsa, estado de Oklahoma, onde um homem negro, Terence Crutcher, foi morto pela polícia no dia 16 de setembro depois de ser interpelado por agentes e caminhar com as mãos ao alto até ao seu carro. A polícia que fez o disparo foi acusada na quinta-feira de homicídio culposo. Após ter sido alvo de uma ordem de prisão, foi libertada ontem depois de pagar uma fiança de 50.000 dólares.
Charlotte viveu três noites consecutivas de protestos e atos de violência após a morte de Keith Lamont Scott, situação que levou o governador da Carolina do Norte a declarar o estado de emergência. A noite de quinta-feira foi mais tranquila. Centenas de manifestantes protestaram, cantando pelo centro da cidade e levando cartazes onde podiam ler-se mensagens como "Parem de nos matar" ou "A resistência é bela". Exceptuando-se algumas pessoas que foram dispersadas com gás lacrimogéneo numa avenida, não foi registaada violência na cidade, onde a manifestação decorreu ao lado de soldados da Guarda Nacional que foram chamados para reforçar a segurança.
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