A viver há mais de 30 anos em Macau, Rui Furtado, cirurgião, considera-se hoje tanto da região chinesa como de Portugal. Chegou no início dos anos 1990, entrava o território na última década sob domínio português. Para trás, ficou Lisboa e o Hospital de Santa Maria.
“O salário e as condições de vida permitiam que as pessoas tivessem uma vida mais sossegada [em Macau]”, começa por dizer o médico à Lusa.
Trabalhou no hospital público local mais de 20 anos, transitando, em 2013, para o setor privado. Mas de lá para cá, o que levava tantos clínicos a atravessarem mundo perdeu-se, na perspetiva deste açoriano, natural de Ponta Delgada. Se tivesse hoje os 46 anos que tinha quando aterrou em Macau, não faria a mesma escolha: “Não oferece garantias de estabilidade para quem começa uma vida aqui a trabalhar como médico”.
Macau não aceita desde o ano passado novos pedidos de residência para portugueses, para o “exercício de funções técnicas especializadas”, permitindo apenas justificações de reunião familiar ou anterior ligação ao território.
As orientações eliminam uma prática firmada após a transição de Macau, em 1999. A alternativa para um português garantir o bilhete de identidade de residente (BIR) passa por uma candidatura aos recentes programas de captação de quadros qualificados.
Outra hipótese é a emissão de um ‘blue card’, autorização limitada ao vínculo laboral, sem os benefícios dos residentes, nomeadamente ao nível da saúde ou da educação.
A um médico português que chegue hoje ao território é atribuído este estatuto, diz Furtado. “É discriminatória a maneira como são tratados os ‘blue cards’, quando ao fim e ao cabo são a base da vida em Macau”, declara.
No final de outubro, Macau contava com cerca de 182 mil trabalhadores não-residentes, num total de pouco mais de 686 mil habitantes na cidade (números de setembro), indicam dados oficiais.
A académica da Universidade Politécnica de Macau (UPM) Vanessa Amaro, que se tem dedicado ao estudo da comunidade portuguesa em Macau , nota que quem chega ao território depara-se agora com um contexto socioeconómico e político diferente, “marcado por mais restrições e desafios burocráticos, como a dificuldade em obter residência e contratos de trabalho com menos regalias”.
Esta limitação na residência “desmotiva muitos a considerar Macau como uma opção de longo prazo, limitando a estabilidade e o sentimento de pertença”, analisa.
Outros fatores pesam na altura de escolher esta cidade no sul da China, nomeadamente a “crescente reputação nos meios de comunicação portugueses como uma região” que “está a perder algumas das liberdades e características que anteriormente a distinguiam”, diz.
Nos últimos anos, ecos das mudanças políticas em Hong Kong, em resposta às gigantes manifestações antigovernamentais, chegaram a Macau. A deterioração das liberdades tem sido abordada por várias instituições, incluindo UE e ONU, que expressaram preocupação com decisões como a proibição da vigília pelas vítimas do massacre de Tiananmen ou a desqualificação de candidatos pró-democracia às legislativas. Críticas repudiadas pelo Governo local.
Alexandra Veredas, professora de Matemática e Ciências, chegou a Macau em agosto de 2023, tendo-lhe sido atribuído um ‘blue card’. Nada que tenha assustado esta natural de Moura, que, depois de lecionar em várias cidades portuguesas e diferentes países, assume viver “em constante descoberta”.
“Vim pelo menos por um ano, depois vai-se ficando ou não. Para mim nada é definitivo”, refere a professora da Escola Portuguesa de Macau.
Para Alexandra Veredas, de 53 anos, segurança e finanças são vantagens: “é um sítio muitíssimo seguro, onde realmente o vencimento que temos é perfeitamente ajustável às necessidades e é possível fazer uma poupança, o que nos tempos atuais é difícil na Europa”.
Os censos de 2021 indicam mais de 2.200 pessoas nascidas em Portugal a viver em Macau. A última estimativa dada à Lusa pelo Consulado-geral de Portugal apontava para mais de 100 mil portadores de passaporte português entre os residentes de Macau e Hong Kong.
“Muitos dos novos residentes vêm com contratos de trabalho temporários ou como parte de missões específicas, enquanto a comunidade pré-transição era composta por indivíduos e famílias que geralmente tinham uma ligação mais permanente ao território, em parte devido às condições de estabilidade e maior abertura política e social da época”, avalia a professora.
No entanto, salienta Amaro, muitos jovens que chegaram após a transição e com uma perspetiva temporária de Macau, acabaram por constituir família. Um fenómeno que “tem contribuído para a revitalização da comunidade”, com o nascimento de crianças portuguesas, “fortalecendo laços locais e ampliando a presença de uma nova geração luso-descendente”.
À Lusa, a académica lembra outro episódio com impacto na presença portuguesa: as rigorosas restrições adotadas durante a pandemia da covid-19. Apesar disso, observa que “muitas pessoas que partiram decidiram regressar”.
“A experiência de viver num território com uma dinâmica multicultural única, combinada com a forte ligação emocional e social estabelecida ao longo dos anos, fez com que o regresso a Macau se tornasse uma escolha natural para aqueles que não se sentiram plenamente integrados no seu país de origem ou noutros destinos”, realça.
No que diz respeito à relação com as autoridades, esta varia. A comunidade sente-se valorizada, especialmente no que diz respeito à preservação da língua portuguesa e papel de Macau como plataforma entre a China e os países lusófonos, diz. Mas salienta: existe uma “perceção crescente de perda de visibilidade e de apoio”, nomeadamente em relação à participação em decisões locais.
“Tem a ver com o facto de cada vez haver menos portugueses em cargos de decisão e de chefia, por isso as opiniões dos portugueses são cada vez menos levadas em consideração”, explica.
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