A jornalista filipina Maria Ressa chamou "bomba atómica invisível" às redes sociais, acusando-as de disseminar o ódio mais rapidamente do que os factos. Estas declarações da jornalista, quando recebeu o Nobel da Paz em 2021, não foram descabidas.

Ao longo de 36 anos de carreira, Maria Ressa trabalhou na CNN, assistiu à emergência de movimentos democráticos em antigas colónias, ao “terrorismo islâmico - muito antes do 11 de Setembro”-, ou de novos dirigentes “democraticamente eleitos que transformariam os seus países em quase ditaduras”.

Viu, também, “o potencial e o poder estonteante das redes sociais, que não tardariam a ter um papel decisivo no derrube de tudo”.

O que vi e documentei durante a última década foi o poder divino da tecnologia para infectar cada um de nós com um vírus de mentiras, virando-nos uns contra os outros (…) e acelerando a ascensão de déspotas e ditadores em todo o mundo”, afirma a jornalista que foi perseguida no seu país e, agora, tem de utilizar colete à prova de bala cada vez que sai de casa.

A Nobel da Paz lançou em finais de 2022 um livro sobre a sua vida enquanto jornalista que para além de outros factos, denuncia a maneira como tem presenciado a impunidade das empresas donas das redes sociais.

Maria Ressa, 59 anos, diz que escreveu o livro, “Como fazer frente a um ditador: a luta pelo nosso futuro”, para tentar “mostrar que a falta de um Estado de Direito no mundo virtual é devastadora”.

Foi, sobretudo, depois da cofundação do Rappler, um portal de notícias digital, que levou a sua equipa a perceber e a documentar a forma como o Facebook favorece a disseminação do ódio em vez dos factos. A partir daí, o Rappler passou a denunciar a impunidade das empresas que controlam as redes sociais, como a Meta, de Mark Zuckerberg.

Segundo Ressa, as plataformas que dão as notícias a uma parte significativa da população mundial “são tendenciosas em relação aos factos” e espalham “mentiras temperadas com raiva e ódio” muito mais depressa do que os factos.

“Sem factos, não pode haver verdade. Sem verdade, não pode haver confiança. Sem estas três coisas, não temos realidade partilhada, e a democracia tal como a conhecemos — bem como todos os esforços humanos significativos — estão mortos”, defende.

Entre alguns exemplos, a jornalista destaca a forma como o filho do ex-ditador deposto após uma revolta popular em 1986, foi eleito presidente das Filipinas em 2022 com a ajuda de campanhas nas redes sociais.

Com o mesmo nome que o pai, Ferdinand Marcos Jr. foi o primeiro candidato a conquistar a maioria absoluta desde o fim da ditadura que levou a sua família ao exílio nos Estados Unidos, há 36 anos.

Com a chegada ao poder, o clã Marcos regressou às Filipinas depois do ditador Ferdinand Marcos ter desviado do Estado mais de 10 mil milhões de dólares ao longo de uma ditadura de 21 anos (1965-1986), que provocou a morte de três mil pessoas em execuções extrajudiciais e 35 mil cidadãos foram torturados.

Desde que assumiu a presidência, Marcos Júnior tem promovido uma forte campanha de desinformação e propaganda online para tentar "branquear" o regime autoritário de seu pai.

Outra "operação digital" destacada pela jornalista foi a invasão da Rússia à Ucrânia.

"A guerra da Rússia na Ucrânia não está a ser travada apenas no terreno com tanques, artilharia e no ar, com caças de combate", reportava, no início da invasão, a rádio pública dos EUA, NPR. "Também está  a acontecer online, onde o Kremlin e os seus aliados fazem propaganda através de contas falsas, nas redes sociais, onde publicam documentos, vídeos e imagens manipulados com falsas narrativas, para desviar a culpa de Moscovo e minar o apoio internacional à Ucrânia", descrevia o meio.

Segundo Ressa, o que estes dois factos têm em comum, foi terem sido antecedidos de campanhas nas redes sociais que criaram a narrativa usada pela Rússia para justificar a invasão e, no caso do país do Sudeste Asiático, converteram Marcos pai “de pária em herói”.

A autora lembra ainda o papel das redes sociais na disseminação de narrativas de grupos extremistas que levaram à violência nos Estados Unidos, em janeiro de 2021, quando Donald Trump perdeu as eleições para Joe Biden.

O magnata republicano passou semanas a alegar que a eleição presidencial foi roubada, embora nunca apresentasse provas concretas. Donald Trump foi acusado de incitar o motim no Capitólio através das redes sociais, o que levou à suspensão das suas contas.

Mas esta sexta-feira, 17 de março, o Facebook e o Youtube anunciaram o levantamento do bloqueio às contas de Trump. O Twitter já o tinha feito, quando Elon Musk comprou esta rede social, mas foi no Facebook que Trump se vangloriou pelo regresso.

Com cerca de 34 milhões de seguidores no Facebook, o ex-presidente republicano anunciou que vai candidatar-se à Casa Branca, nas próximas eleições, e hoje voltou às redes para dizer que o FBI o vai prender na próxima terça-feira, apelando aos seus apoiantes, na rede social "Truth Social", que se Manifestem, caso a detenção se concretize.

A Nobel da Paz tem alertado que as plataformas tecnológicas "oferecem aos poderes geopolíticos uma forma de manipular individualmente” cada um dos seus utilizadores e “o Facebook representa uma das mais graves ameaças às democracias de todo o mundo”, afirmou.

As Filipinas foi pelo sexto ano consecutivo o país cuja população passou mais tempo nas redes sociais, em 2021, segundo dados da empresa We Are Social, com sede em Londres, citados no livro de Ressa. E tem sido, segundo a jornalista, um "viveiro de contas falsas envolvidas em campanhas de desinformação em vários países".

Em Portugal, de acordo com um relatório anual Global Digital 2022, divulgado pela Hootsuite, e publicado em junho de 2022, no JN, existem 8,5 milhões de utilizadores ativos nas redes sociais. Cerca de 84% da população portuguesa, que passa em média duas horas e 28 minutos por dia ligada.  Youtube, Facebook e Instagram são as redes com mais portugueses, segundo o mesmo relatório.

O livro de Ressa chegou às livrarias nacionais editado pela Ideias de Ler, da Porto Editora.

*com Lusa