Nas últimas semanas, com o aumento de casos e óbitos e uma intensificação da pressão sobre o Serviço Nacional de Saúde (SNS), a comunicação sobre a covid-19 ficou debaixo de fogo, entre acusações de desorientação, restrições e exceções, recriminações ou simples ineficácia. Ato contínuo, o primeiro-ministro, António Costa, assumiu na quinta-feira a responsabilidade: “A culpa é toda minha. O mensageiro transmitiu mal a mensagem”.
O reconhecimento de falhas pelo líder do governo pode marcar o início de uma nova ‘terapêutica’ ao nível da comunicação sobre a covid-19 e simboliza também a perceção de alguns erros que foram cometidos, em especial no último mês. De acordo com especialistas de comunicação ouvidos pela Lusa, a expectativa passa pela concretização de uma ideia fundamental: voltar a envolver os portugueses no cumprimento das medidas de prevenção.
“Ao ter feito um ‘mea culpa’, o primeiro-ministro abriu uma janela de oportunidade e de entendimento, porque as pessoas lidam mais facilmente com a verdade do que com a falta de confiança”, afirmou à Lusa Margarida Pinto da Fonseca, gestora da consultora de comunicação S Consulting, especializada na área da saúde, para quem é necessário “procurar a coesão através do diálogo”.
A última mensagem de António Costa foi também importante para atenuar a ideia de “comunicação negativa” que, segundo Rui Gaspar, professor na Universidade Católica e psicólogo com especialidade em comunicação de crise, estava a criar-se com uma “culpabilização das pessoas”, que as “leva a não aderir às recomendações” das autoridades.
“As pessoas têm todo o direito a sentir-se cansadas, e devemos reconhecer o cansaço e o direito ao cansaço. Mais do que culpabilizar as pessoas pelo relaxamento, importa ouvir as pessoas sobre as barreiras que enfrentam no seu dia a dia para implementar os comportamentos que são pedidos”, explicou, acrescentando: “Quando envolvemos as pessoas na própria comunicação, a garantia de sucesso e a adesão serão maiores”.
Uma visão partilhada por Andreia Garcia, diretora da consultora de comunicação em saúde Miligrama, ao vincar que a “comunicação obriga a que os destinatários se envolvam no ato comunicativo” e que atualmente existe uma “confusão” entre informação e comunicação.
“Em contextos de emergência pública, como o que se vive, não se pode esperar que modelos de comunicação lineares, assentes apenas e unicamente na transmissão de informação, possam promover a mudança de comportamentos. O problema não reside na ausência de informação, mas na incapacidade de envolver e ouvir a população”, sintetiza a consultora e docente na Escola Superior de Comunicação Social.
Entre as principais críticas ao modelo de comunicação adotado está a junção da vertente técnica, pela DGS — habitualmente com Graça Freitas -, e a política, através do governo, nomeadamente pela ministra Saúde, Marta Temido. Uma situação que “não é desejável”, no entender de Rui Gaspar, que defendeu que “a comunicação técnica e a comunicação política devem ser separadas” pelo risco da “perceção de que não são duas entidades” a comunicar.
“Quando a vertente técnica não é distinguível da vertente política, isso será sempre um problema”, notou o académico, que tem igualmente prestado consultoria à DGS ao longo da pandemia, reiterando que a “comunicação deve ser feita por técnicos”, mas que isso “não é só comunicar informação epidemiológica e números, é também ter um lado empático e mostrar às pessoas que o que estão a fazer estão a fazê-lo bem”.
“Mais do que enumerar estatísticas é necessário identificar os públicos prioritários, as mensagens mais adequadas a esses públicos e os canais que são importantes para alcançar os objetivos propostos”, reforçou Andreia Garcia, que sustentou ainda que esses canais “podem não ser as conferências de imprensa” que passaram de diárias a trissemanais.
E se os números dizem muito sobre a propagação da covid-19 em Portugal, ao fim de oito meses de pandemia, podem também enunciar um outro risco menos quantificável, mas igualmente perigoso: a dessensibilização e o alheamento das pessoas face às estatísticas.
“Há muitos meses que isso já está a acontecer, há um efeito de ‘numbness’ [entorpecimento]. E quando começamos a comunicar muito em números deixamos de vê-los como pessoas. 30, 40 ou 50 mortos deixam de ser pessoas com famílias, que tinham as suas vidas e foram afetadas por esta situação”, referiu Rui Gaspar, que apontou como alternativa a referência a “exemplos concretos” e a atribuição de um “significado emocional” aos números.
Para Margarida Pinto da Fonseca, outro fator que comprometeu a eficácia da comunicação foi a mudança do contexto político. Se na primeira vaga foi enfatizado o clima de consenso em torno das medidas adotadas, a segunda vaga ocorreu com fraturas claras entre os diversos agentes políticos e sociais, com consequências para a recetividade da mensagem.
“A união que caracterizava a atitude das várias autoridades acabou, e os setores estão cada vez mais afastados a lutar cada um por si e pelos seus interesses”, frisou, sublinhando: “Era importante haver uma espécie de consenso entre as várias partes, inclusivamente uma consulta com os media, para se perceber como é que em conjunto vamos continuar a disseminar uma mensagem que se está a tornar oca”.
Os especialistas ouvidos pela Lusa apontam também a urgência de adequar a mensagem aos diferentes públicos, traçando uma diferença para o que se verificou na primeira vaga, em que o desconhecimento e a perceção de risco eram globais; agora, já se sabe mais sobre o novo coronavírus e diferentes grupos da população olham para o SARS-CoV-2 de forma distinta.
“A comunicação não pode ser um ato generalizado que funciona em todos os contextos, para todos os públicos, em simultâneo”, declarou Andreia Garcia, secundada por Margarida Pinto da Fonseca: “A complexidade do vírus e a forma irregular como se comporta acarretam uma especial necessidade de segmentar as mensagens”.
Defensor de uma comunicação mais “proativa” e voltada para cenários futuros, Rui Gaspar considerou ainda que “a comunicação social não deve ser neste momento o principal mediador, mas sim as estruturas locais”, com “microinfluenciadores” e um plano estratégico de comunicação a um nível mais regional ou mesmo para os concelhos de maior risco.
Outro caminho para chegar às pessoas pode estar nos cuidados de saúde primários, uma vez que, para Andreia Garcia, é no médico de família que está “a principal fonte de informação para um doente”, principalmente nos grupos de risco. Nesse sentido, apelou à “integração de profissionais de comunicação nos órgãos de decisão” dos agrupamentos de centros de saúde.
“Têm de ser encontrados canais e parcerias estratégicas, até a nível tecnológico, para chegar a públicos diferentes. É importante perceber onde as pessoas vão agora buscar a informação e em quem é que confiam. Este é um passo fundamental, mas envolve a humildade de quem está a trabalhar a mensagem”, sentenciou Margarida Pinto da Fonseca.
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