A Medicina Interna é a maior especialidade médica hospitalar, com mais de três mil especialistas que, todos os anos, são responsáveis por cerca de 180 mil doentes internados, perto de 580 mil consultas e mais de quatro milhões de episódios de urgência.

A presidente da Sociedade Portuguesa de Medicina Interna (SPMI), Lèlita Santos, fala ao SAPO24 do contexto de crise nos hospitais, das urgências sobrelotadas, da falta de especialistas em diversas áreas e afirma a importância da Medicina Interna na sustentabilidade do Serviço Nacional de Saúde.

Isto, numa altura em que a Assembleia de Representantes da Ordem dos Médicos chumbou a criação da especialidade de Medicina de Urgência - defendida num manifesto por 56 antigos e atuais diretores de serviços de urgência e também pelo diretor executivo do SNS, Fernando Araújo, que considerou tratar-se de “um eixo fundamental na estratégia delineada” para esta área.

Médica do Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra, explica por que motivo considera inoportuna esta discussão e enumera algumas medidas que, na sua opinião, podem contribuir para resolver pelo menos parte do problema.

O atual ministro da Saúde é médico especialista em Medicina Interna. Isso é bom ou mau?

Acho que é bom. Até já está a pensar como um internista. Imagino que deve ser uma tarefa monstruosa e muito difícil, mas acho que é muito bom. A Medicina Interna como especialidade e os internistas têm muito, na realidade, a noção do global, daquilo que é um Serviço Nacional de Saúde. E, se calhar, conseguem perceber melhor como hão de gerir o que está a acontecer.

"Precisamos de tempo para ver os doentes, que é uma coisa que nos falta muito, sobretudo para atender os casos mais graves."

E não são também eles os mais responsáveis pela situação de crise que se vive nas urgências?

Penso que não. O que sobressai, de facto, são as urgências, porta de entrada para os hospitais e o serviço de saúde público. Mas o que tem acontecido, e o problema está aí, é que o fecho de hospitais periféricos leva a que muitas vezes acabemos por não ter onde pôr doentes menos graves, mas que precisam, por exemplo, de um internamento curto. Por outro lado, os cuidados primários têm poucos médicos, os meus colegas de Medicina Geral e Familiar são poucos - aliás, vemos que há 1,4 milhões de portugueses que não têm médico de família, e isso é muito grave.

Quer dizer que as urgências dos hospitais estariam menos sobrecarregadas se os centros de saúde funcionassem doutra forma?

Alguns centros de saúde já nem as horas normais de expediente estão abertos. Se funcionassem com horário alargado ou estivessem abertos de noite, já podiam acudir àqueles 40% de doentes que recorrem aos serviços de urgência sem necessidade. São doentes que podiam ficar em cuidados primários - mais perto de casa e, se calhar, melhor atendidos, às vezes até pelo seu médico -, isto para soros, tratamentos rápidos de antibiótico endovenoso, análises, radiografias, eletrocardiogramas, pequenas coisas. Podiam até ficar duas, três, quatro horas em vigilância.

Isso seria o suficiente para resolver os problemas das urgências nos hospitais?

No hospital, evidentemente, precisamos de mais médicos, nomeadamente mais internistas, para ver os doentes. Precisamos de tempo para ver os doentes, que é uma coisa que nos falta muito, sobretudo para atender os casos mais graves. Se tivéssemos mais tempo, podíamos atender estes doentes com mais calma, mais ponderação, pensar nas situações, fazer os diagnósticos, tratar como deve ser. E o internista podia seguir estes doentes ao longo do seu percurso - internar, encaminhar para uma consulta mais especializada -, e dedicar-se às unidades que têm surgido no seio da Medicina Interna para colmatar estes défices. Os internistas estão a tentar arranjar soluções, não têm é tido muita ajuda.

Que tipo de soluções?

Por exemplo, temos desenvolvido unidades de diagnóstico rápido, unidades de internamento curto, a hospitalização domiciliária é feita na maioria dos casos por internistas, consultadoria, cogestão... Muita coisa que temos desenvolvido a nível hospitalar exatamente para colmatar alguns défices.

Disse que já se nota que o ministro pensa como um internista. Em quê?

O Dr. Pizarro já começou a abrir alguns centros de saúde, o que é muito bom, ele percebe que isso é muito importante. Tenho uma certa esperança em que as coisas fiquem melhor.

Porque é que não há suficientes médicos de Medicina Interna ou de Medicina Geral e Familiar?

Porque a especialidade deixou de ser tão atrativa como era antes. Quando se é estudante de Medicina ou interno dos primeiros anos, o que se quer é ser internista, porque a Medicina Interna vê o elemento no seu global, faz um diagnóstico, vê o doente complexo, com multimorbilidades - a Medicina Geral e Familiar também, mas ao nível dos cuidados primários. Esta é a especialidade que nos completa, que nos leva a sentir a profissão. Mas com esta panóplia de coisas para fazer, com a quantidade de doentes que chegam às urgências, porque as coisas estão mal organizadas, acabamos por ter um problema. Os médicos fogem para o privado, para o estrangeiro, porque mesmo sendo internistas querem qualidade de vida e é nos privados que têm melhor qualidade de vida, melhor remuneração.

Quanto ganha um médico internista?

Um interno e um médico internista já especialista em início de carreira ganha mil e muitos euros, já perto dos dois mil. E, na realidade, completa isso com outras coisas, muitas vezes porque tem de o fazer. Mas não é sequer a remuneração que é o mais importante - é importante, como é evidente -, são as condições de trabalho. Os médicos veem-se muito sobrecarregados com trabalho e com trabalho mal organizado, é esse o grande problema.

Quem é que organiza esse trabalho?

Não há propriamente um culpado, o que há é uma sequência de coisas, de situações. A afluência de doentes às urgências, por falta de cuidados primários e por falta de hospitais de retaguarda, é tão grande que, por muito que os médicos se queiram organizar, não conseguem.

O ministro diz que o Norte está melhor organizado do que Lisboa e Vale do Tejo. Concorda?

Não sei se o Norte é melhor organizado que o Sul. O Sul tem menos médicos per capita, provavelmente, e muito menos internistas no hospital. Além disso, mais uma vez, apareceram muitos privados, que dão aos médicos as tais melhores condições de trabalho. O que tem acontecido é a sangria destes médicos para o privado - no Norte não surgiram tantos. Depois, claro, a junção de hospitais, o acabar com algumas urgências, com algumas valências nos hospitais, levou a alguma desorganização. Quanto menos atrativa é a especialidade de Medicina Interna, menos pessoas quer para lá ir.

Isso ficou visível no número de vagas por preencher...

Realmente, vemos que alguma coisa se passa de errado, porque os médicos não preenchem estas vagas, a maioria em Lisboa e Vale do Tejo - acho que nos devemos perguntar porquê. No Centro e no Norte não foi assim. Passa-se alguma coisa, e não é o ordenado, porque os médicos são remuneradas de forma igual em todo o país. É, seguramente, a qualidade de vida. E acho que a tutela tem de pensar por que motivo isto está a acontecer. É tudo mais para Sul, o que significa que as coisas não estão a correr bem nesses hospitais.

"O tempo estica, mas não estica a compensação ou sequer o reconhecimento. Primeiro têm de nos dar condições, depois, de facto, exigir qualidade."

Quando um doente entra no hospital, em que momento se cruza com o médico internista?

Se o doente entrar no hospital pelo serviço de urgência, e se for um doente mais complexo, é logo com o internista que vai estar. Que é também a equipa que está mais presente nas urgências. Claro que também deveriam estar outras especialidades, mas esse é outro problema: ao longo dos anos as especialidades foram-se retirando da urgência para irem para os seus serviços. Agora, a maior parte das especialidades estão de chamada, não em permanência. O que leva a algumas dificuldades, porque há especialidades muito importantes na urgência, como a cardiologia (o problema pode ser diagnosticado pelo internista, mas precisa imediatamente da especialidade). Quem ficou sempre na urgência foi o internista e, portanto, é mais uma sobrecarga de trabalho para ele. Além disso, é o internista que decide se o doente fica internado, se deve ser visto pela especialidade, se deve ser encaminhado para uma consulta, se é para voltar para o seu médico.

O ministro da Saúde quer que uma parte do salário dos médicos dependa do seu desempenho. Esta proposta agrada aos internistas?

Penso que se a qualidade do trabalho puder ser medida, se for mensurável - tenho uma ideia dos indicadores, mas não sei aprofundar -, é uma ideia. Porque não? Mas se querem que façamos consultas de Medicina Interna, ver um doente na sua totalidade, muitas vezes idoso, muito complexo, em 20 minutos, tal como os colegas da Medicina Geral e Familiar, isto não pode nunca dar qualidade ao nosso trabalho. E depois, repare, neste momento, por causa da pandemia, há muito mais consultas para recuperar, mais internamentos. No caso das cirurgias é considerado trabalho extra, digamos assim, são pagas, mas, no caso das consultas, se o médico fizer dez ou trinta, ganha exatamente o mesmo. O tempo estica, mas não estica a compensação ou sequer o reconhecimento. Primeiro têm de nos dar condições, depois, de facto, exigir qualidade. Embora já hoje os médicos façam tudo pela assistência ao doente, o doente sempre no centro. Mas muito à custa do seu sacrifício pessoal.

Quantas horas trabalha um especialista de Medicina Interna?

Um especialista de Medicina Interna tem 40 horas de trabalho. Mas garanto-lhe que todos fazem muito, muito mais. Toda a gente faz muito mais horas do que devia fazer. Uma medida importante era tirar aos médicos trabalho burocrático. Muitas vezes temos de ir buscar o papel, tratar do assistente social, andar a telefonar para aqui e para acolá porque, pura e simplesmente, não há mais quem o faça - às vezes para despachar o doente sem o fazer perder tanto tempo. Temos de fazer muitos relatórios, muitas coisas que podiam ser agilizadas, porque esse trabalho burocrático é terrível.

Voltando à questão dos salários...

Realmente, a remuneração também é importante, o bom trabalho tem de ser compensado. Não é preciso muito mais, ninguém quer mundos e fundos, ganhar grandes ordenados, não se trata disso. Mas os médicos têm de ser melhor remunerados, porque gastam dinheiro na sua formação, pagam 300 ou 400 euros por um curso, dinheiro que sai do seu bolso. Agora é tudo muito online, mas mesmo assim é preciso comprar um ou outro livro ou até comprar um pequeno equipamento de que precisam para o seu dia-a-dia. Isso sai-lhes do bolso, também temos de pensar nisso.

A ideia de que a formação dos médicos é paga pelo Estado - e, por isso, se podia exigir-lhes que ficassem determinado tempo a exercer no SNS -, é um mito?

É. Não é assim de todo. Quanto ao curso, Medicina é igual para todos os cursos. Posteriormente, os médicos trabalham e fazem formação, mas fazem-no à sua conta. A formação que um interno faz num hospital ou num centro de saúde para ser especialista é paga, ele tem um ordenado, mas é uma formação feita a trabalhar. O interno não está sozinho, mas está a trabalhar ao lado de um especialista, em paralelo, a praticar quase os mesmos atos que o especialista. Só que o especialista está lá para o ajudar nas dúvidas que vão surgindo. É uma formação que está bem assim e que se deve basear na experiência do sénior. Aliás, este é mais um problema: os seniores mais jovens, digamos assim, que já podiam estar a dar formação aos internos, saem para o privado e não há formadores. Precisamos de tempo até para ensinar os mais novos, mas os especialistas orientadores de formação sentem-se tão assoberbados com trabalho que não têm quatro horas por semana para estar com o interno mais novo e dizer-lhe o que tem de fazer, analisar os prós e contras das decisões que tomou, fazer os briefings tão queridos aos médicos, os brainstormings e todas essas coisas. Não têm tempo.

Além disso há um fosso muito grande entre os alunos saídos da faculdade e os médicos mais velhos, não é assim? Há aí um gap de uma geração.

Sim, exatamente, há esse fosso. Mas, depois da formação que mencionei, há aquela que se faz toda a vida: temos de estudar continuamente, o conhecimento médico está sempre a evoluir. Por exemplo, temos de fazer um curso de suporte avançado de vida - os hospitais fazem-nos, são obrigados a isso e não se paga nada, mas muitas vezes não há vagas e o curso tem de ser feito fora; ou um curso de dor ou um curso sobre insuficiência cardíaca ou um curso sobre diabetes. Como é que fazemos? Pagando.

Quanto gasta um médico em média por ano em formação?

Ah, não sei dizer. Agora já sou muito mais velha e faço menos formações, poderei às vezes até fazer formações que alguma indústria subsidia, digamos assim, mas os meus colegas mais novos seguramente gastam vários milhares de euros por ano para fazer a sua formação. É só fazer as contas: se fizerem cinco cursos (e fazem mais), que são habitualmente ao fim de semana, não tiram tempo ao hospital, e se cada um custar 300 euros, que é o mínimo, já gastam o ordenado de um mês, o subsídio de Natal já era. Mas fazem mais cursos do que isto, portanto, seguramente gastam mais.

"A Medicina Interna faz muita falta, não se pode perder como especialidade ou quem perde são os doentes."

Os dados que tenho indicam que existem cerca de três mil médicos especialistas em Medicina Interna. Confirma?

Existem três mil inscritos na Sociedade Portuguesa de Medicina Interna, dos quais alguns são internos.

Quando comparamos o número de médicos per capita em Portugal com a média dos restantes países da União Europeia não estamos mal, pelo contrário. Como se justifica a falta de médicos?

Bom, lá fora não há internistas, portanto, não é comparável. Na Europa, já para não falar nos Estados Unidos, com quem não nos podemos mesmo comparar - e a Sociedade Portuguesa de Medicina Interna faz parte da European Federation of Internal Medicine -, tirando Portugal, Espanha, Itália, Grécia e países de Leste, o que acontece é que há um tronco comum de Medicina Interna, que pode ser de um a três anos, dependendo dos países, e depois os médicos escolhem uma especialidade: acaba a Medicina Interna, e passam a ser, por exemplo, internista-nefrologista ou internista-cardiologista.

Esse sistema funciona melhor?

Não. Porque, então, onde vamos ter o médico que vê o doente no global? Não vamos. Onde está o médico que em vez de ver o rim, o coração, os pulmões, vê o doente no seu todo? O médico a quem o doente se queixa de tosse e que sabe que pode ser do coração, pode ser de origem pulmonar ou pode estar associada a uma situação abdominal? Quem é que vê isso no hospital? É o médico de Medicina Interna. Que vai juntar aquele puzzle de todas as queixas do doente e vai dizer o diagnóstico. Se isto não acontecer, o doente é partido aos bocados, cada especialista vê o seu e quem é que junta tudo? Ninguém. A Medicina Interna faz muita falta, não se pode perder como especialidade, ou quem perde são os doentes.

Uma das soluções sugerida por vários médicos, incluindo pelo diretor executivo do SNS, Fernando Araújo, foi a criação da especialidade de Medicina de Urgência. Mas a hipótese foi reprovada pela assembleia de representantes da Ordem dos Médicos. Os médicos de Medicina Interna também estavam contra. Porquê?

Penso que a medida foi chumbada por maioria, e lá não estão apenas os médicos de Medicina Interna, estão representadas todas as especialidades. Acho que imperou o bom senso, porque a especialidade de Medicina de Urgência não resolve absolutamente nada se o resto da estrutura ficar igual. Se não se resolverem os problemas de que tenho estado a falar, fica tudo na mesma.

A proposta inicial era para ficarem nessa especialidade um grupo de médicos escolhidos por consenso, de acordo com alguns critérios, que depois iria formar os novos internos, que estariam prontos ao fim de cinco anos, o tempo de qualquer especialidade médica.

E para fazer o quê, urgência pré-hospitalar, front office da urgência, ver os tais 40% que não deviam lá estar? E o quê mais, internar doentes sem ligação aos serviços? É um mistério. Continuaríamos a não ter envolvidos os médicos das outras especialidades. Seria uma especialidade isolada que, necessariamente, iria levar ao esgotamento. Os meus colegas que estão todos os dias na urgência com a mesma rotina, esgotam. Aliás, vemos isso em alguns hospitais em que se tem tentado fazer equipas fixas de urgência, um bocadinho semelhantes a esta especialidade; está tudo a sair. Acho que imperou o bom senso e viram que esta especialidade seria para resolver o problema das urgências no imediato. Mas o problema das urgências não está em pôr lá um grupo de médicos, está em encontrar uma maneira de os doentes deixarem de ir à urgência e arranjar dentro do hospital internistas, especialistas, para ver os doentes e para lhes dar seguimento. Não é arranjando mais uma especialidade que as coisas se resolvem, isso não tem jeito nenhum.

Disse que o doente que entra no hospital pelo serviço de urgência, se for um doente mais complexo, é logo com o internista que vai estar. E se for pulseira azul ou verde?

Os doentes azuis ou verdes [pulseira], de que agora se fala muito, vão ficar à entrada a ser vistos pelos médicos que lá estão. Hoje, na maior parte dos casos, esses médicos nem são médicos do hospital, são os chamados tarefeiros - não gosto da palavra, mas são prestadores de serviços, contratados por empresas que, muitas vezes, eles próprios fazem. E ganham muito bem. A partir dos amarelos [pulseira], então, já vão para dentro, já são vistos pelos internistas - e, mesmo assim, ainda são muitos, porque o sistema de triagem é defensivo, muito conservador, e, na dúvida, entre verde ou amarelo, é amarelo.

Quanto ganha um tarefeiro e que obrigações tem?

Os tarefeiros ganham muito, às vezes conseguem ganhar em duas noites quase tanto como uma remuneração mensal. Cada hora é paga a um preço muito superior à do médico internista que está no hospital (o tarefeiro também pode ser especialista). Muitos destes prestadores de serviços nem trabalham nos hospitais ou nos centros de saúde, só fazem aquilo, trabalham à tarefa. E um tarefeiro não tem qualquer vínculo ao hospital, não tem tanta responsabilidade sobre os doentes, se lhe apetecer, não vai trabalhar e não é penalizado por isso. Em quem é que isso se repercute? No doente. Sabe o que faz isto? A necessidade. Isto está tudo desvirtuado, as empresas de tarefeiros não deviam existir e não deviam existir tarefeiros. Ponto.

"É natural que depois de 12 horas de trabalho, depois de ver 50 ou 60 doentes, o médico não esteja com cabeça para o aborrecerem com outras coisas."

Entre 2019 e este ano foram contratados mais 25 mil médicos, um número que impressiona, sobretudo porque não parece refletir-se no atendimento.

Quem são esses médicos? São internos saídos da faculdade. Repare, todos os anos temos milhares de colegas a passar do sexto ano para o primeiro ano de internato. Por ano são mais de mil. No ano seguinte, esses colegas vão entrar para a especialidade, não são ainda especialistas, mas só aí são mais uns milhares. Durante cinco anos, embora trabalhem, como já vimos, são tutorados, têm orientadores de formação. Só depois se pode dizer que entram verdadeiramente para o mercado de trabalho. Não podemos esquecer que, entretanto, vários médicos se aposentaram, outros saíram para o privado e muitos para o estrangeiro. Ao mesmo tempo, os doentes são cada vez mais complexos, nomeadamente os mais idosos. Felizmente, conseguimos ter uma esperança de vida elevada, mas por outro lado necessitamos de mais cuidados de saúde.

A questão é se se vive mais tempo com qualidade de vida ou sem ela...

Era isso que eu ia dizer: temos uma esperança de vida muito alta, mas a que título? Será que estas pessoas têm qualidade de vida? Infelizmente, nem todas. Nós médicos temos de a manter, mas para isso precisamos de mais cuidados de saúde. E não os temos, realmente. Portanto, precisamos de prevenção (a Medicina Geral e Familiar), precisamos de médicos que vejam os doentes na sua complexidade, porque a partir dos 60 anos as pessoas têm várias doenças (Medicina Interna). Temos até de as ver no contexto social, familiar e psicológico. Ou seja, são precisos mais meios e, seguramente, mais profissionais.

Vou insistir na história da qualidade de vida. A maioria dos médicos é contra a eutanásia, mas vemos doentes anos à espera de uma consulta, de uma operação. Em que lugar está o doente?

A qualidade de trabalho vai dar ao médico a possibilidade de atender muito melhor o doente e, seguramente, vai dar qualidade assistencial ao doente. Se observar, os médicos preocupam-se muito com o doente, mas é um pouco como outro trabalho qualquer, se já estamos fartinhos daquilo, vai de qualquer maneira. É natural que depois de 12 horas de trabalho, depois de ver 50 ou 60 doentes, o médico não esteja com cabeça para o aborrecerem com outras coisas. Depois de ver na consulta 30 doentes não está nada virado para ser muito humanista.

"Timidamente, mas já começou a mudança. É engraçado, dá-se aquele pequeno sinal e as pessoas ficam logo animadas, e é isso que a tutela tem de dar."

Álvaro Beleza diz que os hospitais portugueses têm mais administradores do que o grupo Sonae. Concorda?

Penso que os nossos administradores têm hoje muito mais qualidade do que tinham no início, agora são formados diretamente para perceberem de Saúde. Mas acho que devia haver sempre um grupo de médicos - de enfermeiros também, mas estamos a falar dos médicos -, nas instituições, não serem só os diretores clínicos os gestores, mas também os médicos. Porque os médicos sabem muito bem o que falta e também sabem poupar. Costumo dizer que sim, que há demasiados administradores e poucos médicos, mas não tenho números para suportar isto, embora às vezes também comente "se houvesse mais um médico em vez daquele administrador, dava jeito". Mas, como disse antes, o médico tem de ter tempo para se centrar no doente, e aqui é que já podemos falar mal dos administradores, que não parecem estar cá para isso; o computador não funciona, não consigo prescrever a receita que quero, fico horas à espera de um exame, tenho de pedir 500 mil autorizações para um doente fazer uma colonoscopia ou uma ressonância magnética e ainda tenho de tratar do transporte do doente... Isto é trabalho de médico? Não é, tem de haver outros profissionais que façam isto.

O que espera que o ministro faça em 2023 com um orçamento de 15 mil milhões de euros, o mais alto de sempre no setor da Saúde?

É muito dinheiro, o que não quer dizer que seja bem gasto [ri]. É verdade, o Orçamento do Estado é simpático, mas espero que parte seja gasto na reorganização do Serviço Nacional de Saúde, em não o deixar cair. Ou seja, contratar mais pessoas, dar-lhes melhor remuneração, comprar equipamentos - alguns estão obsoletos -, abrir centros de saúde. Para isso, é preciso muito dinheiro. O resto vem por acréscimo. Se pensarmos com tempo no que estamos a fazer com os doentes, a despesa é sempre menor. A organização dá menos despesa, menos consumos. Senão, não vamos lá.

Tem fé nesta direção executiva do SNS?

Acho que as pessoas escolhidas são muito capazes. Quem está à frente é uma pessoa muito capaz, que conhece profundamente - como, aliás, o Dr. Pizarro -, o Serviço Nacional de Saúde. Sou otimista, acho sempre que vão fazer melhor. E já se viu um pequeno sinal: a abertura dos centros de saúde até mais tarde. Timidamente, mas já começou a mudança. É engraçado, dá-se aquele pequeno sinal e as pessoas ficam logo animadas, e é isso que a tutela tem de dar. É preciso antecipar os problemas e resolvê-los. Estou esperançada.

(*artigo corrigido às 22h47 para indicar que o especialista de Medicina Interna tem 40 horas de trabalho por semana e não 35)