O fascismo ocorre num momento preciso da história, surge a seguir à Primeira Guerra Mundial, como reação a uma crise económica e social profunda, à desmobilização massiva de soldados e à ideia de que a democracia é propícia à desordem. E ao receio do comunismo e do que pudesse vir da União Soviética.

As características de um regime fascista são marcadas: nacionalismo exacerbado, expansionista, revolucionário, radical, racista e repressor. Há outro traço fundamental, a liderança carismática, que inflama multidões e leva à obediência cega, à idolatria. Se na Alemanha, ou em Itália, existia a ideia do Homem Novo, em Portugal o objetivo nunca passou de pôr as contas em ordem.

Rita Almeida de Carvalho, historiadora e investigadora do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, com trabalhado sobre os regimes de Salazar e Marcello Caetano, entre outros, explica ao SAPO24 o que é o fascismo e por que motivo não existe nem nunca existiu em Portugal.

Hoje, usamos a palavra fascismo com demasiada ligeireza ou até leviandade?

De facto, é uma classificação muito conectada com o regime salazarista, mas na verdade penso que tem mais a ver com o processo de memória e com alguns aspetos do regime salazarista que eram, de facto, fascistas ou fascizantes e que normalizaram a expressão fascismo sem nenhum rigor histórico, como é óbvio. Mas estamos aqui para esclarecer essa questão.

Afinal, o que é o fascismo e o que o caracteriza?

O fascismo é um fenómeno que ocorre num momento preciso da história, que surge a seguir à Primeira Guerra Mundial, que tem a ver com uma reação a uma crise económica gravíssima e a uma crise social gravíssima. Tem também a ver com, para os países que participaram na Primeira Guerra, uma desmobilização massiva de soldados, tem a ver, também, com a ideia de que a democracia era pouco eficaz e propícia à desordem. Tem outro traço fundamental, que é o anti-comunismo, as pessoas estavam cheias de receio daquilo que vinha da União Soviética. Tem um contexto histórico que é este.

O nascimento do fascismo tem, depois, outras dimensões do ponto de vista mais institucional, que são as polícias políticas, que são os partidos únicos, que são as milícias, que são as organizações de juventude. Normalmente, também, tem alguma disputa com a Igreja Católica, é o caso de Itália, numa tentativa de retirar poder à Igreja Católica — depois Mussolini vai assumir um compromisso e vai até fazer um acordo com o Vaticano, mas, de início, é uma coisa também contra a Igreja.

Portugal viveu o fascismo? Podemos dizer que com Salazar ou Marcello Caetano estávamos perante um regime fascista?

Não. Esta questão é polémica. Há historiadores, normalmente aqueles que são mais politizados e vêm muitas vezes da resistência ao Estado Novo, que consideram que o regime salazarista foi fascista até 1974. Até se percebe que se possa considerar fascista até à Segunda Guerra Mundial, mas depois disso muito dificilmente reúne as características do fascismo.

Porque há dimensões que me parecem interessantes e que acho que são características muito específicas, como a questão do nacionalismo. O nacionalismo nos regimes fascistas é exacerbado. É expansionista, é radical, é ultranacionalista. É racista.

É repressor?

É repressor. Tem uma dimensão bélica, quase, um apelo à guerra. Se pensarmos no Hitler e no Mussolini, há constantemente aquela ideia de militarização da sociedade. Tudo isso não se verifica no regime português. Muito embora haja, de facto, traços comuns com os regimes fascistas.

Por exemplo, o corporativismo, que é uma forma de organização da sociedade e da economia que pretende ser alternativa ao liberalismo, que no fundo é uma forma de organizar a sociedade e os interesses económicos e sociais de maneira a eliminar a luta de classes, isso é um traço comum. Ou as organizações de juventude, tínhamos a Mocidade, as milícias, a Legião.

Também tínhamos a PIDE.

A PIDE. Mas os inspetores da PIDE, muitos deles, receberam formação em Inglaterra e nos Estados Unidos. Portanto, a PIDE não é por si só uma característica de um regime fascista. Ou não faz do regime português um regime fascista. A PIDE é uma polícia política, que existe em muitos países, quaisquer que sejam os regimes políticos, e essas polícias políticas podem ser mais ou menos violentas e há situações em regimes democráticos em que as polícias políticas são tão ou mais violentas do que foi a polícia política portuguesa.

Matámos gente, a polícia política matou gente e exerceu um poder que, nesse sentido, percebo que alguns historiadores chamem totalitário, que é a ideia de agir preventivamente. Isto é, utilizar uma certa violência, mas como força dissuasora.

Se percebermos o que se passa nas campanhas eleitorais do salazarismo, o que vemos é que a polícia política está, sobretudo até aos anos 50, omnipresente em todas as manifestações da oposição e o ministro do Interior dá instruções para que qualquer indivíduo que esteja envolvido num comício — até, como aconteceu em 1949, na campanha do Norton de Matos, no Porto, em que duas senhoras que o vêem passar tiram o chapéu —, seja imediatamente sinalizado e inquirido no sentido de se saber se é ou não funcionário público. Se fosse, era demitido. E o medo de perder o emprego desmobilizava as pessoas, num altura em que a indústria era relativamente inexistente, a estrutura social era rural e a que não era assentava toda na administração pública. Por isso não havia necessidade de fazer uso de uma força mais violenta.

Outra coisa que gostava de dizer é que o facto de eu e muitos outros colegas meus dizermos que o regime salazarista não é fascista não significa que o regime salazarista seja melhor do que os regimes fascistas. O que significa é que é diferente, tem outras dimensões, como a ideia de ir para África e transferir para Angola o modelo de Trás-os-Montes, coisas deste tipo.

Já vamos voltar aqui. Em que países conseguimos ver hoje regimes fascistas?

Para mim, que sou historiadora, que eu conheça, que eu saiba, não há regimes fascistas atualmente. O fascismo nasceu de circunstâncias históricas muito específicas, que já referi, e a história não se repete. Portanto, agora há outras formas.

Há ditaduras.

Há ditaduras e há populismos. Mas eu diria que estas características que mencionei não estão presentes todas elas ou muitas delas em regimes ditatoriais ou de direita radical, que poderiam ter alguma semelhança com os regimes fascistas do pós Primeira Guerra Mundial.

Não quer dizer que, perante fenómenos como a imigração massiva, que vivemos hoje, a ideia de que os povos que vêm de outros lugares do mundo vêm destruir a civilização ocidental, isso não tenha uma certa semelhança com os regimes fascistas, porque os regimes fascistas têm a ideia de que a raça deve ser pura, tem questões étnicas por trás que podem ter alguma semelhança com aquilo que estamos a viver hoje. Mas faltam muitos requisitos para serem considerados fascistas.

Rita Almeida de Carvalho
créditos: Diogo Gomes | MadreMedia

Podemos chamar aos líderes de alguns partidos que existem hoje neofascistas?

Diria que não há nenhum regime neofascista no poder. Há neofascismo, mas não há neofascistas a governar. Existem algumas tentativas, uma espécie de revivalismo dos movimentos fascistas, que são neofascistas, mas que têm características também diferentes, desde logo porque não chegam a tomar o poder, estão um passo atrás. Mimetizam, copiam aquilo que se verificou no passado, mas não são genuinamente tentativas revolucionárias de conquista do poder como foram os regimes fascistas do pós Primeira Guerra Mundial.

Podemos colocar nesse cabaz partidos como o Ergue-te ou como o Chega?

Esses partidos têm muito mais proximidade com fenómenos populistas do que com os regimes fascistas.

Falar de fascismo hoje, do ponto de vista histórico, quanto a mim não é correto. Ou por outra, não é rigoroso. Mas as pessoas falam de regimes fascistas porque vêem algumas similitudes e isso é legítimo, não é porque são todas pouco instruídas. Vêem algumas semelhanças, vêem um regime liberal em crise, com as democracias a serem incapazes de dar resposta aos problemas económicos e sociais do mundo.

Nesse sentido, há uma semelhança com o que se passou atrás, mas as respostas, quanto a mim, são claramente diferentes, não vemos partidos com fardas a partir montras e desfiles militares organizados, o racismo, embora exista, é muito mais dissimulado, mesmo nos partidos de direita radical.

Os políticos atiram com a palavra fascista quase como meio de prevenção?

Creio que é instigarem algum medo às pessoas; vamos viver aquilo que já vivemos no passado. Porque parece-me, embora eu não seja politóloga, que partidos como o Chega são partidos muito mais de protesto do que propriamente partidos de poder. Espero ter razão naquilo que estou a dizer. O que acontece por essa Europa fora é que, por vezes, coligam-se e participam em governos, mas a razão por que são eleitos é muito mais um ato de protesto.

A liderança carismática é outro traço do fascismo? E encontramo-la hoje?

Outra dimensão que é fundamental nos fascismos é a liderança carismática. Ventura não é um líder carismático, no meu entender. Não inflama multidões, não provoca aquela quase cegueira, a ideia de obediência cega. Se reparar, nos filmes de propaganda do nazismo, por exemplo, da Leni Riefenstahl [cineasta alemã], o que vê são cerimónias quase religiosas. De alguma forma eles substituem a ausência de Deus na vida social, digamos assim, e têm rituais, têm fardas, têm demonstrações de força.

Os líderes dos regimes fascistas do período entre guerras são líderes carismáticos. Não sei se alguém considera o Ventura um líder carismático, mas eu não vejo em que é que ele é um líder carismático.

Porque há muitos regimes neste período histórico, no período do fascismo, não de agora, que são ditaduras radicais de direita. Mas a questão é que lhes faltam ingredientes que são chave. Se vir os filmes dos desfiles do Partido Nazi, na Alemanha, repara que as pessoas estão completamente em êxtase a olhar para o Hitler, e o mesmo acontece em Itália. É como se as pessoas estivessem a olhar para uma espécie de Deus, como se os líderes tivessem sido escolhidos pela providência divina para liderar um povo. E é uma coisa irracional.

Por minha culpa não falámos ainda no anti-semitismo, outro dos traços do fascismo, não?

Sim, é uma das características que distingue o fascismo e que distingue o salazarismo dos fascismos, digamos assim. O salazarismo não é anti-semita, o não quer dizer que não houvesse setores da sociedade que o fossem, mas a liderança do regime não era anti-semita, esse não é um traço definidor do regime português, ao contrário do que se passa na Alemanha, por exemplo.

Há pouco falava noutras dimensões do regime salazarista, no modelo rural por oposição à industrialização. Pode concretizar?

É outro traço distintivo do salazarismo relativamente aos fascismos, a ideia da resistência à modernização. O fascismo nasce após a revolução industrial, na sequência de fenómenos de deslocação das populações para os centros urbanos, as pessoas perdem os seus laços familiares, ficam isoladas e precisam de algo que lhes dê um sentido para a vida.

E o fascismo vem preencher esse vazio, vem dar sentido a uma vida muito desconectada, numa sociedade em que a família deixa de ser o elemento estruturante, em que as pessoas trabalham muito e em condições de vida terríveis nas cidades, onde já não têm o apoio que tinham dos vizinhos, de aspetos da vida rural que dão às pessoas um certo amparo e que nas cidades estão de todo ausentes. Ao contrário do que acontece no salazarismo.

Porque quer a Alemanha quer a Itália eram países industrializados, enquanto Portugal era um país rural e que fazia questão em ser um país rural e que não queria passar por um processo de industrialização. Trabalhava-se para melhorar ligeiramente as condições de vida das pessoas, mas o ideal, e isso é também uma característica definidora do nacionalismo português, é sempre o ideal rural.

Daí que Salazar diga coisas como "que horror, como é possível autorizar a Coca-Cola em Portugal e depois ver os camiões a acelerar o ritmo do nosso campo, da nossa paisagem. Que é, no entender dele, perfeita. Por isso ele faz aquela coisa espantosa de recriar em São Bento uma espécie de paraíso rural; tem as suas galinhas, tem os seus coelhos, tem uma quintinha nos jardins do palácio.

Aliás, ele tem até a preocupação de, quando se muda para o Palácio de São Bento, em 1938, fazer a distribuição dos diferentes espaços, designadamente onde são os galinheiros, as coelheiras, a nitreira. Porque quer conectar-se àquilo que são as suas origens. O ideal dele de Portugal é o de um país pobre, rural, atrasado, a ideia do pobrezinho, mas feliz.

Veja a diferença do que seria o homem ideal para Salazar e o homem ideal para o nazismo do Homem Novo, que é outra característica definidora do fascismo, a ideia de que é preciso fazer uma revolução. Porque o fascismo é um fenómeno revolucionário, outra ideia que não está presente no regime português. É revolucionário porque é construir uma coisa em reação a uma sociedade, uma alternativa à sociedade existente, que faz uma ruptura com o passado e, nesse processo, destrói as estruturas existentes. Ora, não temos nada disso no salazarismo.

Há pouco falava na propaganda. Até a propaganda é diferente, ou tem pontos em comum?

A propaganda... Talvez não seja tão diferente assim. Isto é, não estou a falar do conteúdo da propaganda, mas a utilização da propaganda, outro traço que é comum a estes regimes. Claro que o nosso, à nossa escala, é mais modesto, até porque António Ferro [dinamizador da política cultural do Estado Novo] — e aquilo que vou dizer agora também é polémico, porque toda a gente diz que ele é modernista — , era um colecionador de objetos de artesanato, a casa dele estava cheia de telheirinhos e arabescos por todo o lado.

Isto para dizer que um modernista é, por exemplo, um Corbusier, do ponto de vista arquitetónico, uma pessoa que faz uma ruptura com o passado. O que António Ferro faz é utilizar os mesmos dispositivos, mas para fazer uma outra coisa que não tem nada a ver com o fascismo.

Ele tem um discurso, em 1934, creio que no Teatro D. Maria — e estava a falar para os membros de uma organização que era a Ação Escolar de Vanguarda, portanto, jovens com muitas afinidades com os fascistas da Europa daquele tempo —, em que diz, basicamente, "acusam o nosso líder de não ser suficientemente revolucionário, mas o salazarismo é revolucionário, a nossa revolução é a ordem nas Finanças". Isto não tem sentido.

Enquanto os fascistas querem criar uma sociedade nova, com homens novos, vigorosos, fortes, loiros, António Ferro fala da ordem nas Finanças. Portanto, o modernismo dele é muito mitigado. A não ser no uso que ele faz dos instrumentos de propaganda, que fazem também os regimes fascistas e comunistas — porque o comunismo também é um movimento revolucionário. Ele aprende com o que os outros estão a fazer e faz utilizando os mesmos meios, mas não para os mesmos fins.

É que os regimes fascistas são regimes totalitários, que controlam todos os aspetos da vida em sociedade. Há colegas meus que consideram o regime salazarista totalitário, mas a verdade é que se as pessoas não se mobilizassem politicamente, viviam com a maior das normalidades.

Ajudei um investigador a fazer inquéritos sobre a forma como as pessoas nas áreas rurais percepcionavam a PIDE e, para grande perplexidade minha, a maior parte das pessoas disse que era uma coisa que não lhes passava pela cabeça; estivemos em Braga, em Viseu, em Faro. Tirando aqueles que eram politicamente mobilizados, esses sim, sofriam e sofriam muito, ninguém queria saber da PIDE para nada. Porque a sociedade portuguesa também vive numa certa apatia.