“A Carta da ASEAN diz que os Estados-membros devem agir de acordo com uma série de princípios, [incluindo] o Estado de Direito, a democracia e o governo constitucional”, disse à Lusa a especialista em assuntos constitucionais do Instituto Internacional para a Democracia e Assistência Eleitoral (IDEA), Kimana Zulueta-Fülscher.

A especialista, que até há cinco meses viveu em Myanmar (antiga Birmânia), onde durante dois anos foi responsável por um programa para promover boas práticas constitucionais, defendeu que os valores a que a ASEAN está obrigada deveriam conduzi-la a condenar de forma firme o golpe militar de 01 de fevereiro, que depôs o Governo eleito de Aung San Suu Kyi.

“Isso dar-lhes-ia uma oportunidade para pressionar o Tatmadaw [nome oficial das forças armadas] a aderir à Constituição de 2008″, que “não foi suspensa pelos militares mas foi violada”, e a “parar a violência” e “libertar os prisioneiros políticos, bem como os manifestantes anti-golpe”, defendeu.

A doutorada em Ciência Política apontou no entanto que o recém-criado Governo de Unidade Nacional em Myanmar, formado por deputados eleitos antes do golpe, “pediu à ASEAN para ser reconhecido e convidado a participar na cimeira”, o que até agora não aconteceu, ao contrário do líder da junta militar, general Min Aung Hlaing, convidado a participar na reunião de emergência.

Para o conselheiro e especialista em Myanmar Richard Horsey, do Grupo Internacional de Crise, um ‘think tank’ fundado em 1995 para prevenir conflitos, sediado em Bruxelas, a ASEAN “está dividida” em relação ao vizinho asiático.

“A ASEAN tem alguma influência e poder, mas está profundamente dividida sobre esta questão”, disse à Lusa o analista.

Para Horsey, que vive há 30 anos entre Inglaterra e Rangum, antiga capital de Myanmar, o grupo de países do sudeste asiático deveria “ultrapassar a diplomacia silenciosa e a não interferência, reconhecendo que a crise [naquele país] é uma ameaça, não só para a legitimidade da ASEAN, mas também para a sua segurança e prosperidade”.

O perito, que estava em Rangum durante o golpe militar e assistiu ao início dos protestos, apresentou um ‘briefing’ ao Conselho de Segurança da ONU em 09 de abril, alertando que o país está à beira do colapso, com o sistema bancário e as estruturas de saúde em crise e a “fome no horizonte”.

“Myanmar tem enfrentado conflitos armados internos há 70 anos, grande parte desse período sob regime ditatorial, com uma governação fraca e poucos serviços públicos. De certa forma, o país há muito que tem uma guerra civil e um fracasso do Estado”, disse o analista, em resposta por escrito a questões enviadas pela Lusa, sublinhando o risco de agravamento da situação.

“A preocupação é que a crise atual possa ser ainda mais desestabilizadora e que o país resvale para uma violência e disfunção ainda mais profundas, de que seria muito difícil recuperar, e que teriam um grande impacto nos seus vizinhos”, alertou.

Para o analista, a China é determinante na resposta à crise no país.

“Como superpotência e vizinho, a China tem mais influência do que qualquer outro ator externo”, defendeu. “Não está satisfeita com a situação, que mina os seus interesses económicos e geopolíticos, mas vai abordar as suas preocupações bilateralmente, e não quer que o Conselho de Segurança da ONU, muito menos os países ocidentais, assumam um papel de liderança na resposta à crise”, acrescentou.

Kimana Zulueta-Fülscher, da IDEA, recordou as “grandes ligações e interesses económicos” de Pequim na antiga Birmânia, incluindo a Iniciativa Faixa e Rota (Belt and Road Initiative), um plano chinês para investimentos no estrangeiro que inclui Myanmar, além de petróleo, gás e oleodutos.

Por essa razão, o gigante asiático “está provavelmente muito interessado num Myanmar estável, pensando também nos seus interesses políticos e económicos”, afirmou.

“Um regresso à situação anterior ao golpe é, evidentemente, muito difícil, pode ser demasiado tarde para isso, o que talvez possa forçar a China a tomar uma posição mais franca, algo que talvez o Governo chinês não se sinta realmente confortável em fazer”, apontou a especialista da organização que promove a democracia.

“Mas a escolha pode ser entre intensificar a sua posição como vizinho poderoso ou que Myanmar deslize para a guerra civil”, concluiu.

O secretário-geral da ONU, António Guterres, e o seu antecessor, Ban Ki-moon, pediram esta semana à ASEAN para agir, de forma a acabar com a repressão contra os civis em Myanmar, durante a cimeira sobre a antiga Birmânia que vai decorrer na Indonésia, no sábado.

Mais de 700 pessoas morreram durante a repressão policial e militar contra o golpe de Estado de 01 de fevereiro, segundo a Associação de Assistência aos Prisioneiros Políticos (AAPP), que contou mais de 3.200 detidos, incluindo a líder deposta, Aung San Suu Kyi.

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