O assunto tornou-se notícia depois de um vídeo, entretanto apagado do Facebook pela própria associação que o publicou, ter documentado a intervenção da Polícia Municipal de Lisboa a impedir carrinhas da "Associação Pauloj Bento" de prestar auxílio a grupos carenciados, nomeadamente à comunidade de sem abrigo. O episódio teve lugar a 27 de outubro e, mais que a situação concreta, acabou por trazer para a discussão as necessidades acrescidas de apoio no contexto da pandemia.

Carrinhas da
Carrinhas da "Associação Pauloj Bento" a entrarem no Largo de São Domingos, no Rossio, na noite de 27 de outubro. Imagem ainda retirada do vídeo original que circulou nas redes sociais.

O que se passou na noite de 27 de outubro, segundo Paulo Bento

Paulo Bento, que lidera a “Associação Pauloj Bento” e responsável pelo vídeo, afirma que não tinha conhecimento de qualquer proibição em relação ao Largo de São Domingos e que, por isso, se dirigiu com normalidade ao local na noite de 27 de outubro de 2020. Uma vez lá, encontrou a Polícia Municipal de Lisboa que o elucidou, invocando decisões da Câmara Municipal de Lisboa, sobre o facto de ali não se poder prestar serviços de distribuição de comida a sem abrigo e a pessoas carenciadas.

Depois de conversar com a polícia, afirma, percebeu que não haveria nada a fazer e que a solução passaria por enviar um email à Câmara, pedindo explicações. Mas, frustrado com a situação, o fundador da "Associação Pauloj Bento" começou, então, um vídeo em direto para a rede social Facebook, divulgando que a Câmara estaria a proibir a prestação deste tipo de serviços de voluntariado naquela localização. E é este vídeo que desencadeia os acontecimentos seguintes.

"No dia a seguir sou contactado pela Câmara Municipal de Lisboa, a dizer que não sabiam o que se estava a passar, e que iam averiguar com o NPISA, que é o organismo para as pessoas na condição de sem abrigo", disse.  Paulo afirma que pediu celeridade na clarificação do que se tinha passado e que, inclusive, deu a conhecer à CML que tinha sido contactado por um órgão da comunicação social para uma entrevista.

Carrinhas da
Carros da Polícia Municipal de Lisboa no Largo de São Domingos, no Rossio, na noite de 27 de outubro. Imagem ainda retirada do vídeo original que circulou nas redes sociais.

Apesar deste contacto, foi publicado entretanto um comunicado oficial da Câmara Municipal de Lisboa, que está online e pode ser consultado por qualquer pessoa, onde se pode ler que "é falso que a CML impeça a distribuição de bens alimentares às pessoas em situação de sem abrigo".

Nesse comunicado, a Câmara assume que uma Associação que não é de Lisboa (porque a Associação de Paulo tem sede em Loures) nem pertence ao Núcleo de Planeamento e Intervenção Sem-Abrigo (NPISA) se dirigiu ao local e foi impedida de distribuir comida pela polícia que ali estava com esse fim.

A justificação para a intervenção que o vídeo da associação retratara prende-se, de acordo com a Câmara, com as condições do local. "Atendendo às más condições de salubridade em que começava a estar o Largo de São Domingos - e a pedido da Junta de Freguesia, comerciantes e moradores - foi feita uma operação especial de higienização do espaço público".  Esta ação de higienização mencionada no comunicado teve lugar na sexta-feira, dia 23 de outubro, explicou ao SAPO 24 a Câmara, garantindo que "já ocorreu em outros locais da cidade que precisavam de limpeza e desinfeção".

Quanto ao facto de não ter existido comunicação entre a Câmara e esta Associação, é reforçada a ideia de que todas as associações que pretendam prestar este tipo de serviços de voluntariado devem comunicá-lo à Câmara, de maneira a facilitar a articulação entre todos e a evitar ajuntamentos de pessoas que potenciem a propagação do vírus do Covid-19.

"Todas as organizações que habitualmente prestam auxílio naquela zona foram avisadas, exceto esta associação que refere, provavelmente porque se constituiu há apenas algumas semanas”. De facto, a "Associação Pauloj Bento", apenas se constituiu como tal no dia 30 de outubro deste ano, segundo revela o próprio responsável nesta publicação no Facebook.

Para Paulo Bento, as razões invocadas não explicam tudo. “Não se pode dar no Rossio, mas pode dar-se em Santa Apolónia? No Rossio eles sujam tudo, mas no Martim Moniz não? No Rossio não pode haver ajuntamentos, mas no Martim Moniz pode?”, questiona. Admite que o chão fica muito sujo após a distribuição de comida, mas afirma que tais procedimentos deveriam ocorrer em todos estes locais e não apenas no Largo de São Domingos. Denuncia ainda a situação que se vive no Largo do Martim Moniz - "é um pandemónio", refere, assinalando que não se vê polícia no local ao contrário do que se passa no Largo de São Domingos.

Sobre este tema em específico, a Câmara afirma que não existe um "plano municipal de distribuição de forças policiais", mas assegura que "sempre que uma entidade que distribui alimentação necessita do apoio da Polícia Municipal para organização do distanciamento social, entre outros, a CML responde atempadamente e em conformidade com a necessidade”. Uma informação também confirmada pelo "CASA" (Centro de Apoio ao Sem Abrigo).

Já após ter saído o comunicado da Câmara, Paulo Bento foi, segundo relata, contactado por Teresa Bispo, coordenadora do NPISA de Lisboa, que o terá convocado para uma reunião de urgência, em Alcântara, "para se falar sobre o que se passou e sobre o que se estava a passar" - nas palavras de Paulo.

Na terça-feira seguinte, dia 3 de novembro, Paulo decidiu voltar ao local. Só que desta vez afirma que saiu da sua carrinha já a filmar em direto para o Facebook. Este segundo vídeo está ainda disponível na rede social. Para além disso, afirma ter levado consigo uma equipa de reportagem da TVI que, na sua opinião, foi o que lhe permitiu distribuir comida nessa noite.

A situação foi idêntica à da noite de 27 de outubro e, ao início, a associação foi impedida de distribuir refeições. No entanto, após insistência, e com a equipa de reportagem no local, o agente da polícia terá contactado um superior e dado autorização para que se prestasse o serviço de voluntariado.

Passado dois dias, no dia 5 de novembro, teve lugar a reunião marcada no NPISA. Nessa reunião, ficou decidido, segundo Paulo, que não se poderia dar comida no Largo de São Domingos, no Rossio, devido ao processo de higienização do local .

A Câmara Municipal de Lisboa confirma a reunião e acrescenta que todas as entidades que marcaram presença e ainda não faziam parte do NPISA terão sido convidadas a integrar a rede e a participar em todas as futuras reuniões do mesmo âmbito. Na mesma reunião reorganizaram-se também as rotas entre as várias associações presentes, para garantir que nenhum local da cidade fica esquecido.

Sem Abrigo
Um sem-abrigo dorme na praça do Rossio, durante o recolher obrigatório, a 9 de novembro de 2020. créditos: TIAGO PETINGA/LUSA

Incluindo o Largo de São Domingos. “Não há nenhum local da cidade “fechado” à distribuição alimentar. Temporariamente foi deslocado para a Praça do Martim Moniz, a escassos 200m do Largo de São Domingos e nenhuma organização do NPISA deixou de fazer a sua distribuição regular por isso”, disse a Câmara ao SAPO24.

“Neste momento estão a ser avaliados os melhores locais para garantir a segurança e as condições de saúde pública entre vários serviços da CML. Até serem tomadas decisões entre os vários intervenientes, o que será feito nas próximas semanas, a distribuição alimentar continuará a ser realizada em local próximo, respondendo às necessidades das pessoas em situação de sem-abrigo”.

As instituições de voluntariado querem continuar a ajudar a população de sem abrigo, em muito afetada pelos efeitos da pandemia do novo coronavírus. créditos: Pedro Marques | MadreMedia

O que é e como nasceu a Associação Pauloj Bento

O fundador da Associação Pauloj Bento explica que, no início, o âmbito do projeto era outro. Paulo Bento tem uma empresa de remodelações e, há dois anos, começou a achar que seria um desperdício deitar para o lixo móveis que poderiam ser ainda utilizados. Assim, teve a ideia de começar a doar estes móveis a quem ainda lhe pudesse dar uso, em vez de os, simplesmente, deitar fora.

Mais tarde, por ocasião do seu 48º aniversário, em maio deste ano, juntou um grupo e foi dar refeições aos sem abrigo. Passou a ir de 15 em 15 dias e agora vai todas as semanas, ambicionando, um dia, prestar estes serviços de voluntariado duas a três vezes por semana. Para além disto, tem também uma loja solidária, na sua sede, em Loures, com roupa e eletrodomésticos, que está aberta aos fim-de-semana entre as 10:00 e as 18:00.

A associação chama-se "Associação Pauloj Bento", em homenagem à memória do pai, João, e do tio, Júlio, que morreu há cerca de quatro meses.

“O meu pai ensinou-me, graças a Deus, que o que a mão direita dá, a mão esquerda não tem que saber”, diz, afirmando ser este um dos seus motes de vida.

Praça do Martim Moniz, em Lisboa, à noite.
Praça do Martim Moniz, em Lisboa, à noite - um dos locais de referência para a comunidade de sem abrigo. créditos: Miguel Morgado | MadreMedia

"Não temos a ilusão de conseguirmos dar a toda a gente"

José Lourenço tem 62 anos, é reformado e engenheiro informático de formação. Trabalhava num banco, mas fala agora numa “ocupação a dois tempos inteiros”, enquanto coordenador voluntário do “CASA”.

O “CASA” existe desde 2002 e tem como missão o auxílio de pessoas em situação de sem abrigo e de famílias carenciadas, contando, atualmente, com mais de 1400 voluntários, distribuídos por 10 delegações dentro de Portugal. Em 2019, entregou mais de 417 mil refeições e de 35 mil cabazes a famílias carenciadas, sendo um dos membros do NPISA (Núcleo de Planeamento e Intervenção Sem Abrigo).

REPORTAGEM: Covid-19: A ajuda aos sem-abrigo numa Lisboa presa a um eterno domingo
Nelson, sem-abrigo de Lisboa posa para a fotografia na sede da associação CASA (Centro de Apoio aos Sem Abrigo), antes de uma ronda de distribuição de refeições pela cidade de Lisboa a 28 de março de 2020. créditos: TIAGO PETINGA/LUSA

Sobre a situação que teve lugar a 27 de outubro e os acontecimentos que se seguiram, José Lourenço, que esteve presente na reunião do NPISA de 5 de novembro, fala num equilíbrio que é necessário entre quem quer ajudar, quem precisa de ser ajudado e a Câmara Municipal de Lisboa. O que implica, na sua perspetiva, cedências de parte a parte para que nem o sistema de ajuda aos sem abrigo nem a cidade deixem de funcionar.

Sobre o policiamento destas áreas de maior concentração de sem abrigo, confirma o que a Câmara diz: quando é necessário e se as instituições pedirem, a Câmara disponibiliza polícia para ajudar a manter as condições de segurança nos locais de distribuição, tendo o próprio "CASA" visto um pedido seu ser aceite pela Câmara, no Largo de Santa Bárbara, nos Anjos. No entanto, confirma também que noutros locais em que distribuem comida não se vê presença policial - apesar de não representar um problema para José Lourenço, pelo facto de nunca ter havido uma situação de maior gravidade.

"Já nos conhecem, conhecem os nossos nomes, nós também conhecemos os nomes deles, tratamo-nos todos por tu. É uma comunidade".

Sobre a população de sem abrigo em geral, refere que aumentou "como era de esperar" e alerta para o facto de chegarem cada vez mais pedidos de ajuda por parte de famílias carenciadas.

"Não temos a ilusão de conseguirmos dar a toda a gente. Nós vamos conseguindo dar dentro daquilo que temos. Funcionamos como interposto: recebemos e damos. Se recebemos muito, pode ter a certeza que damos muito. Se recebemos pouco, damos pouco. Não há aqui milagres".

Voluntários do CASA em noite de distribuição de comida à comunidade de sem abrigo
Voluntários da associação CASA (Centro de apoio aos sem-abrigo), durante uma ronda de distribuição de refeições pela cidade de Lisboa, a 28 de março de 2020. créditos: TIAGO PETINGA/LUSA

"Temos de ir avaliando dia-a-dia, porque, de facto, não há outra forma de conseguirmos enfrentar tudo aquilo que estamos a enfrentar todos"

A “Comunidade Vida e Paz” existe desde 1988 e, em 2019, entregou 138 mil ceias, com a ajuda de 602 voluntários e de 140 colaboradores profissionais, tendo apoiado, em média, 420 pessoas por dia nas ruas. Tal como o "CASA", é também parceiro do NPISA e participou na mesma reunião de 5 de novembro.

A diretora-geral da associação, Renata Alves, confirma que foi solicitado à instituição que não distribuísse bens alimentares no Largo de São Domingos, no Rossio, devido a uma limpeza que iria ocorrer, a partir do dia 23 de outubro, reiterando o que foi comunicado pela Câmara no dia 28 de outubro relativamente às entidades previamente avisadas da interdição do local.

Após o aviso prévio da Câmara, os voluntários da "Comunidade Vida e Paz" foram avisando os sem abrigo de que já não se poderia distribuir comida naquele local e que, portanto, se deveriam dirigir a outro, como seria o caso do Martim Moniz.

Renata Alves avança que os problemas que levaram a esta interdição estarão relacionados com o facto de ali se distribuírem refeições quentes, que acabavam por reunir muito lixo, e o facto do local estar perto do Teatro Nacional D.Maria II e das suas saídas de emergência - o que poderá evidenciar não ser muito próprio para ajuntamentos.

Ainda assim, apesar de ter achado que se tratava de um caso pontual, a situação tem-se prolongado no tempo, não havendo ainda conclusão final sobre a possível reabertura do espaço.

No início da pandemia, a "Comunidade Vida e Paz" optou por mudar a maneira como tradicionalmente distribuia alimentos, tendo levado refeições quentes até ao início do verão. Afirma Renata Alves, que muitas instituições deixaram de funcionar, fruto da pandemia, e, como a "Comunidade Vida e Paz" nunca parou, houve a necessidade de cobrir as refeições quentes que outras instituições sempre deram. Com a entrada no verão e o regresso ao ativo destas outras instituições, deixou de haver necessidade de continuarem a dar refeições quentes, e voltaram ao esquema habitual de ceias frias.

Esta ceia é normalmente constituída por "duas sandes, uma bebida, um iogurte ou um leite, uns snacks ou uns bolos ou uns doces", disse.

Quanto ao distanciamento social entre sem abrigo durante a distribuição de comida, refere que a maioria das pessoa sempre respeitou o que foi pedido, utilizando, inclusivamente, máscara.

No que diz respeito ao aumento do número de pessoas carenciadas nas ruas, explica que tudo fica mais difícil com a restauração fechada aos fim-de-semana, pois deixa de ser um sítio onde as pessoas poderiam ir pedir sobras.

"Neste momento de pandemia (...) temos de ir avaliando dia-a-dia, porque, de facto, não há outra forma de conseguirmos enfrentar tudo aquilo que estamos a enfrentar todos", rematou a responsável da “Comunidade Vida e Paz”.

Pesquisa e texto de João Maldonado