O Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e nas Dependências (SICAD), do Ministério da Saúde, divulgou nas últimas semanas estudos e sinopses sobre algumas dependências a nível nacional, concretamente no que diz respeito ao uso da Internet e ao Jogo a Dinheiro. No primeiro caso, dizem os mesmos, a utilização da internet “é predominante na faixa etária entre os 15 e os 24 anos (83,8%), o mesmo acontecendo quanto à sua dependência, maioritariamente no género masculino”, ao passo que no jogo a dinheiro “é maior entre os 35 e os 44 anos, tanto na população geral como na população jogadora”. Contudo, cerca de 5% dos jovens com 13 anos já possuem este último hábito, aumentando para quase 21% aos 18 anos.
No que diz respeito à utilização da Internet, em si, o estudo dá alguns exemplos, como o facto de crianças entre os 9 e ao 10 anos passarem perto de duas horas por dia na mesma; 2,5 entre os 11 e 12; 3,6 para as crianças de 13 e 14 anos; antes da idade adulta, os 18, os jovens entre os 15 e os 17 passam quatro horas na Internet.
Na sua maioria, confessaram os inquiridos, mais de 40% utiliza a Internet para consultar o Instagram durante a semana, ao passo que durante o fim de semana o Youtube, 40,7%, ultrapassa a rede social Instagram. São, de facto, as redes sociais que prendem as pessoas à Internet, registando-se uma subida na ordem dos 15% desde 2015 a 2021 (últimos dados recolhidos), de 35% para números na ordem dos 50%.
"Há uma fatia muita grande de jovens que passa um número de horas elevado na Internet, até porque esta utilização é para a escola, nos intervalos, trabalhos de grupo, não é só de entretenimento. Tudo isto faz com o que o número de horas aumente"Ludmila Carapinha
Dados reveladores da influência da Internet nos mais jovens. Ao SAPO24, Ludmila Carapinha, psicóloga e investigadora do SICAD, começa por confessar que estamos perante uma nova realidade. Contudo, apela a um equilíbrio.
“O que estamos a verificar, pelos nossos estudos, contextualizados com pesquisas internacionais, é que de facto cada vez mais o nosso mundo é físico e virtual. O nosso quotidiano é uma interposição de mundos cada vez mais orgânica. Tem aspetos muito benéficos, mas outros limitadores. É importante estarmos atentos a isso. A comunicação online, mensagens, por aí, não tem a mesma qualidade que uma comunicação feita presencialmente. É muito importante haver um equilíbrio”, disse Ludmila Carapinha, salientando depois a importância do contexto familiar.
“Há uma fatia muita grande de jovens que passa um número de horas elevado na Internet, até porque esta utilização é para a escola, nos intervalos, trabalhos de grupo, não é só de entretenimento. Tudo isto faz com o que o número de horas aumente. Contudo, de facto, a família é o contexto primordial do desenvolvimento da criança, o tempo em família é relevante”, assinalou.
Tempo a mais ou mesmo um vício? Outro especialista, neste caso o psicólogo Ricardo Guimarães, apresenta um cenário ainda mais preocupante. “Atendendo a esses números, é evidente que temos de estar muito preocupados. A adição à Internet, e a outras coisas da Internet, como vídeos, videojogos, apostas, etc, apresentam características semelhantes a outras, como ao tabaco, álcool e uso de várias substâncias”, começou por assinalar, referindo depois que a moderação na utilização da Internet até pode ser benéfica.
“Quando utilizados de forma moderada e com conteúdos adequados à idade, os mesmos podem ser vistos como um comportamento saudável. Os benefícios podem ser grandes, com ganhos cognitivos e sociais”, salientou.
Quando o dinheiro é envolvido
A moderação é assim de salutar, mas os dados do SICAD apontam, para já, noutro sentido, para o excesso, como é o caso das crianças e jovens que já jogam a dinheiro. Este, aliás, foi o ponto que Catarina Guerreiro, responsável pelo estudo, apontou ao SAPO24.
“Destaco a repetição dos jogos, vícios, Internet ou redes sociais. No próximo ano, vamos analisar a população geral, vamos ver essa evolução, estamos expectantes do que vai sair dali, se vai corresponder a esta evolução que temos vindo a ter nos últimos anos”, disse.
Neste momento, de acordo com o relatório divulgado na semana passada, há então 5% dos jovens com 13 anos a jogarem a dinheiro, aumentando para quase 21% aos 18 anos. O facto de terem acesso bem cedo ao universo informático será uma das razões para este precoce método de uso da Internet.
“Há 10 anos os smartphones não tinham tantas aplicações. Hoje em dia as crianças utilizam a Internet até bem mais cedo, pois os pais disponibilizam-nos facilmente para entreter as crianças. Seja para crianças ou adultos, o facto de se poder levar para todo o lado facilita o acesso à internet, nas suas várias modalidades de utilização”, disse Ludmila Carapinha, fazendo depois um pedido a quem também pode 'travar' este fenómeno.
“Existem mecanismos das próprias plataformas para que os mais jovens não acedam aos jogos a dinheiro. Contudo, há muitas formas de serem ultrapassados, hoje em dia. É necessário que se desenvolvam mecanismos para dificultar esse mesmo acesso, nomeadamente em termos do tipo de informação que solicitam aos utilizadores”, assinalou a psicóloga e investigadora do SICAD.
“Quando utilizados de forma moderada e com conteúdos adequados à idade, os mesmos podem ser vistos como um comportamento saudável. Os benefícios podem ser grandes, com ganhos cognitivos e sociais”Ricardo Guimarães
A sua colega, Catarina Guerreiro, confirmou também ao SAPO24 que no próximo ano irá ser feito um novo estudo, nomeadamente sobre os mais jovens. “Vamos estar atentas às novas realidades, e este estudo dos 13 anos vai ser repetido, vamos estar atentas a essa evolução, analisar as horas diárias que são passadas na Internet. Pode passar-se horas online, mas em outras tarefas”, apontou.
Outro vício surge, o da mentira
Internet, jogos e a...mentira. Sim, ela também está 'presente' no estudo, completamente interligada com este fenómeno das apostas a dinheiro.
“Constata-se que, entre os alunos que jogaram a dinheiro nos 12 meses anteriores à inquirição, 1 em cada 5 declarou já ter sentido necessidade de apostar quantias cada vez maiores, e que 1 em cada 10 teve já que mentir a pessoas que lhes são importantes acerca da quantia gasta em jogo. 24% dos jogadores recentes assinalaram uma das duas situações e 6% assinalaram ambas”, lê-se.
Dados que não surpreendem os especialistas. “Claro que não. A mentira surge pelo receio das consequências. E este pode ser outro tipo de vício, podem cair no vício de mentir repetidamente ao descobrir que as suas mentiras matam a curiosidade dos pais. Ninguém tem dúvidas que todos os jovens que não têm permissão para jogos a dinheiro metem aos pais. As famílias têm de fazer melhor o seu trabalho de casa, neste sentido. Não há inocentes, nestes casos”, salientou Ricardo Guimarães.
Diz também o relatório também que “a prevalência de jogo a dinheiro praticamente não varia em função do rendimento escolar nem do nível de apoio/suporte emocional por parte de familiares e amigos” e que é “ainda possível constatar que quanto maior é a perceção do controlo parental e da facilidade de acesso ao dinheiro dos pais mais elevada é a prevalência de jogo a dinheiro”. Este último ponto é o que mais críticas suscita ao psicólogo que falou com o Sapo24.
“Mais preocupante é quando os pais, inicialmente, não sabem das apostas, mas, dando um exemplo, quando o filho menor lhe diz que ganhou X nas apostas, depois não atuam. Parecem até orgulhosos. Nem a mentira provoca reações aos pais. É muito grave o acesso fácil que os jovens menores têm ao dinheiro”, concluiu.
"Vamos estar atentas às novas realidades, e este estudo dos 13 anos vai ser repetido, vamos estar atentas a essa evolução, analisar as horas diárias que são passadas na Internet"Catarina Guerreiro
Ricardo Guimarães não se cansa de apontar falhas às famílias dos jovens, algo que o relatório do SICAD também revela.
“O acesso ao dinheiro, nomeadamente através de empréstimos ou recompensas monetárias dadas pelos pais, revela-se um fator especialmente decisivo no que se refere ao jogo a dinheiro e à sua dimensão problemática. Fica também demonstrada a importância de um controlo parental mais efetivo e de um maior suporte emocional por parte de familiares e amigos como fatores protetores de problemas relacionados com o jogo a dinheiro”, lê-se.
A completar e a afinar pelo mesmo diapasão, Ludmila Carapinha. “Não podemos colocar toda a responsabilidade na Internet, pelo facto de não passarem tempo em família. É preciso que a família tenha tempo para estar com eles, vivemos cada vez mais a trabalhar e é preciso termos em consideração do tempo de qualidade em família. Mas o tempo em família não pode também ele ser passado agarrado ao telemóvel ou a outro aparelho eletrónico. Como já disse, deve haver um maior equilíbrio entre o tempo a jogar, as pesquisas, a interação e o tempo passado em família”, disse.
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