A Kelly é portuguesa?

Sim. Tenho passaporte e cartão de cidadão.

Os seus avós eram portugueses?

Os meus pais.

Mas você disse que os seus pais fugiram do salazarismo, que acabou em 1974.

O meu pai nasceu em 1938.

Portanto, o seu pai teve-a já com uma certa idade.

Não sei se é com uma certa idade, mas foi na terceira parte da vida, sim. E ainda tenho um irmão mais novo. O meu pai foi para França com 19/20 anos, porque não queria fazer o serviço militar. Acho que se chamava “ir a salto”. Desertou.

E você começou a sua vida profissional como modelo? Em Paris?

Sim, na agência VIP Models.

Foi esse trabalho que a levou a Nova Iorque?

Não, não. Fui estudar numa escola de fotografia.

De que fotógrafos gosta?

Martin Parr, Jerome Sessini, da Agência Magnum... Eu normalmente viro-me mais para fotografia de reportagem. Dos artistas, gosto de Arnaud Kifcat, que trabalha com colagens.

Eu, que fui fotógrafo, gosto mais dos artistas mais antigos. Dos franceses, Lartigue, Guy Bourdin, Jeanloup Sieff, por exemplo.

Sim, o Sieff  é muito interessante. Agora está uma exposição em Paris do Martin Parr, sobre turistas no mundo a fazer figuras tristes. Chama-se “Only Human”. É só rir.

Os americanos é que têm ótimos fotógrafos do quotidiano surpreendente.

Ah, sim, gosto muito do trabalho da Viviane Maier, que era babysitter...

Sim, sim, conheço as fotografias dela, extraordinárias. Era muito discreta, só depois de morrer é que se descobriu o arquivo dela. Usava uma Rolleiflex. A Diane Airbus, via as pessoas de uma maneira de certo modo sinistra. Suicidou-se, aliás.

Muita gente que trabalha com isto acaba tragicamente [risos].

Então, foi para Nova Iorque como modelo e depois decidiu passar para o outro lado da câmara.

Não, não, eu fui mesmo para estudar fotografia no International Center of Photography.

E depois continuou a sua carreira como fotógrafa, mais do que modelo?

Sim, sim. Para já, não podia ser modelo de passerelle, não tenho altura para isso e sou mais “cheia” do que a norma. Sempre trabalhei mais para catálogos, publicidade, lingerie. Depois deixei de me identificar com isso. Fiz uma escola de atores, mas vi que não ia para a frente - só me davam trabalho de publicidade, que não era bem o que eu queria.

Ser modelo ou ser atriz são coisas completamente diferentes, não é?

Para mim são atividades muito ligadas, no entanto percebo o seu ponto de vista.

O ator tem de ter a capacidade de incorporar outra personalidade.

Acho que o modelo também. É uma vertente valorizante para a modelo ter feito uma escola de representação teatral, porque ela também encarna um papel. Acho que muitas modelos são desvalorizadas por serem só modelos.

créditos: MadreMedia | Tomás Carranca

As passagens de moda mudaram muito, mesmo muito, nos últimos anos. Tornaram-se cada vez mais espetáculos.

Hoje em dia vê-se que casas como a Dior trabalham com artistas como a Cadot, que fazem trabalhos bordados por miúdas do mundo inteiro e que já trazem uma mensagem mais política. Acho que algumas modelos também se identificam com isso. Muitas desta geração que faz passerelle agora é de ativistas, além de serem modelos.

E quando é que conheceu o seu marido [Julien Dassault, da famosa família francesa que constrói os caças a jacto Mirage)?

Em 2014. Temos quatro filhos. O mais novo tem 18 meses e a mais velha 11 anos. Obviamente, não sou mãe dela. Os quatro filhos são nossos, quer dizer, criados na minha casa, e sou a mãe biológica de três deles.

Acho que a forma da família está a mudar muito. Madrasta é uma palavra que soa mal em português, nos filmes é sempre uma pessoa muito má, mas eu encaro esta filha como sendo minha. E apresento-a sempre como tal.

E porque é que escolheram Portugal para viver e trabalhar?

Para já, porque eu sempre tive uma ligação muito forte a Portugal, e quando conheci o Julien ele tinha vivido dez anos fora de França, nos Estados Unidos. Voltar a França foi um choque um pouco intenso e pensámos que viver uns anos e dar às nossas crianças e ao nosso projeto empresarial um início português fazia todo o sentido.

Julien, viveu onde, nos Estados Unidos?

Em Nova Iorque e no Arkansas.

No Arkansas?

Obviamente, foi obrigado [risos].

Pois, o Arkansas é para lá do sol posto... Mas vocês conheceram-se nos Estados Unidos?

Não, não, conhecemo-nos em Paris. Eu tinha acabado de regressar da escola de fotografia e o Julien da sua estadia no Arkansas.

Kelly, você acha que Lisboa, hoje em dia, é um bom centro para desenvolver ideias novas?

Eu espero bem que sim!

Mas há razões concretas, com certeza.

A minha família vive em França. Aqui podemos oferecer um estilo de vida aos nossos filhos em que aos fins de semana vamos à praia, etc. Respiram um ar menos poluído, é uma vida mais calma. Mas também foi bastante bom para o nosso projeto empresarial, porque aprendemos muita coisa, mesmo as regras portuguesas, sendo muito próprias do país... Foi uma experiência muito interessante adaptar-nos ao sistema.

Vocês têm várias empresas?

Nós temos um grupo chamado Maison Julien et Kelly Dassault, que inclui várias empresas. 27/Lisboa, Portugal, 27 Estúdio, já aqui em baixo (Rua do Loreto), que é um Instituto de Beleza, e temos a Santos/Dassault que compra, renova e vende imobiliário. Também temos investimentos em França.

Muito recentemente acabámos de investir numa empresa portuguesa de sapatos que está a desenvolver sapatilhas vegan. Acreditamos muito nesse tipo de projetos, por isso escolhemos essa marca, a Jak, e também a Diversify, que é uma plataforma de investimento para todos. Temos ainda um projeto de residências para progenitores, homens ou mulheres que vivem sozinhos e vão poder viver em conjunto com outros progenitores, com um serviço comum de limpeza, compras, babysitters, e também com aconselhamento jurídico, porque a justiça acaba por ser sempre demasiado cara e pouco acessível.

Acha a justiça portuguesa particularmente difícil?

Acho a justiça em geral muito difícil. Todo o ser humano deveria poder ser defendido...

Nós aqui achamos que a justiça é particularmente lenta e ineficiente.

Muita gente se queixa muito de muita coisa... Eu tive os meus dois últimos filhos no hospital público em Portugal e acho que fui muito mais bem tratada do que quando tive o meu primeiro filho num hospital privado em França.

Os hospitais públicos na Europa, em geral são muito bons. Um grande problema nos Estados Unidos é não terem sistema de saúde público.

Em Portugal há coisas que funcionam muito bem, e o sistema de saúde é uma delas.

Sim, é verdade. Certas especialidades têm tempos de espera muito longos, mas o normal é bastante bom e completamente gratuito. Em França também é, não é?

Bem, eu, como estive num hospital privado, antes de chegar ao quarto pediram-me um cheque.

Nos Estados Unidos eles têm um sistema interessante. À entrada, pedem o seguro da pessoa. Se não têm, é o hospital que tem um seguro para esses casos.

Eu acho que há muita coisa que funciona muito bem em Portugal e é preciso admitir isso.

A nossa democracia é melhor do que a americana, embora ninguém se lembre de fazer a comparação.

Em Portugal a juventude está muito envolvida, temos aqui malta nova motivada e com vontade de avançar. Embora na nossa equipa não haja só pessoas novas, eu vejo um dinamismo muito grande nos jovens.

créditos: MadreMedia | Tomás Carranca

Os jovens têm tantas opções que acabam por se perder um pouco. Quando eu era jovem, havia uma série de profissões bem definidas, e hoje em dia há milhares de “novas profissões” que, paradoxalmente, tornam a escolha mais complicada.

Sim, sim. Já não é a minha geração, mas estamos a tentar acompanhar isto ao formá-los. Porque nós, como pais, temos de perceber que os miúdos não vão poder ser só médicos ou advogados. Há uma vertente de trabalhos que é difícil prepará-los para isso, porque não sabemos quais são as oportunidades para daqui a vinte anos. Temos que os ensinar a ser mais flexíveis nas suas escolhas.

Para já, hoje os jovens têm à sua frente o mercado europeu, as fronteiras são muito mais vastas.

E agora, com a Inteligência Artificial (AI) a chegar, para os ajudar nas suas motivações, ainda mais.

Acredita nas possibilidades da Inteligência Artificial (IA)?

Acho maravilhoso. Temos de acompanhar isto, porque chegou, está nas nossas vidas. Dou-lhe um exemplo: tenho um amigo que está com um cancro muito, muito complicado. E eu queria dar-lhe prendas. Não tendo experiência com essa situação, mandava-lhe flores e doces. E uma amiga disse-me: “não lhe dês chocolates porque o apetite fica muito baixo com o tratamento”. Fui pedir informações ao ChatGTP (um motor de busca movido por IA). O programa deu-me vinte escolhas. Ontem almocei com o filho do meu amigo e disse-lhe que uma das escolhas era oferecer uma manta, porque as pessoas a seguir um tratamento para o cancro podem ter muito frio. E ele lembrou-se que o pai realmente está sempre com frio.

Você acredita no futuro!

Acredito. Ainda vou estar aqui mais cinquenta anos, o melhor é acreditar. A minha vida tem mudado constantemente. Tenho telemóvel, GoogleMaps, a Internet constantemente na mão.

Mas, na vida em geral, os últimos anos não foram muito otimistas. Começou com a pandemia, em seguida com a guerra na Ucrânia...

Com a Covid-19 e o teletrabalho aprendemos muito sobre as ferramentas que as nossas equipas podem usar para trabalhar em conjunto à distância. Além de ver isso como uma mais-valia, acredito muito que nos próximos anos podemos avançar para a semana de quatro dias - já implementei esse horário com algumas das minhas equipas fora e está a funcionar muito bem. Fazem as horas deles, que são muitas, da segunda à quinta.

Não a preocupa as assimetrias? Quero dizer: nós temos uma Europa altamente evoluída, temos uns Estados Unidos que não são tão evoluídos quanto eles julgam, e depois países que fornecem a mão de obra barata e onde realmente a vida é miserável. Acha que a tendência é para uma diminuição dessas assimetrias?

Eu espero bem que sim. Se eu me lembro, quando eu era miúda, e só tenho 35 anos, as estradas em Portugal não eram o que são hoje, por exemplo. Os fundos europeus trouxeram uma grande mais-valia à nossa cultura e ao país em geral. Ainda usando o mesmo exemplo, as nossas autoestradas são muito melhores do que em França, porque são mais recentes. Eu acredito muito que no que as empresas podem fazer. Como dirijo empresas, só posso falar da minha experiência: revertemos parte da nossa receita anual num fundo de dotação que temos, o Julien e eu, para aplicar em pesquisa médica e para atenuar as diferenças de género. As empresas onde investimos têm de assinar um compromisso de ética que obriga a verificar que não há crianças envolvidas nos fornecimentos de fora da Europa, que as pessoas são pagas segundo a Paridade do Poder de Compra local e que o recrutamento tem de dar igualdade de oportunidade aos dois géneros. Até agora, vou ser honesta, é uma coisa que nem sempre conseguimos, mas estamos a tentar.

Bem, essa perfeita igualdade de género não existe nem na Europa.

Veja isto: se aqui eu abrir uma vaga de marketing, vou receber 80% ou 90% de currículos de mulheres. Se quero entrevistar para essa vaga um homem e uma mulher, tenho muita dificuldade em encontrar um homem ao mesmo nível.

Uma coisa interessante, que pouca gente sabe, é que a maioria dos nossos juízes são mulheres.

Ainda bem! São mais... pum! [risos]

Não sei... As mulheres são mais diligentes a fazer o seu trabalho, isso com certeza.

Também, quando eu quero recrutar um técnico de finanças, as mulheres são maioria. Sempre me disseram, desde pequenina, que eu não era boa em números e agora percebi que afinal isso não é verdade. Já me explicaram que é assim: quando não se dá oportunidade a uma pessoa, ela julga que não tem esse valor. Desde criança que as pessoas dizem: “ai o menino vai para matemática; a menina vai para comunicação, cuidados paliativos...”. Nós formamos as mulheres muito mais para enfermagem, terapias e profissões assim, porque assumimos, já em criança, que as mulheres são melhores nessas áreas. Agora, que sou formada em gestão empresarial, acho que sou tão boa como o meu marido.

Não há dúvida nenhuma sobre a existência desses preconceitos. Aliás, uma amiga minha, a Sarah Adamoupoulos, disse-me uma vez uma coisa que me impressionou e em que nunca tinha pensado: os homens, todos os homens, são criados por mulheres. Portanto, o facto de os homens serem machistas tem muito a ver com a maneira como as mulheres os educam.

Exatamente. Quando eu vejo alguém dizer aos meus filhos uma coisa como “queres o copo, eu levo-te”, eu respondo que não. Não, ele tem duas mãozinhas, ele leva o seu copo. Não é por eu não querer fazer um mimo à criança, é porque eu acho que não é preciso um mestrado para por uma máquina de lavar a funcionar.

Mas vai demorar muito tempo até a igualdade de género ser completamente praticada.

Não, não, eu acho que é já na próxima geração. Já vi um filho meu a andar pela casa com um bebé de plástico ao colo e a dizer que lhe ia dar de mamar. E eu disse-lhe que o corpo dele não é igual ao meu. “A única coisa que não poderás fazer ao teu filho é dar peito. Mas mudar fraldas, dar banho, cuidado e carinho, isso podes e deves".Nas gerações anteriores isso não se partilhava, nem fazia parte da educação.

créditos: MadreMedia | Tomás Carranca

Agora, outra coisa: não é um bocado chato trabalhar com a pessoa com quem se é casado?

Não. Eu acredito muito no conceito de equipa e adoro trabalhar com os meus amigos, com pessoas que amo. Às vezes não é fácil, porque gosto de ter admiração pelas pessoas com quem trabalho. Tenho a sorte de ter montado uma equipa com o meu marido, que além de ser meu marido é também é muito competente no seu trabalho.

O Julien [que está a assistir à entrevista, calado e sorridente, enquanto dedilha no seu computador] não vai dizer o contrário, pois não? [risos] Mas é costume dizer que trabalhar com a pessoa com quem se vive é excessivo. 24 horas por dia em contacto.

Nós temos sorte, porque não trabalhamos nos mesmos ramos. Há muitas situações que decorrem em comum, mas outras que são responsabilidade de um de nós. Eu faço muitas reuniões fora, o Julien faz a maior parte das reuniões online.

Tem algum projeto de que queira falar especialmente?

Nós agora estamos a desenvolver a empresa Jak [sapatilhas vegan], que tem uma loja aqui no Chiado e outra no Porto, e vendem para o mundo inteiro. Acho que é uma empresa muito completa, porque fazem tudo aqui em Portugal.

Os portugueses são muito bons em calçado.

Os portugueses são muito melhores do que se julgam, em muita coisa. Incluindo vinho.

O que acontecia era que os portugueses fabricavam o calçado, mas era vendido por marcas estrangeiras. Lembro-me, quando era jovem, que os melhores sapatos ingleses, os Church, eram fabricados aqui, enviados para o Reino Unido, e de lá exportados para as nossas lojas. Não tínhamos o design nem o marketing.

Agora, algodões, camisas, etc., todos os sacos bonitos que fazemos na 27 são produzidos e vendidos em Portugal. Estamos a tentar desenvolver os nossos investimentos, agora temos em estudo uns dez ou onze projetos. E não investimos somente, também acompanhamos. Quando podemos ajudar nas vertentes que conhecemos, partilhamos a atividade com eles. Não é só passar um cheque e esperar o retorno.

O Julien tem a sua experiência, eu a minha, e tentamos ter sempre um lugar nas reuniões da direção das empresas. O nosso método é envolver-nos nas iniciativas em que investimos.