Daniel Cotrim é psicólogo e trabalha com a Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV) há quase duas décadas. Tem uma vasta experiência de trabalho junto de vítimas de crimes, em especial mulheres e crianças vítimas de violência doméstica, estando responsável pela supervisão técnica da rede nacional de casas-abrigo, que acolhem mulheres e crianças forçadas a sair das suas casas para escapar a um contexto de violência.

A primeira vez que nos sentámos com Daniel para conversar, em novembro em 2019, foi no âmbito de uma ação de sensibilização que marcava um momento trágico: assinalava-se o facto de mais de 30 pessoas terem perdido a vida vítimas de crimes de violência doméstica — mulheres, homens e crianças. À margem do tema, ainda que com minutos contados, falámos sobre a nova forma como as pessoas se relacionam nos dias que correm, sobre aquilo que um jovem considera ser ou não ser violência num contexto de namoro. Ficámos aquém e por isso mesmo desafiámo-lo a voltar ao tema, a refletir sobre como se ama (e se exerce violência) na era das redes sociais.

Porquê falar sobre relacionamentos — e a violência tantas vezes associada — como um dos temas fraturantes para os próximos dez anos? Porque continuamos a ter manchetes de mulheres e homens mortos por aqueles que um dia fizeram juras de amor eterno, porque os ecrãs transformaram a forma como nos relacionamos todos os dias, porque, como escreveu o poeta inglês John Donne, nenhum homem é uma ilha.

Os dados mais recentes da Polícia Judiciária, divulgados pelo Governo, revelam que até ao dia 22 de novembro de 2019 foram mortas 33 pessoas em contexto de violência doméstica, nomeadamente 25 mulheres, uma criança e sete homens. Já dados divulgados pelo Observatório de Mulheres Assassinadas (OMA) da União de Mulheres Alternativa e Resposta (UMAR) referem, que entre 01 de janeiro e 12 de novembro de 2018, foram mortas 28 mulheres, mais oito do que no ano anterior. Segundo a UMAR, mais de 500 mulheres foram assassinadas nos últimos 15 anos em contexto de relações de intimidade em Portugal.

Os números mascaram a violência destes crimes. O mais recente — que acresce aos acima citados — é já de 2020, uma mulher morta pelo ex-marido em frente ao filho com pelo menos duas facadas. Quando o jovem de 20 anos tentou impedir o agressor ficou também ferido na zona da cabeça. O homem de 43 anos aguarda julgamento em prisão preventiva.

"Vivemos numa sociedade menos ativa, menos preocupada com aquilo que se passa mesmo ao lado. É mais fácil preocuparmo-nos com o que acontece muito longe do que com alguém que está perto, que vive por cima ou por baixo de nós, que é da nossa família e que está a ser vítima de uma situação de crime", lamenta Daniel Cotrim. Não tendo o condão de adivinhar se a violência doméstica vai aumentar ou diminuir, coloca a sua fé "no poder da informação. Acredito que o número de pessoas que vai denunciar situações de violência dentro das suas famílias vai aumentar, precisamente pelo poder da informação".


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Quando tentamos projetar os próximos dez anos é impossível deixar os relacionamentos fora desta equação — e sobretudo como é que isso se pode traduzir em novas formas de violência, o que é, na verdade, o espaço onde a APAV atua para ajudar as pessoas. Começo por lhe perguntar: os relacionamentos estão a mudar ou está só a mudar a forma como nos relacionamos?

Eu acho que é um bocadinho as duas coisas. Se fizermos o paralelo com estes últimos 20 anos, as relações entre as pessoas mudaram, e ainda bem que mudaram, porque quer dizer que de alguma forma as pessoas evoluem, os grupos sociais e as sociedades vão mudando. Há 20 anos, e especialmente na área em que trabalhamos, da violência, os grupos em que pensávamos eram as famílias nucleares, pessoas mais velhas, mulheres com mais de 50 ou 60 anos que queriam sair de situações de violência, situações abusivas, numa altura em que pela primeira vez se fala em crime público em Portugal para a violência doméstica, sendo que foi preciso intervir ali quase numa forma de SOS para salvar a vida destas mulheres todas. Estamos a falar de um tempo em que os novos tipos de família, os novos tipos de relacionamentos que temos hoje que não existiam — ou melhor, eles existiam, eram do conhecimento dos profissionais, mas eram um tabu para o próprio sistema e portanto não era para ser falados e tocados. Estamos a falar dos homossexuais e de outros contextos relacionais.

20/30. 20 perguntas daqui até 2030

O que estamos dispostos a fazer por um futuro sustentável? Vamos ter serviço nacional de saúde daqui a dez anos? A tecnologia faz mal à nossa cabeça? Quando o tema é imigração, quem dita as regras? Vai Portugal perder o barco no 5G?

Este e só o início de uma série de perguntas que o SAPO24 decidiu colocar em cima da mesa para os próximos dez anos. 2020 convida-nos a pensar a década — como é que o mundo vai mudar e como é que nós mudamos com ele — e foi esse o desafio que colocámos a vários convidados nas conversas que serão publicadas em 24.sapo.pt

20/30. 20 perguntas daqui até 2030 é o nome da série em vídeo, texto e fotografia que vai abordar temas como o ambiente, as migrações, a inteligência artificial, o futuro da ciência, relacionamentos e violência, o mar, o 5G, o humor, o futebol, a televisão, o consumo, o Interior, a saúde mental, o Espaço, o Brexit, a educação (para a inovação), as startups o envelhecimento, as redes sociais ou as cidades de amanhã.

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E você, se tivesse de lançar um tema para o debate, qual seria? Envie a pergunta para a década para 24@sapo.pt.

20/30 é um projeto com assinatura MadreMedia no SAPO24, que poderá também acompanhar em 24.sapo.pt, no portal SAPO (sapo.pt) e respectivas redes sociais. Siga-nos no FacebookTwitter e Instagram.

Depois, nos outros 10 anos seguintes passámos por um período de crise muito grande — e as crises económicas trazem também crises sociais, e as crises sociais atacam os relacionamentos entre as pessoas. Falamos de um período em que os homens e as mulheres foram afetadas pelo desemprego e vimos novamente as pessoas mais velhas, os idosos, os avôs e avós, que tinham sido colocados em lares, que tinham querido ir para lares para se poderem também autonomizar, a retornarem para a casa dos filhos para terem um papel de cuidadores e para ajudarem no pagamento das contas, das dívidas. Este é um período em que sai da caixa um outro tema grave, que é o da violência sobre as pessoas mais velhas, especialmente a partir de 2015/16, o que passa a ser alvo de campanhas [de sensibilização].

"Acredito muito que o número de pessoas que vai denunciar situações de violência dentro das suas famílias vai aumentar, precisamente pelo poder da informação"

E agora, o que mudou?

Estamos agora a entrar numa nova década, hoje já falamos com toda a abertura de novas famílias, de novas formas de relacionamento, isto tudo é ótimo, mas como é óbvio vai trazer outros problemas do ponto de vista da violência, porque os pressupostos não serão os mesmos no que concerne a organização das famílias. Temos de olhar para cada conjunto de pessoas de uma forma muito particular, porque elas têm problemas, têm leituras do contexto e da realidade que são diferentes entre si. Portanto, aquilo que aprendemos nos últimos vinte ou dez anos, sobre como lidar com as pessoas no geral, vamos ter de reaprender. Agora se me perguntar assim: se eu acho que a violência vai aumentar ou diminuir? Não temos o condão para adivinhar. Eu gostaria de acreditar que vai diminuir, mas agora acredito muito no poder da informação e acredito muito que o número de pessoas que vai denunciar situações de violência dentro das suas famílias vai aumentar, precisamente pelo poder da informação. As pessoas estão mais informadas e temos visto isso nos últimos anos: no número de pessoas que denunciam, na idade das pessoas que denunciam, que são cada vez mais jovens, [no facto de existirem] relações abusivas mais curtas. Mas, por outro lado, também temos de pensar na sociedade que temos. Acho que vivemos numa sociedade menos ativa, menos preocupada com aquilo que se passa ao lado. Às vezes é mais fácil preocuparmo-nos com alguma coisa que acontece muito longe do que nos preocuparmo-nos com alguém que está perto, que vive por cima ou por baixo de nós, ou é da nossa família e que está a ser vítima de uma situação de crime — desde crianças que estão a ser vítimas de violência, de abuso sexual, ou adultos ou das pessoas com deficiência, que são vítimas invisíveis. Nós sabemos que elas existem, mas elas são completamente invisibilizadas, não têm voz, não têm rosto, quando aparecem são muito poucas.

"Se há vinte ou trinta anos aquilo que as pessoas trocavam entre si, do ponto de vista físico, ficava ali, as carícias, os beijos, hoje em dia com a tecnologia não precisamos de estar juntos para termos contactos íntimos"

Considera que estamos a relacionar-nos de forma diferente por causa das redes sociais? Que mudanças é que elas trazem, ou que mudanças ou desafios é que conseguimos projetar? 

As redes sociais, na minha opinião, são a melhor invenção dos últimos anos. Porquê? Há vinte ou trinta anos o máximo das nossas relações sociais era até à rua de trás ou então quando as pessoas tinham a possibilidade de mudar de cidade ou de vila, porque mudavam de liceu, de escola, de casa, de emprego e iam conhecer pessoa novas, portanto, estamos sempre a falar do domínio do físico. As redes sociais permitem-nos hoje conhecer pessoas e contactar com pessoas que estão muito longe, que estão nos nossos antípodas, que têm culturas e formas de pensar completamente diferentes das nossas. Isto é bom desde que saibamos usá-las e saibamos claramente o que queremos das redes sociais. Agora, as redes socais têm o seu lado perverso, trágico, que todos conhecemos. É mais fácil controlar pessoas através das redes sociais, porque as coisas estão muito mais expostas. É mais fácil o namorado ou a namorada perguntar porque é que aquela pessoa é amiga daquela pessoa, porque é que fez um like [numa publicação] ou porque é que fez um post para alguém, [é mais fácil] impedir que A ou B seja "amigo" daquela pessoa. Tem outro lado ainda mais perigoso, mais tenebroso, que se manifesta no final das relações: se há vinte ou trinta anos aquilo que as pessoas trocavam entre si, do ponto de vista físico, ficava ali, as carícias, os beijos, o contacto sexual era uma coisa presente e era preciso estarem os dois, hoje em dia com a tecnologia não precisamos de estar juntos para termos contactos íntimos. Então as pessoas com a confiança que sempre têm e que sempre terão no âmbito de uma relação afetiva, trocam imagens dos seus órgãos sexuais, trocam imagens de si despidas, e muitas vezes, aquilo que vemos é que pouco depois da relação terminar estas imagens são disseminadas por aquele ou aquela que não ficou contente com o fim da mesma. Isto é desestruturante, enlouquecedor para a outra pessoa.

créditos: Rodrigo Mendes | MadreMedia

Estas novas plataformas impõem novos códigos de relacionamento que até então não existiam.

Não existiam de todo, claramente. A ideia do consentimento nasce muito da nossa utilização das redes sociais. Vou dar-lhe um exemplo muito inofensivo e ingénuo relativamente a isto: às vezes há pessoas que colocam um post, uma imagem, e há quem pergunte “Posso levar? Posso roubar?”, isto é a ideia do consentimento. Esta ideia de consentimento também passa pelas novas relações afetivas através das novas plataformas tecnológicas – “Eu vou mostrar-te [uma parte íntima do corpo], mas garantes-me que não mostras a mais ninguém? Garantes-me que ficas só com isto?” Mas aqui entramos sempre numa coisa que é tão antiga como as relações afetivas, que é a confiança na outra pessoa, independentemente de ser através de uma plataforma tecnológica ou no face a face. Eu confio porque eu amo, ora se eu amo e tenho a certeza que a outra pessoa me ama, então nunca me vai fazer isso, eu não corro esse risco. O problema é quando elas não acontecem e aquilo que vou ouvindo de pessoas mais novas, rapazes e raparigas de 13/14/15/16 anos é que estão muito mais alerta do que estariam as pessoas há cinco ou dez anos para estas questões. Já não se mostram tão facilmente ou nem tiram fotografias assim tão facilmente, já criaram um conjunto de regras desde o “Ok, eu mostro, mas não mostro a cara” ou “Ok, eu mando, mas não mando nada que seja possível identificar-me”, ou o “eu ligo a câmara e tu ligas a tua, mas não mostramos a cara um ao outro”. Tudo isto altera a relação entre as pessoas. [As redes sociais e as novas plataformas] têm este lado bom, estamos muito mais perto, podemos estar juntos muito mais tempo nas relações, mas também criam muito mais medo.

"Não há erro nenhum, não é mau, as pessoas apaixonarem-se nas redes sociais. O que é mau é aquilo que os outros podem fazer aos conteúdos que nós lá partilhamos"

É diferente explicar o que é um abuso numa rede social ou um abuso num relacionamento físico, presencial?

É claramente um desafio a vários níveis, porque explicar o que é um abuso físico ou um abuso numa plataforma digital ou rede social até é relativamente fácil teoricamente falando, o problema é se as pessoas o vão perceber. Temos de tentar explicar isto às pessoas de acordo com as suas faixas etárias. Há um estudo que saiu há relativamente pouco tempo e que dizia que para a grande maioria dos jovens o enviar fotografias ou imagens através de redes sociais, ou a partilha destas imagens, não é considerado violência sexual. Então nós temos de desmontar este mito do que é que é violência sexual. O mesmo estudo dizia que pedir a alguém para mandar fotografias nu e depois pedir à mesma pessoa se podemos repostar aquelas imagens... Estamos a falar aqui sobretudo de outro tipo de redes, não propriamente do Instagram ou do Facebook, que não permitem, têm algumas regras quanto a isto, mas vamos dar o exemplo claro do WhatsApp, que é uma rede fechada e onde a troca deste tipo de material é muito mais fácil, passa muito mais pelas malhas do controlo social e até do controlo policial, porque aquilo de repente pode chegar a milhares e milhares de pessoas e pode ir sendo apagado e transferido para outros meios. Portanto, temos de começar por trabalhar esta questão com as pessoas mais jovens e também com as pessoas mais velhas, porque as pessoas mais velhas julgam que 1) sabem tudo, faz parte; 2) que não lhes vai acontecer, porque isto só acontece aos mais novos. Eu digo-lhe, da experiência que nós temos [na APAV], há mais denúncias de pessoas mais velhas, entre os 30 e 40 anos, de mulheres e homens a quem isto aconteceu, que se envolveram afetivamente com alguém numa rede social e que fizeram trocas de imagens, até não se apercebendo de que podiam estar a ser gravadas durante aquelas atividades, e que depois de repente aquilo aparece noutros locais, em sites inclusivamente pornográficos.

Como é que se lida com isso quando corre mal?

Estamos a falar de uma coisa que é relativamente recente, do ponto de vista da própria lei. As pessoas podem apresentar queixa, mas temos de pensar no tempo: a internet é aquele mundo enorme, um espaço onde uma coisa cai e quando lá está ficou para sempre. Pode não nos afetar mais durante um ano, mas daqui a quatro anos volta, e se não nos afetar diretamente, pode afetar alguém que nós conhecemos ou que nos conhece. Portanto, isto é um desafio que temos. Se perguntar como é que se resolve... não sei, mas eu acho que passa pela informação e pela educação. Quanto mais cedo trabalharmos com jovens – e quando digo mais cedo não é aos 12 anos, porque aos 12 anos a maioria dos miúdos e miúdas já tem telemóvel, tem que ser se calhar aos 5 ou 6 anos, que é o primeiro contacto com as redes sociais, é o primeiro contacto com os tablets, com os smartphones, com aquele mundo, e a partir daqui explicarmos às pessoas que não têm de ter medo, que pode usar-se [as redes sociais e as novas plataformas] de forma segura, e que não há erro nenhum, não é mau, as pessoas apaixonarem-se nas redes sociais. O que é mau é aquilo que os outros podem fazer aos conteúdos que nós lá partilhamos. Reflexão para a próxima década: vai mudar com certeza o conceito da palavra “confiança”, vamos ter de pensar o que é que é confiar numa relação afetiva quando é mediada por plataformas digitais.