Introdução
Perigos em toda a parte
Quando andava na faculdade, odiava as minhas aulas de psicologia. Tanto quanto recordo agora, foram dadas por uma sucessão de professores sofisticados e polidos, todos de aspecto semelhante, mais parecidos com esbeltas estrelas de rock do que com universitários pesadões. Eram todos altos e magros, com cortes de cabelo que não obedeciam a padrões académicos. Vestiam preto integral ou, no limite, camisas estampadas, e calçavam sapatos um tudo‐nada demasiado pontiagudos. (Admito que a inveja possa estar a toldar um pouco as minhas próprias percepções. Para ser sincero, julgo ter acabado de descrever o actor Russell Brand.) Os estudantes de ambos os sexos derretiam‐se com os professores — não tanto por causa do seu aspecto rebelde, mas por parecerem saber tanto sobre como pensamos. Não há nada mais atraente para jovens adultos confusos do que alguém que realmente os compreende.
Mas, para mim, isso era problemático. Detestava os truques cognitivos que provavam que quase todos incorremos nos mesmos erros quando pensamos. Os professores punham‐nos perante questionários ou experiências talhados para suscitarem uma resposta particular e, assim, demonstrarem o quão típicos eram os nossos cérebros. Naquela idade, inseguro mas arrogante, eu queria ser especial e imprevisível — apesar de as minhas respostas não se distinguirem das demais.
Tome‐se este exemplo, de um professor da Universidade de Maryland:
Tem a oportunidade de acrescentar mais uns créditos à sua nota final. Escolha entre adicionar dois ou seis pontos à classificação do seu último teste. Mas há um pequeno senão: se mais de 10% da turma escolher os seis pontos, ninguém ganha pontos extra, nem mesmo aqueles que se contentaram em acrescentar dois.
Eis uma situação muito concreta e didáctica, uma lição acerca da «tragédia dos comuns» — quando indivíduos tentam extrair o máximo benefício de um recurso particular, retirando dele mais do que o seu quinhão ou mais do que aquilo que é sustentável, inutilizando‐o para todos, incluindo os próprios. Como é evidente, a turma comportou‐se de forma típica e falhou. Cerca de 20% decidiram adicionar seis pontos, pelo que ninguém ganhou nada. Na verdade, ao longo dos oito anos em que o professor realizou a sua experiência moderadamente cruel, apenas uma turma, num semestre, conseguiu obter os créditos suplementares.
Dada a minha alergia latente a truques psicológicos, não deixa de ser irónico que grande parte da minha vida profissional tenha sido dedicada a levar a cabo testes deste tipo. Trabalhei 20 anos na empresa de estudos de opinião Ipsos MORI*, concebendo e dissecando investigações realizadas em todo o mundo, com o intuito de ajudar a compreender o que pensam e fazem as pessoas, e porquê. Actualmente, sou professor (mas não sou esbelto) no King’s College London, onde continuo a debruçar‐me sobre as mesmas questões: as ilusões das pessoas e o que significam em termos de políticas públicas. Nestas funções, realizei centenas de estudos sobre as percepções erróneas do público — que intitulámos os «Perigos da Percepção» —, investigando num grande número de países um conjunto de tópicos sociais e políticos, do comportamento sexual às finanças pessoais. Dispomos agora de mais de cem mil entrevistas acerca de alguns desses tópicos, realizadas em 40 países, que nos permitem confrontar as nossas percepções com a realidade. Trata‐se de uma fonte de informação ímpar e fascinante sobre como vemos o mundo e o porquê de estarmos tantas vezes errados acerca dele: os estudos precedentes debruçaram‐se sobre um problema ou faceta da vida, e poucos abrangeram mais do que uma mão‐cheia de países. Pode aceder à totalidade de estudos do Ipsos em www.perils.ipsos.com.
Em todos os estudos e em cada um dos países, as pessoas erram muito a propósito de quase todos os assuntos abordados, incluindo níveis de imigração, percentagens de grávidas adolescentes, taxas de criminalidade e obesidade, tendências da pobreza global e quantos de nós estamos no Facebook. Mas a pergunta crucial é «Porquê?»
Comecemos por uma pergunta que pouco tem que ver com o tipo de realidades sociais e políticas que abordaremos adiante, mas que ajuda a perceber por que pode existir este fosso entre as percepções e a realidade: «Será a Grande Muralha da China visível a partir do espaço?» O que pensa o leitor? Se fizer parte da população geral, a probabilidade de ter respondido afirmativamente é de cerca de 50%, pois os estudos de opinião mostram que metade das pessoas acreditam que a Grande Muralha é visível do espaço2. Estão erradas: não é.
Onde é mais larga, a Grande Muralha mede nove metros, mais ou menos a largura de uma casa pequena. Além disso foi construída com pedras cuja cor é semelhante à das montanhas circundantes, pelo que se confunde com a paisagem. Se pensarmos um pouco nisto, a ideia de que é possível avistar a Grande Muralha a partir do espaço é até algo ridícula, mas há algumas boas razões para o leitor poder ter achado o contrário.
Em primeiro lugar, não é um assunto sobre o qual o leitor tenha reflectido muito. Ao contrário de mim, é improvável que tenha pesquisado a largura da Muralha ou a distância que a separa do espaço exterior (e depois se tenha enredado nas discussões intermináveis nos fóruns da internet acerca dos seus limites). O leitor não tem à mão os factos pertinentes.
Em segundo lugar, o leitor pode ter ouvido alguém afirmá‐lo quando não estava a prestar muita atenção. Pode até ter lido algo na imprensa ou tê‐lo ouvido na televisão. Foi durante anos a resposta (afinal incorrecta) que o Trivial Pursuit deu à pergunta em causa. É menos provável que tenha encontrado a afirmação em manuais escolares chineses, mas estes continuam a apresentá‐la como factual. No entanto, é possível que tenha deparado com ela algures, provavelmente mais do que uma vez, e, não encontrando nada que a contradissesse, deu‐a como ponto assente.
Em terceiro lugar, é quase certo que o leitor foi rápido a responder à pergunta, desejoso que estava de passar ao resto do livro — o tipo de «pensamento rápido» baseado em atalhos mentais e popularizado pelo cientista comportamental Daniel Kahneman**. É por isso possível que tenha confundido dimensões diferentes. Sabemos que a Grande Muralha da China é extremamente «grande» — trata‐se, de facto, de uma das maiores estruturas construídas pelo Homem —, mas essa dimensão deve‐se sobretudo ao seu comprimento, e este não é a propriedade que a tornaria visível a partir do espaço.
Acima de tudo, a sua resposta, leitor, talvez tenha sido mais emotiva do que poderia pensar, dada a trivialidade da pergunta. Dedique algum tempo a procurar a resposta e verá que até os astronautas não se entendem sobre o assunto. (Para memória futura, registe‐se que Neil Armstrong asseverou que a Grande Muralha não é visível do espaço — e isso basta‐me.) O leitor deparará com fotografias provenientes de fontes aparentemente insuspeitas que alegam mostrar a estrutura tal como é avistada do espaço. (Em pelo menos um dos casos, a fotografia era de um canal.) Perante algo tão grande quanto a Grande Muralha, queremos acreditar que astronautas, alienígenas e até os deuses conseguem ver a nossa obra. Queremos que seja verdade, por acharmos que é uma construção impressionante — e esta disposição emocional altera a nossa percepção da realidade.
Recorrer a conhecimentos anteriores erróneos; responder a uma pergunta distinta da que nos foi feita; misturar escalas diferentes; confiar no pensamento rápido; e não perceber até que ponto as nossas emoções influenciam o que vemos e pensamos são apenas alguns dos perigos a que as nossas percepções estão sujeitas no dia‐a‐dia. A Grande Muralha da China é um objecto físico real, uma coisa que pode ser medida. Imagine agora o leitor os estragos causados pelos mesmos problemas de percepção quando estão em causa realidades sociais e políticas não só complexas como também polémicas.
Mas há um último aspecto a considerar. Agora que lhe disse que tudo indica que a Grande Muralha não é visível do espaço, é provável que o leitor acredite em mim. E que, se tinha uma vaga noção de que era visível, tenha mudado de ideias. Como este não é um debate acalorado sobre a identidade e as ligações tribais do leitor, foi‐lhe fácil descartar e actualizar a sua crença. Note‐se, contudo, que temos sempre a capacidade de adaptar as nossas crenças quando confrontados com novos factos.
Dado que comecei com uma pergunta (literalmente) trivial, vale a pena enfatizar que tal não é decididamente o cerne do livro, por muito fascinantes e gratificantes que possam ser a ignorância dos factos e as crenças absurdas (alheias). Gostamos de troçar de um em cada dez franceses que ainda acreditam que a terra é plana; do quarto dos australianos que acham que os homens das cavernas e os dinossauros existiram ao mesmo tempo; de um em cada nove britânicos que julgam que os ataques do 11 de Setembro foram uma conspiração do governo americano; ou dos 15% de americanos que acreditam que os meios de comunicação ou o governo enviam sinais que controlam as nossas mentes durante as transmissões televisivas. O que sobretudo nos interessa não são as bolsas de estupidez ou crenças minoritárias em conspirações, mas as muito mais disseminadas percepções erróneas acerca de realidades individuais, sociais e políticas.
Peguemos numa pergunta muito básica, e mais do nosso interesse, acerca do estado da sociedade: «Qual a proporção da população do seu país com 65 ou mais anos?» Pense o próprio leitor sobre o assunto. Pode ter ouvido dizer que o seu país tem uma população envelhecida ou mesmo que está a braços com uma «bomba‐relógio» demográfica, que o número de pessoas idosas no seu país é demasiado grande para que as suas reformas possam ser sustentadas pelos mais jovens. É frequente os meios de comunicação darem destaque à pressão sobre a economia que representa esta população crescente de idosos, em particular em países como a Itália e a Alemanha. Ouve‐se dizer que, no Japão, as vendas de fraldas para adultos estão prestes a ultrapassar as de fraldas para bebés. Estas histórias podem ser apócrifas, mas suscitam em nós imagens tão sugestivas que é difícil descartá‐las.
Assim sendo, qual é o seu palpite?
Fizemos a pergunta em 14 países e, em todos eles, as estimativas foram, em média, muito superiores à verdadeira proporção. Em Itália, o valor real é 21% e no Japão é 25%. São números elevados — respectivamente, uma em cada cinco, e uma em cada quatro pessoas no total da população —, quase o dobro da percentagem que se registava há uma ou duas gerações. E, contudo, as estimativas cor‐ responderam, em média, a cerca do dobro do verdadeiro número de idosos. Em Itália, as pessoas acharam que 48% da população — cerca de metade — tinha 65 ou mais anos.
Como se depreende deste exemplo muito simples, as nossas percepções erróneas não são apenas motivadas pelo momento político particularmente febril que estamos a atravessar. Apesar de não haver, no Facebook, campanhas de desinformação (misinformation***) veiculadas por bots automáticos, nem o Twitter**** nos tentar convencer de que as nossas populações são mais velhas do que são na realidade, estamos completamente errados. A nossa ilusão é ampla, profunda e perene. A ignorância política é uma preocupação desde os alvores da democracia, com Platão a queixar‐se de que o público em geral era demasiado ignorante para escolher um governo ou responsabilizá‐lo.
É difícil provar que as percepções erróneas estão há muito disseminadas, porque medi‐las requer estudos representativos e só muito recentemente é que os cientistas sociais começaram a fazer estudos de opinião rigorosos. Em meados do século XX, os estudos sobre as percepções das pessoas acerca das realidades sociais eram raros e versavam sobre factos políticos simples — por exemplo, qual o partido no poder, quais as suas políticas e quem eram os seus dirigentes. Mas algumas destas perguntas iniciais, feitas pela primeira vez nos longínquos anos 40, voltaram a ser feitas em estudos recentes e, como veremos, as respostas sugerem que nada mudou muito significativamente4. Era tão provável as pessoas estarem erradas então, muito antes de 2016, como agora, quando a «pós‐verdade» (a ideia de que os factos objectivos influenciam menos a opinião pública do que os apelos à emoção e as crenças pessoais) foi escolhida como «Palavra do Ano» pelos Dicionários Oxford.
Tal não significa que o actual discurso ideologicamente motivado e que a explosão das tecnologias sociais não tenham tido qualquer efeito sobre as nossas percepções da realidade ou que não estejamos a viver tempos particularmente perigosos. De facto, aquelas transições tecnológicas são especialmente aterradoras nos seus efeitos sobre o rigor com que vemos o mundo ou questões fundamentais: o «salto quântico» na nossa capacidade de escolha e na dos outros para nos impingirem «realidades individuais» alimenta alguns dos nossos vieses mais profundos, levando‐nos a preferir a visão que já temos do mundo e a evitar informações conflituantes.
Mas é precisamente esse o problema. Se apenas prestarmos atenção ao que está lá fora, àquilo que nos dizem, escapar‐nos‐á um elemento essencial: o modo como pensamos é, em parte, o que nos leva a ter percepções erróneas do mundo.
Isto suscita uma observação importante acerca das conclusões dos estudos de opinião sobre os Perigos da Percepção. O fulcro desses estudos não é tanto erradicar a ignorância quanto descobrir percepções erróneas. Trata‐se de uma distinção subtil — na prática, é muitas vezes difícil traçar uma linha clara entre as duas coisas — mas fundamental.
Ignorância significa literalmente «não saber» ou «desconhecer». As percepções erróneas, pelo contrário, consistem em equívocos positivos acerca da realidade ou, como escreveram Brendan Nyhan, professor no Dartmouth College, em New Hampshire, e os seus colegas: «As percepções erróneas diferem da ignorância na medida em que é frequente as pessoas não duvidarem delas [...] e considerarem‐se bem informadas.» Entre as pessoas que sondámos, raras foram aquelas que se acharam ignorantes. As respostas que deram correspondem ao que acreditavam ser verdade.
Na prática, as crenças falsas não têm contornos definidos, situando‐se num espectro que vai da ignorância à ilusão. Em muitas situações, as pessoas são volúveis e sentem‐se inseguras quanto às suas certezas. A distinção mostra o quão difícil é alterar as percepções erróneas das pessoas apenas com mais informação, como se fossem receptáculos vazios à espera de serem preenchidos com factos que corrigiriam o seu pensamento e comportamento.
Ao investigarmos as percepções erróneas em vez da ignorância, deixamos de ver a opinião pública como tábua rasa pronta a receber inscrições, e passamos a encará‐la como um conjunto de pessoas com uma gama de opiniões e crenças motivadas pelos mesmos modos subjacentes de pensar. Isto suscita uma pergunta vital acerca da razão por que acreditamos naquilo em que acreditamos — é este o real valor de percebermos os perigos que ameaçam a percepção. As nossas percepções erróneas podem fornecer pistas acerca daquilo que mais nos preocupa, bem como daquilo que não nos merece a atenção que devia. Como veremos, as histórias que enchem o olho sobre gravidezes adolescentes ou ataques terroristas levam‐nos a pensar que tais fenómenos são mais comuns do que na verdade são, ao passo que o nosso estado de autonegação nos leva a subestimar a taxa de obesidade na população.
As nossas percepções erróneas também oferecem lições mais subtis. O que julgamos que os outros fazem e em que acreditam — ou seja, o que achamos ser a «norma social» — pode ter um efeito profundo no modo como agimos, mesmo quando o nosso entendimento dessa norma está lamentavelmente equivocado. Muitos de nós, por exemplo, não pomos de parte o suficiente em contas‐poupança para podermos levar uma vida decente quando nos reformarmos — mas achamos que isto é mais comum do que na realidade é. Dado que nos sentimos instintivamente seguros por pertencermos ao «rebanho», esta percepção errónea de que é normal não poupar pode influenciar negativamente o nosso comportamento.
Acresce que o contraste entre o que achamos que os outros fazem e o que nós dizemos que fazemos nos dá uma ideia de como julgamos esses comportamentos, por exemplo, daquilo que fazemos mas de que nos envergonhamos. Por vezes, aquilo de que nos envergonhamos é surpreendente e esclarecedor. Como veremos no primeiro capítulo, parece que temos mais vergonha de comer doces em excesso do que de não fazermos exercício físico. Termos consciência de que é mais provável mentirmos a nós mesmos sobre a quantidade de açúcar que ingerimos é um passo vital para melhorarmos o nosso estado de saúde enquanto indivíduos e enquanto sociedade. Há lições que cada um de nós pode aprender, mesmo quando acredita‐ mos estar bem informados acerca do mundo.
* A empresa de estudos de mercado e de opinião MORI (Market and Opinion Research International), fundada em 1969, foi adquirida pela Ipsos em 2005 e fundida com a Ipsos UK, dando origem à Ipsos MORI. Em 2022, este ramo britânico da Ipsos foi rebaptizada Ipsos. (N. de t.)
** Daniel Kahneman faleceu a 27 de Março de 2024. (N. de t.)
*** Ver a explicação do autor para a diferença entre «disinformation» e «misinformation» no capítulo 8, secção «As nossas câmaras de ressonância online». Neste caso, envolvendo bots, trata‐se claramente de disinformation, desinformação deliberada, e não de misinformation. (N. de t.)
**** O actual X. (N. de t.)
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