O cuidado na escolha de todos os acessórios para ‘encarnar’ a figura bíblica esconde também a vontade de não querer ser identificado.
Um imperativo compreensível, sobretudo num protesto proibido pela polícia, mas que os manifestantes procuraram contornar sob o pretexto de uma iniciativa ‘religiosa’, para a qual não é necessária autorização das autoridades, explicaram os organizadores.
“Eu sou um mensageiro. O meu nome é Moisés e tenho uma mensagem para a polução de Hong Kong: são os cinco mandamentos”, disse à Lusa durante o percurso que o levou até uma das ruas ‘cercada’ pela polícia antimotim.
Os ‘mandamentos’ são inspirados nas cinco reivindicações do movimento pró-democracia que tomou as ruas de Hong Kong desde o início de junho, com protestos que já resultaram na detenção de mais de 800 manifestantes.
“Retirem a lei ‘chinesa’ da extradição; revoguem o termo motim; retirem todas as acusações que pendem sobre os manifestantes; criem uma comissão independente de inquérito [à atuação da polícia], e finalmente, o 5.º mandamento, verdadeira democracia para a população de Hong Kong”, enumerou o manifestante, rodeado de pessoas que fizeram questão de o aplaudir, no final.
Os avisos das autoridades foram ignorados por largos milhares de pessoas que voltaram a encher as ruas no centro da ex-colónia britânica, administrada pela China desde 1997.
A ameaça de incorrerem em penas até cinco anos de prisão por desobediência e das detenções de figuras proeminentes da contestação, de ativistas a deputados do parlamento de Hong Kong, não afetaram a mobilização.
Um dos pontos de ‘peregrinação’ foi a Catedral de São João, com muitos dos manifestantes a transformarem-se em ‘devotos fiéis’ para reforçarem o cariz ‘religioso’ da manifestação, para “rezar pelos pecadores’.
Os bancos de madeira da igreja anglicana foram oferecendo descanso aos manifestantes que iam entoando cânticos de inspiração religiosa, entre estandartes onde se podia ler “Sigam Cristo: Fé na cidade”.
A manifestação terminou junto aos acessos para a residência da chefe do Governo de Hong Kong, Carrie Lam, cortados pela polícia antimotim.
Uma manifestante mais idosa ajoelhou-se, ou para rezar ou para meditar, a poucos metros das forças de segurança, munidas de espingardas, escudos e bastões.
‘Moisés’ juntou-se à idosa e, à distância, dirigiu-se aos polícias: “Deus abençoe a polícia de Hong Kong. Vocês serão protegidos do perigo. Tenham fé no vosso juramento”.
Na quinta-feira, a polícia proibira a manifestação e a marcha convocada pela Frente Cívica de Direitos Humanos (FCDH), alegando razões de segurança.
Os ativistas políticos, que exigem entre outras reivindicações o sufrágio universal em Hong Kong, cancelaram a iniciativa e condenaram o que apelidaram de “violação de direitos básicos da população”.
A FCDH apelou hoje à população que acenda uma vela ou a lanterna do telemóvel às 20:31 (13:31 em Lisboa), para “espalhar a luz da democracia por todos os cantos de Hong Kong”.
Um horário escolhido para a iniciativa que associa, precisamente, o dia e o mês do dia em que hoje se assinalam cinco anos em que a China recusou o sufrágio universal em Hong Kong (mês 08, dia 31).
Numa longa publicação nas redes sociais, apenas em chinês, FCDH lembrou a capacidade de mobilização nos quase três meses de protesto, com milhões de pessoas nas ruas, num combate pela democracia que, sublinhou, dura há cinco anos, desde o movimento de desobediência civil conhecido como a “Revolução dos Guarda-Chuvas” que durou 79 dias.
Na sexta-feira, confrontada com as detenções policiais, a deputada pró-democracia Cláudia Mo disse em entrevista à Lusa que o Governo de Carrie Lam e a polícia estavam a “deitar combustível sobre o fogo” e, à semelhança da CFDH acusou as autoridades de estarem a ‘ferir de morte’ o Estado de Direito, cerceando a liberdade de expressão.
Para além dos ativistas políticos Joshua Wong, Agnes Chow, Andy Chan, Rick Hui e Althea Suen, a polícia deteve também três deputados do parlamento.
A esmagadora maioria das acusações está associada à participação e incitamento a participar em manifestações não autorizadas, agressões a polícias e vandalismo.
Em Hong Kong tem-se assistido a uma escalada de violência e a um aparente impasse político, com a chefe do Governo a admitir chamar a si poderes reforçados face à situação de emergência que se vive no território e com a China a estacionar tropas na cidade vizinha de Hong Kong, Schenzen.
* João Carreira (texto), da agência Lusa
Comentários