Tenho várias dúvidas sobre o budismo que penso que a maioria das pessoas também tem. Sei que que nasceu na Índia, é seguido por mais de 500 milhões de pessoas no mundo e está a desaparecer no seu centro tradicional, o Tibete.
A primeira coisa que queria que me esclarecesse é se o budismo pode ser considerado uma religião ou uma filosofia?
Eu acho que é as duas coisas. É a religião de milhões de pessoas na Ásia, com uma fé muito profunda, mas também existe uma maneira mais intelectual, mais lógica, de interpretar o budismo. Há “budólogos” que não são teólogos e há várias filosofias budistas, com diferentes correntes filosóficas..
Nasceu de tudo aquilo que Sidarta Gautama disse durante a sua vida - ele morreu com oitenta anos e teve essa experiência mística com vinte e oito anos…
Isso foi quando?
Foi há 2.623 anos, em 600 AC. É um personagem histórico, cuja existência está provada. Era um jovem príncipe que abandonou o seu reino à procura do sentido da vida. (Nasceu em Lumbini, região localizada nas planícies de Terai, no norte da Índia, território hoje pertencente ao Nepal. Era filho dos reis da dinastia Sakia.) Para ele, era uma questão existencial; porque é que há o nascimento, velhice, doença e morte? O que é que nós estamos a fazer aqui? Serve para quê?
Questionava todas as religiões da época e a existência de castas do hinduísmo. Foi o primeiro a dizer que uma pessoa não é nobre porque é filha de um nobre, a pessoa é nobre se o seu comportamento for nobre. Isso foi uma mudança completa no sistema de castas, uma revolução.
"Mesmo um personagem desperto ainda pode refletir a desciminação do grupo social onde está inserido. Não é por ter despertado que está livre de todas as descriminações."
E depois esse pensamento levou a várias interpretações, várias correntes, digamos assim?
Então, ele vai pregar até morrer. E os ensinamentos dele, depois da sua morte - nós não dizemos que morreu, dizemos “entrou em nirvana” - levaram a concílios entre os seus alunos e a escrever o que ele teria dito, porque ele próprio não escreveu nada. Assim começam a surgir as correntes filosóficas que interpretam o que disse.
E continua a ser interpretado de várias maneiras até hoje, não é?
Sim. Então temos os ensinamentos dele e as várias correntes filosóficas que geraram. Estão divididos em três receptáculos - três Cestas - , a que chamamos os Três Recipientes, Tripitaka. As fontes são as falas dele, Sutras ou Sastras, como resposta às perguntas que lhe faziam - o que era a vida ética, como viver em comunidade de forma a criar harmonia, as regras de relacionamento - e o Abhidharma, que são as correntes filosóficas a partir do que ele ensinou. E há as Três Jóias, O Ser que desperta, o Dharma, que representa a Lei ou a Doutrina, e a Sangha, que representa a Comunidade dos Discípulos que seguem os ensinamentos de Buda.
"É o próprio Buda que decide que a ordem pode ser integrada pelos dois géneros."
Estive no lugar onde ele nasceu, na índia, e tem templos japoneses, chineses, indianos, templos de cada país onde o budismo é seguido. Devem representar essas tendências.
Ele nasceu na localidade de Kapilavastu, que era a capital do reino de Sakia. Mas a sua experiência mística aconteceu em Bodigaya, que é onde tem os vários templos onde você esteve.
Eu conheci a monja japonesa que foi para lá para ajudar a construir o templo deles. Era uma das professoras do meu mosteiro, no Japão. O que acontece é que no budismo tradicional o monge não pode trabalhar, mas ela começou a ajudar os trabalhadores a carregar pedra, aplicar o cimento, e eles ao princípio ficaram zangados com ela. Depois perceberam!
O monge, não podendo trabalhar, sustenta-se como?
Originalmente vivia de esmolas. Era um pedinte. Mas é claro que isso mudou. O budismo vai da Índia para a China, e na China as pessoas não dão esmola na rua. Então eles começam a ser lavradores.
"A monja Cojima Sensei, que tinha apenas um metro e meio de altura, andou pelo Japão inteiro a pedir equidade entre os dois géneros. Foi criticada até por outras monjas, mas conseguiu."
Eu tinha ideia que só havia monges homens, até ter conhecido uma monja num templo nos Catskils, no norte do Estado de Nova Iorque. Antes tinha sido engenheira química.
Ah, sim, eu estive nesse templo. A primeira monja histórica chamava-se Mahaprajapati e era a mãe adotiva de Buda. A mãe biológica morreu uma semana depois de ele ter nascido e foi criado pela tia, irmã da mãe. Esta senhora vai ser a primeira monja. Depois dele ter despertado para o percurso místico, ele volta para casa do pai e encontra a mulher e o filho que ele tinha deixado. O pai dele já tinha ido. Então ela pede-lhe para se tornar monja. E ele disse-lhe que não podia, porque se as mulheres deixassem a família, o que aconteceria às famílias? Mas ela não se conforma e vai atrás dele. Num determinado dia, ele entra numa sala para fazer uma palestra e ela fica à porta. O discípulo mais próximo dele, Ananda, diz-lhe que vai interceder por ela. Ela fica fora da porta, enquanto Buda diz: “Todos nesta sala são budas, todos têm a mesma capacidade de aceitar o despertar, todos têm acesso”. E Ananda interpelou-o: “Se todos podem, as mulheres também podem. Porque é que o senhor não ordena Mahaprajapati?”
É importante pensar nisso, que mesmo um personagem desperto ainda pode refletir a desciminação do grupo social onde está inserido. Não é por ter despertado que está livre de todas as descriminações. Então, quando Ananda lhe diz isto, ele percebe o seu preconceito. Teve imediatamente essa perceção e Mahaprajapati vai ser odernada. É o próprio Buda que decide que a ordem pode ser integrada pelos dois géneros.
Os monges podem casar?
No Japão, sim. Nos outros países, não. Podem casar-se, ter filhos, e muitas vezes os filhos são sucessores no templo.
"Não é só aceitar “é assim”; é assim, mas não devia ser. Devia ser, o que faço para que mude?"
Esse é um aspeto interessante, porque então no budismo não faz sentido uma diferença entre o homem e a mulher - em termos teóricos, digamos assim.
Bem, é uma postura recente.
É recente no mundo ocidental, mas a sujeição da mulher ao homem, como sabemos, vem da pré-história, porque o homem ia caçar e a mulher ficava na gruta… Não vamos entrar nos pormenores, mas sabemos que é assim. Agora, a denúncia do machismo é uma coisa recente, e até muito mais recente do que pensamos, na realidade só no século XX é que se levantou a questão. Mas então esse problema não existe nesse mundo do budismo japonês?
Atualmente, não. No Japão, foram ordenadas as primeiras mulheres monascas (?), mas hoje é uma ordem masculina. Durante a II Guerra Mundial, muitos monges foram para a guerra. Quanto às monjas, conheci uma que se chamava Cojima Sensei e foi ela, que tinha apenas um metro e meio de altura, que andou pelo Japão inteiro a pedir equidade entre os dois géneros. As monjas não podiam oficiar enterros e casamentos, tinham sempre de se submeter a um monge próximo. E ela diz: “Não, nós podemos usar hábitos de cores (antes só podiam usar preto) e podemos oficiar.” Foi criticada até por outras monjas, mas conseguiu.
"Eu penso que não vamos ver isso, na nossa geração; mas podemos criar seres humanos capazes de salvar o meio ambiente."
Ora bem, o budismo considera que o objetivo da pessoa é o seu aperfeiçoamento.
O despertar.
E analisar as coisas de uma maneira o mais isenta possível, ou seja, livrá-las de todos os seus enganos e todas as suas máscaras e chegar à essência, à verdade. É isso?
É isso.
O Buda disse: “nada é o que parece, mas também não é outra coisa”. Ora bem, isto é o que se pode chamar de chegar à essência da coisa. Para isso, precisamos de nos despir de todos os preconceitos. O nosso aperfeiçoamento consiste nesse caminho, é isso?
É isso. É o que chamamos de “despertar”, libertar-se das ideias pré-concebidas sobre a realidade, o mundo e a vida, e sobre si mesmo. Ver o que é, assim como é. Os japoneses dizem assim como é, é. Agora, quando observamos as coisas através do que parecem, não vemos o que elas são. E vendo o que é, e como tudo está a ser, e em movimento e transformação, como é que podemos atuar para que essa transformação tenha um determinado rumo. Não é só aceitar “é assim”; é assim, mas não devia ser. Devia ser, o que faço para que mude?
E começa por nós próprios. É uma frase que a minha superior diz: “no momento em que eu mudo, o mundo muda".
"Se não mudarmos, se a nossa maneira de nos relacionarmos com o meio ambiente não mudar, a espécie humana desaparece."
É uma filosofia completamente humanista, nós somos o centro do nosso universo.
É isso, mas não é um antropocentrismo. Nós dependemos de todas as outras formas de vida para existir. O ser humano só existe porque há água, plantas, vento, sol, terra… Há um livro escrito em 2019, por David Leroy, e agora traduzido no Brasil, que se chama “Ecodharma”. É uma nova abordagem de algo que não é verdadeiramente novo, mas de que agora voltamos a tomar consciência: a dependência entre o ser humano e o ecosistema. Não é novo porque Buda já tinha dito, há 2600 anos: “Eu, a grande terra e todos os seres, juntos e simultaneamente, nos tornamos o Caminho”. Mas só agora nos estamos a perceber isso.
Não vamos conseguir sobreviver à destruição do nosso ambiente.
Eu penso que não vamos ver isso, na nossa geração; mas podemos criar seres humanos capazes de salvar o meio ambiente. As crianças já tiveram esse despertar. Agora está a acontecer outro grande despertar, da equidade de género e de etnias. Essa nova geração já é criada com isso. Temos é de parar com as guerras.
"Não é uma reencarnação. Essa identidade que nós somos é irrepetível. O budismo tibetano é reencarnacionista até a um certo ponto."
Essa visão é muito optimista; quando vejo o noticiário, é exatamente o oposto.
Parece que demos dez passos para trás.
Nós evoluímos muito tecnologicamente, mas do ponto humanista, do ponto de vista ético, continuamos na Idade da Pedra. Continuamos a matar-nos à pedrada - agora com mísseis - e essa diferença entre o progresso tecnológico e o 'recuo intelectual', chamemos-lhe assim, é que vai acabar por nos destruir, de alguma maneira.
Pode ser, mas eu acredito no ADN humano, que quer sobreviver. Terá de haver mudanças, porque se não mudar vai desaparecer mesmo. E como o nosso ADN é muito antigo, existe desde a Idade da Pedra, somos sobreviventes de tantas situações, que tem de ocorrer essa mudança. Se não mudarmos, se a nossa maneira de nos relacionarmos com o meio ambiente não mudar, a espécie humana desaparece.
"A China escolheu uma personagem para ser a reencarnação. Então, não vai haver nenhuma."
Há duas coisas na filosofia budista que me causam alguma espécie. Uma é a questão das reencarnações. Não são credíveis por razões várias, algumas práticas como esta, por exemplo: nós hoje somos oito mil milhões, e já fomos só um milhão, então como é que um milhão pode reencarnar em oito mil milhões?
A outra questão é que há uma transmissão através do ADN, mas isso não significa uma reencarnação.
Há uma afirmação no seu livro que, de alguma maneira, contorna essa situação, quando a Monja cita alguém que diz que cada onda é única mas a água do mar é sempre a mesma. É assim que deveríamos interpretar as reencarnações?
É. Não há bem uma reencarnação; tudo o que existe é vida num movimento incessante de transformação. Cada uma das nossas vidas é como se fosse uma onda do mar. Além da causalidade, que é o ponto central do budismo. Causas e condições fazem com que uma onda se manifeste, como nas nossas vidas. Pode ser pequenina, no meio do mar, um feto que morreu, outra pode ser uma onda enorme que vai morrer na praia, branquinha, velhinha. Mas quando uma onda termina não deixa de ser água do mar e vai dar origem a outra onda, que não é a mesma. Isto quer dizer que a autoidentidade é insubstancial. Nada é independente e separado; é sempre o todo que está a manifestar-se, com causas e condições que permitem que nós estejamos aqui agora, por exemplo.
O que dizia o Buda? Dizia que nós somos duas gotas, uma branca e uma vermelha, que fazem o ser humano. O homem e a mulher. Juntam-se a duas gotas, começam a dividir-se e formam um novo ser humano. Há causas para isso acontecer. O ADN é uma delas.
Agora, não é uma reencarnação. Essa identidade que nós somos é irrepetível. Deixamos marcas no Universo, com a nossa vida. Como os professores deixam nas academias, os escritores nas ideias. Deixam marcas, e os que vêm depois pegam no bastão e levam adiante.
O budismo tibetano é reencarnacionista até a um certo ponto.
Aí podemos entrar diretamente na questão do Dalai Lama.
O budismo no Tibete vai acabar. Aliás o Tibete, como nação independente, acabou. Hoje a população do Tibete tem mais chineses do que tibetanos. Os comunistas chineses, sendo como são, querem acabar com o país e com a filosofia. Contudo, o budismo não vai desaparecer porque está espalhado pelo mundo.
Mas, quanto à questão específica do Dalai Lama; ele é uma reencaranação? Porque o que se diz é que cada Dalai Lama é descoberto através de uma série de sinais que mostram que é o anterior. Como explica isso?
O budismo japonês não tem essa crença. Nós até achamos que é descriminatório dizer isso a alguém. Eu tenho um grande amigo, em São Paulo, que é professor da cerimónia do chá, e é brasileiro. E é tão bom que lhe disseram que deve ser a reencarnação de um japonês. E ele responde: “Isso é descriminação! Por eu ser brasileiro não seria capaz de fazer a cerimónia do chá?”
Então há ai um aspeto bastante perigoso. Sua santidade o Dalai Lama, há poucos anos, afirmou que não vai haver mais nenhuma reencarnação dessa entidade. Porquê? Porque a China escolheu uma personagem para ser a reencarnação. Então, não vai haver nenhuma.
"No passado, considerava-se que tudo era a natureza, o Buda a manifestar-se. Mas existem limites, não é? Temos que nos posicionar no mundo."
O Xi Jinping quer nomear o próximo Dalai Lama, o que não deixa de ser contraditório mas faz sentido político. É contraditório porque, evidentemente, os comunistas não acreditam em reencarnação; mas faz sentido político porque será uma maneira de controlar de vez o budismo, se não no mundo, pelo menos no Tibete.
Mas há um miúdo, que deve ter um dez, doze anos, que é considerado o próximo Dalai Lama.
Eu não sei, porque são coisas do budismo tibetano que conheço pouco, sendo a minha escola japonesa. Mas é interessante pensar que eles têm esse processo. Dizem que é uma reencarnação; mas se escolher uma criança de quatro ou cinco anos e começar a colocá-la num trono e a dizer-lhe que é o próximo Dalai Lama e a treiná-la e educá-la com os maiores professores de budismo que possam existir, ela acaba por se tornar um Dalai Lama. Se dá o poder, treina e educa alguém, e essa pessoa tem essa disponibilidade - porque escolheram uma criança inteligente - então acaba tornando-se, como qualquer um de nós se pode tornar seja lá o que for, se for treinado para isso.
O atual Dalai Lama, que tem sentido de humor, já disse uma vez que não será preciso haver um sucessor. Talvez para contrariar a tomada desse poder pelos chineses. Quer dizer: é evidente que, acabando o Tibete como nação e acabando o budismo no Tibete, passa a fazer parte da China e deixa de fazer sentido esse conceito de Dalai Lama.
Mas então, as tendências dentro do budismo aceitam todas este Dalai Lama?
Nós reconhecemos que ele é líder de uma escola budista tibetana, não de todas. Se a reencarnação é verdadeira, não entramos no mérito dessa questão. É a mesma coisa com os cristãos; não podemos entrar no mérito da crença cristã de que Jesus é filho de Deus. Isso para nós não faz sentido, mas não vamos dizer isso a um cristão, que vai ficar muito ofendido. Para ele, Cristo é o filho de Deus. Nós dizemos que foi um ser humano extraordinário, incrível, sábio - nos relatos, tudo o que ele disse é muito bom.
"Treina-se uma criança para ser um Dalai Lama, como se treina outra para ser um assassino. Eles [ os terroristas] são treinados desde miúdos; instiga-se o ódio, a raiva."
Relatos que foram escritos entre o século I e o século II e são anónimos. O nome dos autores foram acrescentados depois. No islamismo, Jesus não foi crucificado e subiu ao céu vivo.
Quando interessou, não é?
O único contemporâneo dele que escreveu foi o São Paulo, as famosas cartas.
Bem, as histórias de Buda também foram escritas depois da sua morte. Ele sabia escrever, mas a pregação foi toda oral. Só escreveram as suas palavras cem anos depois. Os textos começam sempre com a expressão “Assim eu ouvi”, porque seria escrito por pessoas que o tinham ouvido.
"Quando se misturam os três venenos básicos, a raiva, a ganância e a ignorância, os homens são capazes de todas a estupidezes do mundo."
A outra questão que eu tenho em relação à postura budista é que torna as pessoas demasiado complacentes com a iniquidade, na medida em que consideram que a maldade faz parte da natureza humana e, como tal, deve ser aceite. Os espíritas brasileiros têm a mesma postura. Lembro-me de que havia espíritas brasileiros que aconselhavam os generais da Ditadura (1964-85). Perguntaram a um deles como podia ser guia espiritual de um torturador e ele respondeu “a vida é assim, é a vontade de Deus.” E eu penso - talvez esteja errado - que o budismo também tem essa contradição ética, ou seja, ao aceitar que tudo é “natural” - uma vez que o budismo não tem Deus - isso torna os budistas muito passivos em relação às iniquidades.
Essa questão é levantada pelo budismo atual, no Japão, quando se fala na posição dos monges perante as guerras. Criticando, evidentemente; “como é que vocês permitiram isso?” Então, existe uma nova visão que é atuar na realidade para a transformar e não aceitar o que está mal. Como é que a pessoa se manifesta no mundo para ocorrer a transformação que ela quer.
Não era assim no passado, considerava-se que tudo era a natureza, o Buda a manifestar-se. Mas existem limites, não é? Temos que nos posicionar no mundo.
As coisas nem sempre são boas. Quando vemos o absurdo do que o Hamas fez em Israel e, agora, Israel a bombardear os palestinianos, vemos que está tudo mal. Os dois estão errados não é?
Treina-se uma criança para ser um Dalai Lama, como se treina outra para ser um assassino. Eles são treinados desde miúdos; instiga-se o ódio, a raiva.
E há quantos anos, séculos, milénios os homens estão a lutar? E lutando porquê? Pelo Poder. É tão absurdo, nós ainda somos tão mesquinhos, tão pequenos, ainda estamos a lutar por fama, lucro, poder. Na ONU, os senhores da guerra são os únicos que têm poder de veto sobre as guerras. Quem fabrica armas, quer guerra para vender armas. Então, os que têm o poder não deixam os encontros de paz, os diálogos possíveis.
Acha que a filosofia budista podia ser uma força significativa nesta procura da paz? Os budistas não são conhecidos com ativistas.
Eu acho que o despertar da mente humana é que faz a diferença. Quando percebemos que quando se misturam os três venenos básicos, a raiva, a ganância e a ignorância, os homens são capazes de todas a estupidezes do mundo. É sempre o ego: eu sou mais importante, sou eu que mando, o meu povo é melhor - tudo isso são os egozinhos. Quando pudermos sair dessa situação e começarmos a perceber o “nós”, e o que nós juntos podemos fazer para o bem de todos…
Mas isso não vai acontecer. Eu, pelo menos, não vou ver. Eu sei que não vou ver, mas estou a plantar essa árvore. É essa a semente que tento que germine no mundo.
"Então eu acho que há tudo em nós, somos habitados pelo bem e pelo mal. É o ambiente que determina qual dos lados prevalece."
É uma questão de esperança na Humanidade, não é?
Eu acho que a nossa sobrevivência depende dessa esperança. Mas veja, eles chegam a um lugar - Putin, todos eles - em que dizem: “temos uma arma nuclear, nós podemos usá-la”, mas não fazem nada, não a usam porque se o fizerem morre toda a gente, ele inclusive. Então, sabendo disto, a situação vai até um determinado ponto e depois volta sempre para trás.
Agora, temos de chegar ao ponto em que as pessoas percebem que não é preciso matar e destruir, fazer coisas de uma maldade incrível. Porque será que somos psicopatas e sociopatas? Será que nascemos assim? É a afirmação do Rousseau, o homem é bom e a sociedade é que corrompe…
Ora, isso é que é uma grande questão. O Rousseau estava completamente enganado.
Então, e não tem o assassino nato descrito por Lombroso? (Em 1880)
No Brasil havia uma médica, a Sílvia Arns, que dizia que a violência começava no útero materno. Então a pessoa já tem tendências ainda em feto e nasce com aquilo. Agora, se tem uma tendência malvadinha e ela for estimulada, vai ser um assassino. Mas, se não for estimulada, pode estar lá dentro mas não sai para fora, não mata ninguém, não vai destruir nada.
Então eu acho que há tudo em nós, somos habitados pelo bem e pelo mal. É o ambiente que determina qual dos lados prevalece.
"Ora a natureza humana é neutra. Pode ser levada e provocada para qualquer lado. Qualquer de nós tem todas as possibilidades."
A teoria do “bom selvagem” de Roussau é que o homem nasce naturalmente bom e a sociedade é que o estraga. Ora, é exatamente o contrário: o homem é naturalmente mau e, para viver em sociedade torna-se mais manso senão não conseguiria fazer parte de um grupo.
Isso, temos de criar regras para conseguir viver em conjunto.
Pois, mas um bocado contrariados, digamos assim. Leva muito tempo a educar uma criança e é preciso insistir nos bons princípios de convivência.
Também não concordo. Mas sabe que o Dalai Lama de vez em quando diz coisas assim?
Uma vez disse uma coisa parecida com o Rousseau, que a natureza humana é boa. Ora a natureza humana é neutra. Pode ser levada e provocada para qualquer lado. Qualquer de nós tem todas as possibilidades.
"Uma coisa interessante é que há mais pessoas a praticar [ Budismo ] online do que presencialmente."
Monja, averiguou se existem muitos budistas em Portugal?
Não sei. Eu sei que há um centro de prática zen-budista aqui em Lisboa, mas não conheço.
E no Brasil?
No Brasil está a crescer. Durante a pandemia houve uma procura muito grande pela meditação e pelo yoga. Estavam todos fechados em casa, não tinham nada para fazer! Agora, neste pós-pandemia, é que estamos a tentar perceber se houve crescimento.
A pandemia mudou muito o comportamento das pessoas.
Pois mudou. Uma coisa interessante é que há mais pessoas a praticar online do que presencialmente. O Brasil tornou-se uma sociedade muito perigosa, é mais seguro ficar em casa, Não se pode sair e muito menos andar com um telemóvel na rua.
Um filósofo português, Eduardo Lourenço, tem um conceito chamado heterodoxia, que é uma atitude mental que eu acho que conjuga muito bem com a abordagem budista das coisas. O que ele diz, basicamente, é que não devemos seguir nenhuma ortodoxia, devemos analisar todas as ortodoxias pelo que elas são e ver o que têm de bom e de mau. Heterodoxia não é o contrário de niilismo, que é a recusa de tudo. Como ele é de cultura francesa, nunca citou a Patty Smith, mas é ela que tem a melhor definição: “O meu lado é o de fora.” A heterodoxia é a capacidade de ver as coisas sem nenhum preconceito.
Isso é Buda. É o chamado “despertar”. Concluímos que o Eduardo Lourenço, sem o saber, era budista!
*(entrevista corrigida às 16:46 de 5 de novembro, 2023)
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