A pergunta maior que pairava no ar não demorou muito até conhecer resposta. Questionado sobre o regresso a um estado máximo de emergência, Marcelo Rebelo de Sousa, em entrevista à RTP, disse que tal "está a ser ponderado" de forma "diferente" do primeiro, que ocorreu entre o dia 19 de março e 2 de maio.

"É diferente no sentido em que é muito limitado, de efeitos sobretudo preventivos e não muito extenso", sublinhou acrescentando que "é esta a inclinação dos partidos" que ouviu. "Vamos ver se é a inclinação dos parceiros económicos e sociais, mas é a inclinação do próprio governo", afirmou Marcelo, distinguindo o país de hoje de o país de há oito meses.

Hoje "a economia não está bem, a economia conheceu sinais de recuperação, mas encontra-se numa situação que todos sabemos que é de quebra da riqueza nacional criada em relação a janeiro fevereiro", disse, acrescentando ainda que hoje há mais equipamento, camas e cooperação entre serviços do que há oito meses, quando a pandemia chegou a Portugal, assim como também se conhece melhor este inimigo comum. Por último, mas um fator não menos importante para a aplicação de um estado de emergência "limitado" quando comparado ao que aconteceu em março: "a sociedade está fatigada, está laça" quando colocada ao lado daquela que aderiu voluntariamente a um confinamento quase total no início do ano.

"Se perguntar neste momento por um confinamento, já não digo total, mas um confinamento muito vasto, a resposta é não. A resposta é sim a um estado de emergência limitado: com quem diga não e quem se abstenha, mas sim de uma maioria clara", referiu o Presidente da República, fazendo a comparação com o estado de exceção vivido entre março e maio e aquele que poderá vir a ser implementado no presente mês de novembro.

Marcelo Rebelo de Sousa acrescentou que os partidos que defendem esse "estado de emergência limitado" formam "uma maioria que está nos dois terços ou acima dos dois terços", observando: "se isto não é uma maioria clara - uma maioria de revisão constitucional - não sei o que é uma maioria clara".

Para o Presidente o estado de emergência está a ser ponderado para albergar três situações: a ampliação do rastreio com a inclusão das Forças Armadas, privados, entre outros, de forma a identificar cadeias de transmissão; resolver o problema jurídico suscitado pela medição de temperatura no acesso a espetáculos ou serviços públicos, por exemplo -“era preciso cobertura jurídica”, afirmou Marcelo - e para criar condições acrescidas para utilização de meios do setor privado e do setor social e cooperativo.

"A região de Lisboa tinha números que tinham passado despercebidos"

Relativamente à resposta política à pandemia de Covid-19, o chefe de Estado argumentou que o planeamento se tornou mais difícil com a descoberta de que "a região de Lisboa tinha números que tinham passado despercebidos", e mais tarde com "a surpresa da chamada segunda vaga, não na transição do outono para o inverno, mas do verão para o outono".

Marcelo mencionou que de acordo com "os modelos puramente matemáticos" Portugal poderá ter uma "duplicação do número de infetados" a cada quinze dias, o que daria entre "oito mil, nove mil, dez mil" no final deste mês.

Ainda segundo "a progressão matemática", Portugal poderá "passar de dois mil e tal internados para cinco mil, seis mil" e "em cuidados intensivos de perto de 300 para 600", e o número de mortos "pode aumentar significativamente ao longo das próximas semanas, por dia".

O esperado é que as medidas consigam quebrar estas previsões numéricas, disse.

Uma "solução global" para a Saúde, com cooperação entre Estado e privados

Marcelo Rebelo de Sousa defendeu que "a pressão dos acontecimentos torna ainda mais clara a necessidade de uma solução global" para a cooperação entre privados e Estado no setor saúde. O líder máximo da nação referiu que no início da epidemia de Covid-19 "foram acertados articulados, textos jurídicos para serem acordos celebrados entre ARS (autoridades regionais de saúde), porque a situação podia ser diferente nas várias regiões, e até unidades hospitalares ou unidades de saúde, com privados".

"Estava previsto clausulado e, entretanto, quer privados, quer sociais começaram a colaborar. Passaram pelos privados 15 mil doentes", prosseguiu o chefe de Estado, acrescentando que "o social nunca deixou de colaborar", e "mesmo sem a assinatura dos articulados, de acordos explícitos, foi recebendo doentes acamados, internados, para desbloquear a situação nas unidades de saúde".

Agora, no entanto, segundo o Presidente da República, "a pressão dos acontecimentos torna ainda mais clara a necessidade de uma solução global".

No seu entender, o número de camas disponíveis poderá ser suficiente, "na medida em que as mediadas tomadas tiverem um efeito de contenção, se as pessoas elas próprias se contiverem, e na medida em que houver o alargamento onde necessário, utilizando tudo o que há, no Serviço Nacional de Saúde, e mais privados e social".

"Eu penso que a capacidade global do SNS mais o contributo de privado, social e cooperativo permite fazer frente àquilo que é a evolução previsível, se as outras medidas forem assumidas pelos portugueses", reforçou.

O chefe de Estado recebeu ao longo dos últimos dias várias entidades do setor da saúde e também antigos ministros, além da atual titular da pasta, Marta Temido.

Em relação a um "acordo global" de cooperação entre privados e Estado, Marcelo Rebelo de Sousa afirmou ainda: "Pode sempre discutir-se o que é era preferível, se não era preferível haver a celebração de acordos por regiões, por ARS e por unidades que pudessem agir por si".

"Houve aí um bocado a visão de que se não chegaria tão depressa a uma situação de tal pressão que isso fosse necessário. Pensou-se: [a segunda vaga] será entre o outono e o inverno, não entre o verão e o outono", considerou.

"Eu estou a assumir a responsabilidade suprema por tudo isto"

Marcelo Rebelo de Sousa disse compreender "as críticas, as angústias e o estado de espírito dos portugueses, muitos", que "apontam erros, atrasos, contradições, ziguezagues" na resposta a esta pandemia.

No entanto, salientou que desde março "a pandemia nunca parou" e interrogou: "Quem é que pode planear quando os problemas estavam a surgir todos os dias? Planeava-se, mas no dia seguinte já estava ultrapassado. Eu era o primeiro a dizer: tem de se planear". "Eu não estou a absolver erros nem a dizer que não houve erros. Eu sou o maior responsável por eles, porque o Presidente da República é o maior responsável por aquilo que corre mal em Portugal", acrescentou o chefe de Estado.

Confrontado com o facto de o Presidente não ter funções executivas, contrapôs: "Mas dá cobertura política. Portanto, eu sou o maior responsável por o que aconteceu". "Eu estou a assumir a responsabilidade suprema por tudo isto", reforçou.

Em seguida, Marcelo Rebelo de Sousa assinalou que após a fase inicial da epidemia de Covid-19 em Portugal, "entrou-se em crise económica e social, portanto, o Governo passou a ter não uma frente, mas duas" e desde então "as medidas passaram a ter de ser calibradas".

Nesta entrevista conduzida pelo diretor de informação da RTP, António José Teixeira, o Presidente da República prometeu convocar as eleições presidenciais "até ao final do mês de novembro" e depois anunciar a sua decisão sobre uma recandidatura em "finais de novembro, princípios de dezembro".

O chefe de Estado fez alusão à salvaguarda dos direitos políticos em vésperas dessas eleições defendida hoje pelo PAN a propósito de um eventual estado de emergência e disse querer deixar claro "que não pode haver qualquer tipo de restrição à obtenção de assinaturas e àquilo que é fundamental numas eleições democráticas".

"Como a história se repete"

Marcelo Rebelo de Sousa contou que esteve "a ler um livro sobre a peste bubónica no Porto no fim do século XIX" e verificou "como a História se repete".

"O primeiro grande especialista de saúde pública chamado Ricardo Jorge chegou lá e detetou a peste bubónica, propôs medidas. Não houve acordo entre as autoridades e os especialistas, as medidas das autoridades começaram por ser populares, passaram a ser impopulares. O Ricardo Jorge foi tão impopular que apedrejaram a casa onde pensavam que ele estivesse, e depois queriam-lhe destruir a casa, teve de fugir do Porto. Mais, o povo revoltou-se de tal maneira que começou a negar a existência de peste", relatou.

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"Vamos juntar uma crise política a isto?"

Para além da crise económica, a pandemia parece ameaçar também o início de uma crise política, notória após a divisão dos partidos situados à esquerda no momento de votação do Orçamento de Estado para 2021 na generalidade em que Bloco de Esquerda votou contra, ao lado dos restantes partidos de direita e da Iniciativa Liberal, tendo o Governo conseguido passar o documento através das abstenções de PCP, PAN, PEV e das duas deputadas não inscritas.

Convidado a comentar o panorama político atual, Marcelo deixou um aviso aos "os opositores" do Governo, afirmando que não vale a pena tentar apressar a sua queda com uma conjuntura de "três crises" provocada pela rejeição do Orçamento, porque o executivo "não cai". E ainda porque "três crises tornam a capacidade do Governo de responder à pandemia pior, tornam a capacidade do Governo de responder à crise económica e social pior".

"Dirão os opositores: melhor, é da maneira que ele cai mais rapidamente. Mas não cai - mas é que não cai", afirmou o chefe de Estado, acrescentando que "não cai porque o Presidente da República não tem poder de dissolução do parlamento durante um período de seis meses, nos últimos seis meses do seu mandato", e também "porque há a presidência da União Europeia a seguir".

O Presidente da República reiterou o apelo para que o Orçamento do Estado para 2021 seja viabilizado em votação final global no final deste mês, tendo em conta a situação de pandemia e a crise económica e social.

"Vamos juntar uma crise política a isto? Os portugueses percebem?", questionou, advertindo: "Convinha que realmente não se juntassem três crises".

Marcelo Rebelo de Sousa insistiu que "não é indiferente estar a governar com os duodécimos de 2020 do que com um Orçamento feito para 2021".

No entanto, e apesar do pedido de prudência política, Marcelo acabou por traçar um futuro pouco bom para o Governo de António Costa e, em última análise para o próprio, caso decida recandidatar-se às eleições presidenciais de 2021, decisão que voltou a remeter para o final deste mês ou início de dezembro. “Tenho visto com atenção o que acontece lá fora e conta-se por um ou dois dedos da mão os governos que foram reeleitos em contexto de pandemia. Tem sido governos a perder eleições e Presidentes a perder eleições", diz, afirmando que "quem é eleito é para ser punido perante o que corre mal" e "não só para ser louvado".

“Dizer que há cheiro a crise... isso há desde que surgiu a pandemia e a crise económica e social, o que é normal é que caiam a seguir”, diz dando o exemplo de “Churchill que ganhou a guerra e foi corrido a seguir” e do PSD de Pedro Passos Coelho que "encaminhou a crise anterior no sentido de uma solução" e que, apesar de ter ganho as eleições de 2015 em votação, não teve maioria parlamentar.

Recorde-se que o primeiro-ministro propôs esta segunda-feira ao Presidente da República que seja decretado o estado de emergência - que pretende ver renovado por um período alargado - "com natureza preventiva" para "eliminar dúvidas" sobre a ação do Governo para a proteção dos cidadãos em relação à pandemia da covid-19 em quatro áreas.

As quatro dimensões em que o executivo pretende um quadro jurídico mais robusto são as restrições à circulação em determinados períodos do dia ou de dias de semana, ou, ainda, entre concelhos; a possibilidade de requisição de meios aos setores privado e social da saúde; a abertura para a requisição de trabalhadores (seja no público ou no privado), alterando eventualmente o seu conteúdo funcional, para auxiliarem em missões consideradas urgentes no combate à pandemia; e a legalidade da recolhe de temperatura, seja no acesso ao local de trabalho, seja no acesso a qualquer outro espaço público.

Depois de receber o primeiro-ministro, o Presidente da República ouviu os nove partidos com assento parlamentar.

O estado de emergência vigorou em Portugal no início desta epidemia, entre 19 de março e dois de maio.

De acordo com a Constituição, a declaração do estado de emergência pode determinar a suspensão de alguns dos direitos, liberdades e garantias, por um prazo máximo de 15 dias, sem prejuízo de eventuais renovações com o mesmo limite temporal.

A sua declaração no todo ou em parte do território nacional é uma competência do Presidente da República, mas depende de audição do Governo e de autorização da Assembleia da República.

Em Portugal, os primeiros casos de infeção com o novo coronavírus foram detetados no dia 02 de março e até agora já morreram 2.590 pessoas dos 146.847 casos de infeção confirmados, de acordo com o boletim mais recente da Direção-Geral da Saúde.