Dois anos depois do início da pandemia, quando as restrições estão de novo a ser aliviadas, e que especialistas admitem que o fim da pandemia está próximo, o responsável avisa: não se julgue que tudo volta ao normal com o fim da pandemia.

Tiago Pereira, coordenador do gabinete de crise covid-19 da Ordem dos Psicólogos Portugueses (OPP), em entrevista à Lusa salienta que neste processo de sequelas psicológicas relacionadas com a pandemia as mulheres são um dos grupos mais vulneráveis, porque mais expostas a fatores de risco.

E os jovens também, acrescenta, explicando que muitos deles viram interrompido o percurso natural de viver com os pais e depois tornarem-se autónomos. (Engrossando hoje os números da geração “nem-nem”, nem a estudar nem a trabalhar, que em 2018 representavam 12% dos jovens portugueses).

“As consequências da pandemia não terminam quando a OMS (Organização Mundial de Saúde) declarar o fim da pandemia”, afirma o responsável, acrescentando que depois virão os “lutos não resolvidos”. “Estivemos numa crise muito significativa e as energias vão-se esgotando. A capacidade de adaptação não é ilimitada. Foi muito tempo a viver em incerteza”.

O responsável insiste na necessidade de não se pensar que com o fim da pandemia “será tudo um mar de rosas” nem que todos os problemas se resolvem.

“Terminando a pandemia mantém-se algum tipo de sofrimento” e esse “fim” tem de ser muito bem explicado, porque “o pior que pode acontecer é dizer que acabou tudo sem uma certeza científica disso”, alerta o responsável, dizendo que já com a vacinação se criou a ilusão de que tudo terminaria, o que não aconteceu.

Ainda assim “fomos capazes de resistir durante dois anos de pandemia”, estamos a ser desafiados na capacidade de nos adaptar e temos de estar preparados para alterações”, diz Tiago Pereira, salientando como fator “muito positivo” o nível de confiança dos portugueses nas instituições, o que foi demonstrado na grande adesão às vacinas.

Ana Patrícia Hilário, socióloga, investigadora auxiliar no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, concorda. Esta elevada adesão deve-se em primeiro lugar “ao elevado grau de confiança nas instituições de saúde e nos profissionais de saúde”, diz à Lusa.

E reforça: a confiança nas instituições é baseada em dados quantitativos. Portugal é dos países com mais confiança nas instituições de saúde e nos profissionais de saúde.

Essa confiança surge no nível de adesão dos portugueses às vacinas, em geral, mas também às vacinas contra a covid-19.

Ana Hilário sabe do que fala porque integra um projeto de âmbito europeu, que começou antes do surgimento do novo coronavírus, que provoca a doença covid-19, sobre a hesitação perante a vacina (projeto VAX.TRUST), seja o adiamento seja a recusa. Além de Portugal fazem parte a Finlândia, Bélgica, Polónia, República Checa, Itália e Reino Unido.

“A Comissão Europeia já tinha (antes da covid-19) esta preocupação com a recusa da vacinação”, pelo que surge a proposta de um projeto para tentar compreender melhor o processo, diz a investigadora à Lusa.

E acrescenta: “o que sabemos é que Portugal já tem uma taxa de cobertura vacinal de cerca de 90%, com imunidade de grupo para várias doenças. E sucedeu o memo com a covid-19”.

Ana Hilário salienta que para estes resultados, e para a confiança nas instituições, há razões históricas.

“As gerações mais velhas lembram-se de como era antes de se iniciar a vacinação em Portugal. Recordam-se de doenças como sarampo, como a tuberculose, e percebem as consequências, que incluem a morte”, salienta Ana Hilário.

E essa confiança nas instituições está aliada a outra característica da sociedade portuguesa, “de coesão para o bem comum”. “Somos mais ´familiaristas´ do que individualistas, ao contrário de países como o Reino Unido. Esta coesão quando existem crises tem a ver com uma cultura própria”, salienta.

Ana Hilário admite que “as pessoas sentem algum peso” em relação a tanto tempo de pandemia, mas diz também que os portugueses se têm adaptado e que têm sido uma “sociedade muito resiliente”, que quer levar “isto a bom porto”, o que se sente na forte adesão às vacinas.

“É normal a adaptação, mas tem a ver com características históricas em que somos adaptáveis. Quando nos mudam as regras adaptamo-nos, a História mostra-nos isso, Portugal sempre foi um país rural e na ruralidade há sempre grande adaptabilidade”, diz a investigadora.

Mas há uma crítica que deixa, sobre a polarização que diz notar-se na sociedade portuguesa em relação às vacinas, com “uma condenação muito grande” aos que não se querem vacinar, sobretudo no espaço público, que passa por alguma agressividade.

Ana Hilário avisa que é normal as pessoas terem opiniões diferentes, e diz que é fundamental que se comece a viver com mais liberdade, não só em relação às medidas restritivas mas também no respeito pelos outros e pelas suas liberdades de escolha.

E deixa outro aviso, o da importância de um debate sobre alterações comportamentais em relação ao mundo atual dominado pelas alterações climáticas.

Nestes dois anos, afirma, fez-se algum debate mas não foi o suficiente, como também não foi suficiente o debate sobre a importância da ciência e do aumento dos financiamentos, até porque “a ciência teve um papel fundamental na pandemia”.

A verdade é que, diz, se não se fizer esse debate, sobre a ciência, as alterações climáticas, a relação com os animais, dentro de alguns anos pode surgir outra pandemia. É agora o momento, diz, de pensarmos o que podemos nós fazer para a evitar, e não ficarmos só a responsabilizar os governos.

Passam hoje dois anos sobre a primeira morte por covid-19 em Portugal.

O impacto de dois anos de pandemia: Estudo indica aumento da sintomatologia depressiva e ansiosa

O impacto de dois anos de pandemia no bem-estar emocional e psicológico expressa-se em “números preocupantes”, com aumentos na sintomatologia depressiva e ansiosa, nota a coordenadora de um estudo sobre pessoas enlutadas.

Em entrevista à Lusa, no dia em que se confirmou, há dois anos, a primeira morte por covid-19 em Portugal, Daniela Nogueira – doutorada em Psicologia Clínica e da Saúde e professora de Psicologia na Universidade da Maia – refere que 75,6 por cento dos participantes enlutados portugueses apresentam “sintomatologia ansiosa”: 59,1% ligeira a moderada e 16,5% severa.

Simultaneamente, 66,9% apresentam “sintomatologia depressiva”: 47,6% leve a moderada e 19,3% grave a severa.

Estas taxas, normalmente de 30 e 20%, respetivamente, estão “claramente acima do expectável”, destaca a psicoterapeuta, acrescentando ainda que “30,5% dos participantes apresentam reações de sintomatologia clínica de stress pós-traumático”.

Estes são os primeiros “resultados preliminares” – recolhidos ‘online’, entre janeiro e outubro de 2021, com um total de 127 participantes – do estudo “O processo de luto e a pandemia por covid-19: estudo transnacional sobre o seu impacto ao nível do bem-estar”.

O estudo, em curso há um ano, destina-se a avaliar tanto o impacto do luto causado diretamente pela covid-19, como também o das alterações impostas aos rituais da morte.

O estudo envolve “todas as pessoas que perderam alguém nos últimos dois anos”, distinguindo “os enlutados por covid”, embora sobre estes ainda não seja possível fornecer dados concretos.

Daniela Nogueira – que coordena o estudo, em parceria com o Serviço de Psicologia do Centro Hospitalar Universitário de São João, que envolve investigadores de Espanha e Itália – recorda que o impacto desta pandemia “não é só a morte em si, é todo o processo que esteve antes”, nomeadamente a impossibilidade da despedida. “As pessoas entravam no hospital, sem visitas nem acompanhamento e muitas morreram”, lembra a psicoterapeuta, que tem focado a sua atividade clínica na área das perdas e dos processos de luto.

“Houve pessoas que optaram por não chamar o INEM [Instituto Nacional de Emergência Médica], porque tinham medo precisamente que as pessoas morressem no hospital e morressem sozinhas”, recorda, realçando que essas escolhas geraram “sentimentos de culpa” sobre “se a decisão podia ter tido desfecho diferente e se a pessoa se poderia ter salvo”.

Houve também uma sobreexposição à morte. “Foi muito complicado começarmos a ouvir todos os dias o número de mortos”, exemplifica.

Analisando “o impacto na possibilidade de as pessoas poderem realizar o seu luto de forma normativa”, o estudo pretende averiguar se essas alterações vão ter como efeito um aumento na prevalência de luto prolongado.

“Antes estimava-se que apenas 10% da população poderia ter luto prolongado” e precisar, por isso, de apoio psicoterapêutico e/ou farmacológico. Porém, a percentagem já apurada no estudo ronda os “23,8%”, o que representa “um aumento significativo”, constata Daniela Nogueira.

O aumento da sintomatologia ansiosa e depressiva explica-se por “vários fatores”, desde logo pelo “desconhecido, ser uma coisa nova” e pelo “desconcerto que causa esta imprevisibilidade (quando é que isto vai acabar?)”, aponta.

Neste contexto, as pessoas ficaram “perdidas e solitárias” e houve um “aumento pela procura de profissionais da área da saúde mental”, regista Daniela Nogueira.

“Estamos a triplicar a percentagem de pessoas que nos procuram”, situa. “Quem estava mais ou menos mal ficou muito mal, quem estava mais ou menos bem ficou mal”, observa.

O estudo evoluiu, entretanto, para o projeto AURORA@COVID19-EU, cuja proposta de “articular uma resposta” ao luto e sofrimento provocados pela pandemia ficou em primeiro lugar do concurso para receber financiamento do Erasmus+.

O objetivo, inspirado na experiência da Dinamarca, é criar um modelo de saúde pública nos países do Sul da Europa que não estão, acredita a equipa, tão preparados para lidar com os desafios que a morte coloca à sociedade.

Esse modelo, que pretendem fazer chegar a todas as pessoas enlutadas, passa pela formação profissional, até 2024, de cada nível de intervenção associado ao luto: agentes da comunidade, agentes indiretos (médicos de família e profissionais de saúde não mental) e agentes de saúde especializados.