“O que nós temos são presos a mais”. Ao contrário do que sugere algum discurso público e político, Manuel Almeida dos Santos, presidente da Obra Vicentina de Auxílio aos Reclusos, considera que o problema de fundo nas cadeias portuguesas está no lado oposto: “Temos mais de 12 mil reclusos nos nossos estabelecimentos prisionais; isto coloca-nos no topo do número de reclusos por 100 mil habitantes, nos países da União Europeia”, diz em entrevista ao programa 7MARGENS, da Antena 1.
Os 12.201 presos que havia em Portugal a 15 de fevereiro fazem com que o país tenha “o maior tempo médio de cumprimento de pena de todos os países da União Europeia [UE]”, explica. Em Portugal, em média, cada recluso está na prisão durante 31 meses, enquanto a média da UE é de nove meses.
A situação leva este responsável a sentir-se “envergonhado” por este “lugar de censura”. Se Portugal tivesse a mesma média da UE, haveria quatro mil reclusos nas prisões, o que teria “implicações profundas: por um lado, não teríamos a desestruturação familiar que a prisão provoca e muitos desses reclusos provavelmente voltariam a estar no seio das famílias”. Outra consequência seria diminuir a reivindicação “de maior dotação de recursos humanos”. E haveria também “música para os ouvidos” de muitos políticos, com a consequente “redução da despesa” pública: “Estamos a gastar todos os anos mais de 300 milhões de euros só com as prisões.”
Na entrevista, Almeida dos Santos fala também de uma petição lançada pela OVAR, pedindo uma amnistia e um perdão de penas a propósito dos 50 anos do 25 de Abril e que pode ser assinada por qualquer pessoa.
“Está em causa trazer a realidade das prisões em Portugal, em termos de número de reclusos, para aquilo que são os valores da média da UE”, diz, sobre os objetivos da proposta dirigida à Assembleia da República e à Comissão Comemorativa dos 50 anos do 25 de Abril.
“O que pretendemos com esta petição é que, por um lado, se alie a noção de liberdade que o 25 de Abril tem” à ideia de “colocar em liberdade, mais cedo, pessoas que estão na prisão”, porque a sua reclusão não traz “nenhum contributo nem para a melhoria da situação social, nem para a recuperação do recluso”, diz o responsável da OVAR.
Acabar com as prisões
Além do elevado número de presos – maior do que o que existia em 1974, e que vinha a diminuir desde 1961 – estão em causa também os problemas e as “más condições” das prisões: entre outros, celas exíguas e sobreocupadas ou más condições ambientais (com humidades, com bolores, com ratos). Esta situação leva a condenações pelo Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, que obrigam, por vezes, ao pagamento de indemnizações aos reclusos. “E os contribuintes parece que ficam mais satisfeitos em, dos seus impostos, pagarem indemnizações aos reclusos, do que melhorarem as condições nas prisões para não ter de pagar essas indemnizações”, verifica Manuel Almeida dos Santos.
Um outro exemplo é a retenção dos cartões de cidadão. “Outra ilegalidade”, diz. “A vida nas prisões é passada dentro de uns muros em que o Estado de Direito fica à porta”, acusa, lembrando a frase de Dante no Inferno d’A Divina Comédia: “Oh vós que entrais abandonai toda a esperança.”
O responsável da OVAR aborda ainda temas como as penas sucessivas, que considera que funciona quase como uma prisão perpétua, bem como a ausência de publicação dos relatórios de vida dos reclusos e agentes prisionais, além de defender também uma sociedade em que as prisões não existam. “Temos já exemplos históricos de dificuldades que noutros tempos existiram, para acabar com certas práticas que eram normais e que hoje já aceitamos que não são”, justifica, dando o exemplo da abolição da escravatura.
“A pena de morte foi até ao século XIX um espectáculo público”, mas agora “temos de tornar o século XXI como o século da grande dinâmica para a abolição das prisões.” E isso é possível? Manuel Almeida dos Santos acredita que sim, propondo que haja “uma sensibilização muito grande para que os actos anti-sociais diminuam ou acabem”, interiorizando “que não devemos fazer atos que atentem contra os outros” e, ao mesmo tempo, “enquanto comunidade sermos compreensivos para com algumas práticas anti-sociais”, que muitas vezes não são deliberadas mas fruto de “circunstancialismos”.
Na entrevista, o dirigente da OVAR refere ainda que a droga é hoje “o maior contribuinte da população prisional: cerca de 80%” dos reclusos são-no “por questões ligadas às drogas”, apesar de isso não aparecer estatisticamente. Por exemplo, muitos “crimes contra as pessoas” acontecem para roubar a carteira para arranjar dinheiro para comprar droga. E os eventuais atos criminosos deliberados configuram situações patológicas, afirma. “O que se designa como crimes na esmagadora maioria são problemas de saúde, são problemas patológicos.”
Igreja "podia fazer muito mais"
Sobre a assistência espiritual e religiosa nas prisões, Almeida dos Santos diz que ela é importante, mas nem sempre a Direção-Geral reconhece o seu benefício para o funcionamento do sistema.
Também a Igreja “podia fazer muito mais”, até olhando para o gesto do Papa, que em cada Quinta-Feira Santa se desloca a uma prisão para fazer a cerimónia do Lava-Pés com reclusos – e que Almeida dos Santos gostaria de ver replicado em Portugal.
A Igreja já foi “mais dinâmica no interior das prisões” (a própria Conferência Episcopal não refere o tema há já muito tempo), até por outra realidade: “Em muitos casos, as famílias terminam com a prisão de um dos seus membros.” Também por isso a ajuda às famílias é importante, defende.
Dos textos recentes do 7MARGENS, o responsável da OVAR sugeriu o artigo de opinião sobre Como lutar contra a extrema-direita, uma crónica de Helena Araújo em Berlim. “A nossa classe média tem-se preocupado muito com o seu umbigo”, lamenta, para acrescentar que nas eleições o índice de abstenção “é maior nos sítios em que estão concentradas pessoas mais pobres”, o que revela o afastamento dos mais pobres da política.
Como sugestão cultural, Almeida dos Santos propôs Eu, Daniel Blake, de Ken Loach, a história de um desempregado que se vê confrontado com uma teia burocrática e acaba a aceitar ajuda do banco alimentar. Um filme que “retrata muito bem a forma desumana em que este mundo está a cair”.
A entrevista pode ser ouvida na íntegra aqui.
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