"Não se deixem enganar duas vezes", foi este o título da carta que escreveu ao diretor do Financial Times, jornal que assina, em resposta ao editorial que este publicou sobre Portugal e as maravilhas da governação de António Costa.

Pedro Caetano, diretor global de uma empresa na área da indústria farmacêutica, fazia parte do grupo que, entre 2012 e 2014, preparou aquele que seria o programa do governo de António José Seguro para a área da saúde, caso este vencesse as eleições. Agora vive perto de Oxford, no Reino Unido, e não queria acreditar nos seus olhos. À medida que lia cada linha, a sua indignação ia aumentando: afinal, pensava, como era possível um jornal com a credibilidade do FT escrever tais atoardas? A sua resposta não se fez esperar e o jornal publicou-a com o mesmo destaque.

Foi, desde sempre, um feroz opositor de Sócrates e de Costa. Neste aspeto, diz, o Financial Times já se enganou duas vezes: a primeira foi em 2007, quando elogiou os défices baixos de José Sócrates, acreditando que este iria implementar as reformas que, afinal, só foram iniciadas com a chegada da troika, em 2011.

Sabe que há, em tudo isto, uma componente quase irracional, emotiva, admite. Mas por isso traz para a mesa os números do Eurostat, do Banco de Portugal, do Banco Mundial. Mais do que no campo da ideologia, coloca a divisão do PS - sim, existem dois PS, defende - no campo da ética. É a corrupção que divide o partido, uma espécie de índios e cowboys.

De resto, Pedro Caetano não esconde as ambições; para si, para o país e para os portugueses. E não entende como é possível não encontrar, entre 10 milhões em Portugal e cerca de 3 milhões no estrangeiro, pessoas altamente qualificadas e sem qualquer grau de parentesco ou, pelo menos, que não sejam pais e filhos ou maridos e mulheres ou primos ou cunhados disponíveis para ocupar os cargos públicos, no governo e noutros organismos estatais.

Tem 48 anos e faz-me saber de imediato que na América, nas empresas, é treinado para nunca perguntar a idade às pessoas que está a contratar e, mais do que isso, nunca lhes perguntar "em que ano foram à escola". Ainda bem que nada disto estava em causa e, assim, foi possível ficar a saber que nasceu em Lisboa, mas teve a sorte de descender dos Caetanos da Pampilhosa da Serra e de passar férias na Sertã e no Ribatejo, e em Abrantes, de onde era a mãe.

O pai era sportinguista ferrenho, e assim seguia os jogos todos fora, "outra maneira de conhecer Portugal. Além disso, tinha casa em Sesimbra e em Setúbal, que é a minha casa do coração. E família no Brasil e em França, na diáspora. O que mais me marcou foi uma dicotomia interessante: o meu pai é o militante mil do PS, um primo, Manuel de Brito, dono da Galeria 111, vivia por baixo da casa de Mário Soares, e, desde pequenino, eu tinha uma ligação forte ao partido e, ao mesmo tempo, um fascínio pela América, a terra do capitalismo; o meu herói era Thomas Edison e adorava os Kennedy".

A entrevista foi realizada poucos dias depois da contagem dos votos nos círculos da emigração.

créditos: Pedro Marques dos Santos / MadreMedia

No dia seguinte à contagem dos votos pelos círculos da emigração, António Costa escrevia: "O notável crescimento da participação eleitoral dos portugueses residentes no estrangeiro comprova que temos de continuar a reforçar os laços de cidadania da nossa diáspora, cientes de que onde está uma portuguesa ou um português, está #Portugal." Só que a abstenção aumentou de 88,3% em 2015 para 89,2 em 2019. Como comenta o tweet do primeiro-ministro?

Basicamente, a pool de eleitores é maior porque imensa gente emigrou. É típico da classe, e não só de Costa, tentar sempre encontrar algo a seu favor. Basta lembrar que quando a abstenção foi de quase 70% nas europeias, a primeira coisa que Marcelo [Rebelo de Sousa] disse foi "que podia ser pior". Estão sempre a baixar as expetativas. E é típico de Costa pegar naquilo que mais lhe interessa sem dar o contexto, sem propagandear o que está mal. Se votaram mais, é porque há mais eleitores, e se há mais eleitores, é porque há mais portugueses emigrados, o que não devíamos celebrar. Mas, ainda assim, a abstenção aumentou.

Há portugueses de primeira e portugueses de segunda, claramente

Como foi a sua experiência de votar lá fora e a de outros portugueses que conhece a viver no estrangeiro?

A minha experiência não foi positiva, mas conheço quem tenha recebido a carta, o boletim de voto, e votado uma semana antes, inclusivamente na cidade onde vivo, em Abingdon, perto de Oxford. Eu não recebi. Fui membro da PAPS - Portuguese American Post-Graduate Society, onde estão milhares de doutorados da geração de Mariano Gago nos Estados Unidos, alguns que tinham a morada correta registada no Cartão de Cidadão e que também não receberam a carta, vários estão a queixar-se e a querer perceber o motivo. No meu caso, sei porque é que não recebi, e tenho duas críticas a fazer: a de que mesmo quando se faz o que deve ser feito não se recebe o boletim de voto e a de como pode ser extremamente complicado para um emigrante mudar a morada se perdeu a carta dos códigos. É quase impossível. Por outro lado, a questão da proporcionalidade dos votos: em alguns círculos é de 250 mil versus 17 mil noutros. Há portugueses de primeira e portugueses de segunda, claramente.

Temos um presidente que é quase como o juiz Ivo Rosa, pende sempre para o mesmo sítio

O primeiro-ministro foi indigitado antes mesmo de terem sido contados os votos pelos círculos da emigração. Mas depois temos os políticos, incluindo o presidente da República, a apelar ao voto. Faz sentido?

Marcelo [Rebelo de Sousa] tem-me desapontado bastante pela subserviência ao governo. Quanto devia ser um contraponto. Penso que foi por isso que as pessoas votaram nele, para ser um contraponto, ideológico ou moral, a virtude está no meio. E ele não balança nada. Temos um presidente que é quase como o juiz Ivo Rosa, pende sempre para o mesmo sítio. O caso mais grave foi despedir Joana Marques Vidal [procuradora-geral da República], o que, claramente, era do interesse de muita gente associada a Costa e, por quaisquer razões, Marcelo tornou-se enormemente subserviente ao primeiro-ministro, e esta é mais uma linha que tenho observado. Outra linha que observei [em Costa] foi o nepotismo, quando começo a ver nomeações como as da filha de Vieira da Silva [Mariana Vieira da Silva] ou de Eduardo Cabrita [marido de Ana Paula Vitorino], num país europeu, em 2017, entre 10 milhões de portugueses em Portugal, mais três milhões de portugueses no estrangeiro onde encontrar os melhores dos melhores para governar sem ter de pertencer à mesma família. Não é possível, isto já não acontece nem em Angola - acontecia no tempo de José Eduardo dos Santos, mas não com João Lourenço. É inexplicável.

sei que há pessoas prejudicadas na sua vida profissional, prejudicadas nos seus financiamentos, nos seus negócios privados, nas suas vidas por tomarem uma posição contra a corrupção

O que o levou a escrever a carta "Não se deixem enganar duas vezes" ao director do Financial Times, em resposta ao artigo que o jornal publicou sobre os bons resultados obtidos por Portugal?

Conheço muito bem as duas culturas, a anglo-saxónica e a portuguesa. Sei que há muita gente corajosa em Portugal e sei que há muita gente interessada, como eu, em denunciar a corrupção. E a corrupção não é só uma questão do PS, é uma questão transversal - se calhar peco, às vezes, por falar demasiado do PS, porque no PS conheço as pessoas, conheço os casos. Mas, na realidade, financeiramente dependo zero de Portugal, e sei que há pessoas prejudicadas na sua vida profissional, prejudicadas nos seus financiamentos, nos seus negócios privados, nas suas vidas por tomarem uma posição contra a corrupção e contra os baixos padrões de Portugal. Ver, de repente, que um jornal internacional varria todas aquelas pessoas para debaixo do tapete com aquele artigo fez-me efervescer tanto como se fosse um jornal internacional a dizer que os dissidentes da Praça Tiananmen ou, hoje, os de Hong Kong não tinham razão nenhuma, e que Hong Kong e a China é que eram e são espetaculares. Para mim aquilo foi uma traição aos portugueses. Conheço, dentro do Partido Socialista, milhares de militantes de todos os níveis que criticam este baixo padrão. E, de repente, vejo um jornal internacional, que leio e que assino há anos, dizer uma barbaridade daquelas.

as únicas verdades que lá diziam é que os portugueses são hospitaleiros e que Portugal é um sítio seguro - mas isso não tem nada a ver com o governo atual

Que barbaridade?

Que Portugal é um país que atrai muitos imigrantes. Quando li aquilo estava numa festa com crianças - algumas, até me aflige, já nem falam português. Como é possível escreverem aquilo, se o que temos é emigrantes e não imigrantes? A primeira reacção que tive foi mais emocional, mas depois fui verificar os factos e os dados do Eurostat revelaram o ilusionismo, a mentira ainda me pareceu maior. Eu sabia que em 2017 tínhamos sido ultrapassados pela Estónia, pela Letónia e pela Eslováquia no poder de compra, e em 2018 mais ainda, mas não tinha ideia de que em termos de imigração líquida éramos o país mais baixo da Europa, excluindo a Eslováquia. Ou seja, quando os dados são claros e um jornal de prestígio como o Financial Times publica uma coisa destas... Para tornar isto ainda mais caricato, eles já me tinham convidado para um evento de assinantes, edição fim-de-semana, em Londres, "How To Spend It", uma coisa de muito bom gosto - tenho amigos que gozam - mas atrás disso vem a política, e um dos debates era com Lionel Barber [editor FT] e Alec Russell, editor do FT Weekend, sobre fake news. E eles tinham esta história. Ah, e também tinham engolido a história de que havia mais investimento estrangeiro em Portugal. Fui ver e, na realidade, estava a descer. Até o turismo, que tinham elogiado tanto, já estava a estagnar. E sempre soubemos que o turismo foi consequência do que aconteceu na Tunísia, que assustou os turistas ingleses e alemães e, realmente, Portugal é um sítio seguro. Aliás, as únicas verdades que lá diziam é que os portugueses são hospitaleiros e que Portugal é um sítio seguro - mas isso não tem nada a ver com o governo atual.

Um ou dois dias depois das eleições foi publicado um documento oficial a dizer que Portugal não converge desde 1995.

Que foi o que eu tive de explicar ao Financial Times. O que percebi é que o FT estava a ser enganado. Quando comecei a falar com eles e a tentar perceber o que era aquilo, era uma mão cheia de ar. O presidente do conselho editorial, ainda por cima, foi tão ingénuo que me escreveu um email a dizer que a fonte era a Ambrosetti, um "independent" think tank. Vou à procura do que é a Ambrosetti, de quem nunca ouvi falar, e vejo um site muito flashy: "We can assist you in managing your country's strategic image for a fee..." Mas, o que é isto? Isto é um think tank independente? E o senhor telefona-me com um ar um pouco atrapalhado e lá teve de reconhecer que não era. Há uma organização, a Eurofi, que se reúne com a União Europeia sob a imagem de think tank, embora seja lóbi financeiro, e aí o Financial Times tem uma posição corajosa e honrosa, diz que não é uma organização legítima, é paga pelas financeiras - por isso não deixam o jornal lá entrar. E foi o que eu lhes disse: como é possível terem visto logo que a Eurofi não é transparente e que é lóbi puro e duro, e não terem desconfiado no caso da Ambrosetti, que é uma versão muito mais rasca, que se vê logo que tem por trás um italiano a ganhar dinheiro? E, finalmente, espremendo ainda mais, diziam: "Ah, mas tenho dois amigos na Suíça..." Eu não queria acreditar: então, o FT, que tem 131 anos, está a dizer-me que faz uma notícia com base em dois amigos? Eu, que faço ensaios clínicos, tenho de testar medicamentos em 5 ou 6 mil doentes, e você, com dois amigos, consegue provar estatisticamente que Portugal está uma maravilha? E onde é que esses amigos fizeram o dinheiro? Porque eu também tenho um apartamento no Chiado, no Palácio Mesquitela, mas fiz o dinheiro na América. Tive de lhes enviar uma série da Bloomberg a dizer que os portugueses já nem dentro de Lisboa conseguem viver.

Há dois PS porque há um PS que acredita que o país tem um grave problema de corrupção, mais do que de ideologia

É do Partido Socialista e fez parte do grupo que estava a elaborar o programa de governo de António José Seguro para a área da saúde, até 2014, quando António Costa interrompeu o processo. Podemos dizer que existem dois PS?

Claro. A última entrevista de Francisco Assis revela perfeitamente isso. Há dois PS porque há um PS que acredita que o país tem um grave problema de corrupção, mais do que de ideologia. As lideranças têm dado um exemplo tão mau que, mesmo a níveis mais baixos da população, já está entranhado o sentido da cunha, do favoritismo. É um problema muito grave, de ética, e tem de ser resolvido. Temos batalhado ferozmente contra isso, ao ponto de termos convencido Seguro a dizer algo que não era mainstream: há aqui negócios misturados com política. A entrevista de Seguro à Visão, em 2014, foi um marco histórico na política portuguesa, acho que as pessoas não se apercebem de que esse grupo, para dizer isso, teve de lutar muito. E Seguro só o disse quando já sentia que poderia vir a ser primeiro-ministro, que poderia começar a dar o exemplo. No grupo da saúde, para lhe dar um exemplo - e não vale a pena personalizar - já éramos vistos como ministro e secretário de Estado, o Álvaro Beleza e eu, e reuníamos com conselhos de administração de hospitais privados e com associações de doentes para dizer que tinham de arranjar maneiras de se auto-sustentar porque não podia ser o Estado a pagar-lhes. Nunca tinham ouvido alguém dizer que o dinheiro do Estado não era para esbanjar. Mas não éramos radicais, somos ao centro.

créditos: Pedro Marques dos Santos / MadreMedia

Parece que hoje todos são ao centro. Mas, dentro do PS, como são vistos?

Somos pintados mais à direita pela ala que se declara mais à esquerda no PS - Pedro Nuno Santos, Duarte Cordeiro, João Galamba e Pedro Delgado Alves, os jotas turcos, como gostavam de ser chamados, um termo que os fazia sentir revolucionários ou radicais de esquerda, quando na realidade eram e são apenas aprendizes de Sócrates e ajudantes de Costa a prepararem-se para continuar a herança como ministros ou primeiro-ministros. Mas, depois, compactuam com negócios que prejudicam muito a população e sempre que [Francisco] Assis fala perguntam-lhe porque é que não vai tirar o cartão do PSD... Eu, aliás, penso que somos mais socialistas democráticos, preocupamos mais com a população, embora ideologicamente concorde que estamos ao centro. E, nesse grupo, não queríamos, de maneira nenhuma, eliminar o sistema privado. O que dizíamos é que não podiam viver do público, porque os recursos do público tinham de ir para o público. O que se passou recentemente com o fecho das urgências pediátricas do Hospital Garcia de Orta ou com os anestesistas tarefeiros a 50 euros no Hospital de Faro já estava previsto há tempos. Tínhamos gráficos que mostravam que as operações estavam a descer no público e a subir nos privados, os gráficos quase se sobrepunham. Nada justificava aquilo, a não ser um esforço concertado para destruir o SNS, em que os lóbis dos hospitais públicos eram utilizados quase como que para angariação, mas de forma promíscua, ao ponto de dizerem, e conheço casos concretos, se quiser uma operação às cataratas espera dois anos no público, mas se arranjar 1500 euros tem vaga no privado para a semana, com o mesmo médico.

O problema das PPP à portuguesa, misturadas com política, é que os que deviam estar a representar os interesses públicos estão, de facto, a representar os interesses privados.

No Reino Unido também há parcerias público-privadas, muitas delas com êxito. Se forem bem geridas, concorda que podem ser uma mais-valia?

Uma verdadeira parceria público-privada, como qualquer parceria, é boa quando ambos os lados representam com toda a dedicação os seus interesses. Eu próprio faço isso no negócio que represento. Sou a favor das PPP desde que seja possível ambos os interesses estarem representados. O problema das PPP à portuguesa, misturadas com política, é que os que deviam estar a representar os interesses públicos estão, de facto, a representar os interesses privados.

Onde é que se ganha?

O Estado ganha muito pouco, ou perde, até. Os contribuintes perdem. Os envolvidos, as pessoas envolvidas pessoalmente nessas negociações, ganham bastante. Muitas vezes até são incentivadas a fazer mal a negociação. É uma porta giratória. 

Alguma fez foi alvo de tentativa de suborno, nesse percurso de que fala e que poderia terminar na sua nomeação para um governo?

Sim, sim. Aliás, a corrupção está tão impregnada que, às vezes, as pessoas nem sequer percebem que é corrupção o que estão a fazer. Não vou especificar para não levar com processos, mas quando se acreditava que eu seria secretário de Estado, com base nisso as pessoas aproximavam-se e eram muito transparentes: "Se eu for colocado como administrador no sítio xis, determinadas compras a privados andam à volta de um milhão de euros, 10% estás a ver quanto é..." Eu ficava chocado, mas isto era dito à boca cheia, por pessoas em altos cargos. Repare que caio aqui de chofre em 2012, quando na Sanofi fazíamos testes de corrupção, em que se alguém respondia que alguma vez pretendia dar uma prenda a outro era logo excluído da empresa. Um construtor civil, quando soube que eu era professor de Medicina na Universidade Nova e estava na política com António José Seguro tratou logo de explicar que fazia sempre 10% em qualquer empreitada. Isto, numa altura em que todos estávamos a pagar o preço da corrupção, porque eu vim da América para Portugal aceitando um salário seis ou sete vezes inferior, mas para estar ao pé da família e para ajudar o país. Mas, a certa altura, todos os meses esse salário era cortado. O que mais me impressionou - talvez as pessoas já não se lembrem - foi que Seguro já ia ao American Club, já estava com o D. Duarte, já estava com o presidente da República, já todos o tratavam como o próximo primeiro-ministro, já era mais do que óbvio que ganharia as próximas eleições...

recusámos quatro vezes que Ricardo Salgado falasse com António José Seguro. Nunca foi recebido no Rato - e estava desesperado porque Passos Coelho também lhe estava a fechar a porta

Só que não.

Só que não. Não, talvez por ser tão honesto e íntegro. E o que mais me impressionou nisso tudo é que é tudo uma questão de liderança. Seguro veio dizer que acabaram os negócios misturados com a política, e o que vi é que há coisas boas e más nos portugueses - o que pode ser usado para o bem e para o mal. Os portugueses são muito conformistas. Claro que isto é nas camadas intermédias, nas que vivem disto é diferente: recusámos quatro vezes que Ricardo Salgado falasse com António José Seguro. Nunca foi recebido no Rato - e estava desesperado porque Passos Coelho também lhe estava a fechar a porta. De repente, onde é que essa gente encontra casa a não ser no PS de António Costa? E encontrando aí casa, fizeram tudo para denegrir o caráter de Seguro.

Mas Seguro é passado e, tanto quanto se sabe, não quer regressar. Quem seria o líder dessa fação do PS? Francisco Assis?

Neste momento, mediaticamente, Francisco Assis parece ser quem está melhor posicionado. Há várias pessoas que acredito que têm grandes qualidades, nomeadamente entre os secretários nacionais que estiveram com Seguro, mas Francisco Assis, mediatamente, penso que é o que está mais bem posicionado.

Não receia que as pessoas pensem que está a fazer exatamente a mesma coisa que acusa outros de terem feito: denegrir a imagem de Costa e dos que o acompanham para chegar ao poder?

Não, não, não. As pessoas conhecem-me, e as que não conhecem passarão a conhecer. Financeiramente não tenho nada a ganhar e, aliás, podia mostrar os salários que... Não teria nada a ganhar em ser ministro. Nada. O que me move é ter visto que uma liderança ética é possível. Aliás, uma coisa sou eu a confrontar o Financial Times, embora tenha sido completamente factual - as pessoas, conhecendo-me no partido como opositor feroz a Sócrates e a Costa, podem olhar para os dados do Eurostat -, mas a "The Lancet" é uma revista científica acima de qualquer suspeita. Os médicos ingleses não são tão permeáveis como certo jornalismo mainstream a manusear certos políticos só porque são fofinhos - e há vários aspectos de António Costa que são fofinhos: a multietnia, e tenho orgulho nisso, o facto de ser europeísta, de falar bem francês, há afinidades que lhe desculpam muitas coisas. Mas na comunidade médica, nos jornais médicos como "The British Medical Journal" ou "The Lancet", é uma cultura completamente diferente. E quando a "The Lancet" publica, a 15 de setembro, um relatório em que diz que, de um lote dos 33 países mais ricos, de 2002 a 2017, os hospitais portugueses estão a cair aos bocados, os profissionais de saúde estão desmoralizados e isso começa a afetar a saúde das crianças e dos idosos, para mim, a incompetência, a falta de mérito, a integridade, traduz-se agora também em vidas. Não é possível que tenhamos já jornais internacionais a apontar o dedo para Portugal.

A verdade é que António Costa acabou de ganhar as eleições e já formou governo: 19 ministros e 50 secretários de Estado. O que espera?

É importante não criticar só por criticar, por isso, em primeiro lugar, quero dar os parabéns a António Costa por, finalmente, ter feito algo em relação ao nepostismo. Era humilhante para Portugal aparecer na Wikipédia como o país mais nepotista do mundo. Agora, apelo a António Costa para que faça o mesmo não só para dar a imagem, mas também porque há muito nepotismo nos escalões abaixo, nomeadamente mulheres e maridos de políticos conhecidos no PS que têm empregos injustificáveis de acordo com os seus méritos e qualificações. Outra coisa positiva: o número de independentes aumentou. Há um problema que se regista há muito, que é um excesso do número de advogados a gerir coisas, em vez de técnicos especialistas - os advogados não tinham empregos e vieram para a política, sem saber gerir nada, e começaram a gerir tudo. Para mim essa é parte do descalabro da coisa pública, incluindo PPP. Agora há uma redução, que também acho positiva, do número de advogados e o aumento do número de indivíduos que são mesmo técnicos ou que têm alguma competência técnica - não diria ainda que estamos a nivelar por cima, porque não estamos a falar de competência técnica de topo, são pequenas especializações...

se há alguma coisa, é a continuação de uma ostracização do grupo de Seguro

Este governo inclui também gente da área de António José Seguro.

Aí, a grande aposta nem sequer é no governo, é o secretário-geral-adjunto, número dois do PS, José Luís Carneiro. Saúdo a sua nomeação. Para o governo, tirando Eurico Brilhante Dias, não estou a ver quem mais fosse próximo de Seguro. No governo anterior houve três seguristas, digamos assim: João Soares, Jorge Seguro Sanches e Eurico Brilhante Dias. Agora há dois. Portanto, se há alguma coisa, é a continuação de uma ostracização do grupo de Seguro. Mesmo com a população farta de corrupção - e Costa ia perdendo as eleições. Aliás, ao ponto de se a história do lítio tivesse chegado antes e não depois, o resultado ter sido outro. É óbvio que o PS vai continuar a descer se não for ético e íntegro e é óbvio que há uma ostracização no governo das pessoas que estiveram com António José Seguro. Portanto, e respondendo à sua pergunta, o único sinal positivo que vejo não é no governo, é no PS. Conheço bem a antiga secretária-geral-adjunta, Ana Catarina Mendes, fomos adversários em várias lutas internas do partido no distrito de Setúbal, o resultado era ameaças de processos em cima, não conseguia dialogar com uma pessoa assim. Com José Luís Carneiro, penso que deverá ser mais fácil.

António Costa manteve Marta Temido na pasta da saúde. Como olha para esta decisão?

Para falar das partes negativas sobre este governo, penso que, depois deste artigo da revista "The Lancet", depois da destruição que se tem passado na saúde, manter Marta Temido como ministra da Saúde é tragicómico. É a única coisa que posso dizer e vem na senda da irresponsabilidade de jogar com a vida das pessoas.

A ministra Marta Temido aceita calada as cativações do ministro das Finanças, deixa que a saúde seja o principal sacrificado do défice zero

O que o leva a avaliar a ministra Marta Temido de forma tão negativa?

Várias razões. Para já, porque admite ser completamente silenciada. Para mim, um ministro da Saúde deve ser um provedor dos doentes. Posso ser franco sobre isto: quando fui aceite em Harvard, na School of Public Health, fui para lá com o objectivo de me preparar não para a indústria farmacêutica, onde já estava bem, mas para poder ajudar Portugal, para dar um contributo ao país. Sei que os melhores governantes americanos, como Obama, têm sido formados em Harvard. A ministra Marta Temido aceita calada as cativações do ministro das Finanças, deixa que a saúde seja o principal sacrificado do défice zero, e não lhe diz: "Olha, Mário, os meus doentes estão primeiro. Vai cativar noutras coisas, vai cativar às fundações, aos contratos com os escritórios de advogados, aos nossos colegas de governo, mas não a vida dos doentes". Só o facto de ser moralmente completamente submissa a algo que nem sequer é socialista... Não há nada que seja mais querido aos militantes socialistas do que António Arnaut e a fundação do Sistema Nacional de Saúde. Marta Temido não defender o SNS e aceitar tudo isto faz dela uma ministra terrível. Depois, é o exemplo de uma classe muito fechada sobre si mesma, que são os administradores hospitalares portugueses, quase todos do mesmo molde.

Para si faz mais sentido os hospitais serem geridos por médicos ou por gestores?

Não é tão simples quanto isso. Ou seja: um médico ou um farmacêutico ou qualquer profissional de saúde com um MBA de topo - INSEAD, Cambridge, Stanford, onde for - para mim, é o ministro ideal. Obviamente, não podemos ter esse género de ambição para todo o gestor de hospital, mas um profissional de saúde público com um MBA da Nova, por exemplo, é um gestor ideal - e não estou a dizer só médicos, conheço country managers mulheres com capacidades para serem boas gestoras hospitalares. O que não faz sentido é alguém, só por ser médico, ser gestor. Ou, o que vejo ainda mais, um advogado, que nunca teve gestão e que vai três ou quatro meses para a Escola Nacional de Saúde Pública, no Lumiar, e que depois já se auto-intitula gestor hospitalar. Isso é uma falta de qualidade enorme. O que não faz sentido de uma maneira geral é pessoas sem qualificações de gestão a gerirem hospitais.

Portugal nunca teve uma estratégia de pedir em troca, tornou-se um país de muitos direitos e poucos deveres

Acredita mesmo que as cativações de Mário Centeno são o único problema da saúde? Os salários dos médicos, o tipo de contratação, o ensino não têm problemas?

Há vários problemas na classe médica. Um dos problemas principais é que no público são mal pagos. Por isso é que em vez de lhes pagar mal, à espera que saltem para o privado e que, no fundo, complementem parte do seu rendimento a angariar doentes no público em vez de fazerem lá o seu trabalho, mais valia pagar-lhes bem e exigir exclusividade. Portugal nunca teve uma estratégia de pedir em troca, tornou-se um país de muitos direitos e poucos deveres. Nos quatro anos do meu doutoramento, Portugal disse: doutora-te, toma lá uma mensalidade, que era até bastante boa - gastou comigo e com milhares de portugueses 300 mil ou 200 mil euros em quatro anos, sem pedir nada em troca. Eu tinha colegas sul-africanos, taiwaneses, holandeses, alemães e eles não percebiam isto. "Então vocês não têm de trabalhar lá xis anos?" Não. Só vim porque quis. Fui professor de Medicina e conheço bem o desejo de famílias de serem médicos e não entendo como é que o Estado, que tem a faca e o queijo na mão, não decide que não basta ter uma média, seja de 19 ou outra, até porque não me serve de nada ter alguém com uma média de 19, se depois tenho um tarefeiro espanhol medíocre a anestesiar por 50 euros à hora e a pôr em risco a vida de um paciente - por isso digo que ela [Marta Temido] é uma ministra fraca, não tem capacidade de ser disruptiva. Quem quer entrar para Medicina tem de assinar um compromisso de honra em como aceita ir para os hospitais em que é necessário durante xis tempo, caso contrário tem de pagar de volta o dinheiro que o Estado investiu na sua formação. Todos os países civilizados o fazem, não o fazer é um misto de incompetência e imprudência. É não ter visão. O Estado poderia exigir ter médicos muito mais de acordo com as necessidades de formação e também deveria pagar mais e exigir exclusividade.

Trabalha na indústria farmacêutica. A relação das empresas que produzem medicamentos com o Estado nunca foi muito transparente. Portugal ainda tem aqui um longo percurso a fazer, concorda?

Sim, de maneira nenhuma. Foi assim, aliás, que convenci a FCT [Fundação para a Ciência e para a Tecnologia] a financiar o meu doutoramento. A minha proposta, feita em 1997, era muito clara: a Alemanha, um país rico, tinha na altura uma quota de genéricos de 40% ou 50%. Em Portugal, não tenho os números de cor, mas estaríamos com uma quota de cerca de 1% ou 2%. Propus à FCT ir para os EUA tirar um doutoramento em Farmacêutica, basicamente fazer os ensaios para provar que um medicamento é comparável com outro, precisamente para vir para Portugal e aumentar a quota de genéricos. Lembro-me de ter sido aceite na Faculdade de Farmácia de Inglaterra e na Faculdade de Farmácia de Michigan, que é a melhor dos Estados Unidos, quando fui chamado para fazer o Serviço Militar Obrigatório, foi o último ano do SMO, e quis vir, quando bastava uma carta para pedir o adiamento. Fui colocado no Hospital Militar Principal, que tinha o laboratório militar, a caminho do aeroporto. Disse ao major que tinha sido aceite e que quando regressasse íamos fazer do Hospital Principal um centro de genéricos, para começarmos a ter uma quota de genéricos, e ainda me recordo da resposta dele: "Não precisamos cá de Rolls Royce, precisamos é de Minis". Para mim, isto revela o que é uma cultura má. Fiz as contas, e mudar para uma quota de 50% de genéricos, na altura, tinha-nos poupado 1,5 mil milhões por ano. Quando regressei, em 2012, vejo a troika muito aflita a dizer que tínhamos de aumentar a nossa quota de genéricos. Tinham-se passado 15 anos e 40 mil milhões de euros.

A tese de que quando um tratamento é muito caro deve ser deixado de lado e não deve ser comparticipado, faz sentido?

Não sou a favor de que 2 milhões de euros seja muito para a cura. A minha tese em Oxford foi sobre que se não há cura para a diabetes é porque não há incentivo financeiro. Cerca de 500 milhões de pessoas sofrem de diabetes, é a praga mundial do momento, e é mais vantajoso fazer tratamento sintomático do que uma terapia com células estaminais para regenerar as células do pâncreas e acabar com a doença. A área das células estaminais é muito promissora, mas é preciso investir muitos biliões e se as empresas não tiverem retorno, não o vão fazer. Consigo perceber que medicamentos inovadores têm de ser bem pagos. Aliás, vim para Portugal porque estava empenhado em colaborar com Harvard e com Álvaro Beleza [médico] - foi assim que nos conhecemos - a fazer normas de boa prescrição para a Direcção-Geral de Saúde. Não fazia sentido estar a prescrever medicamentos não tão inovadores a pagar dez vezes mais e depois não ter dinheiro para pagar um medicamento realmente inovador - como aconteceu no caso do tratamento da Hepatite C. Percebe que não é uma Marta Temido, que é realmente muito provinciana, que vai resolver coisas com alguma complexidade? Não era Seguro que era provinciano, são estes ministros de Costa. A minha resposta seria sempre cortar nos medicamentos de falsa inovação para pagar a verdadeira inovação.

créditos: Pedro Marques dos Santos / MadreMedia

Quem foi, para si, o melhor ministro da Saúde português?

Modelo, modelo, Correia de Campos foi um ministro que tentou fazer e trazer a boa gestão para a coisa pública, mas não conseguiu, não eliminou muitos vícios, falhou. Paulo Macedo não foi ministro, as medidas são da troika, estava a executar um programa que não era dele. Sinceramente...

E a falha vai sempre por onde?

A última vez que vi, a saúde era sempre 8 mil milhões ou 9 mil milhões do orçamento. Quando pagamos impostos, penso que não há coisa mais sagrada. O Estado existe para defender as pessoas e para manter as populações saudáveis. A saúde é um pilar fundamental, uma vez que não temos grandes ameaças externas. Portanto, o ministro ou a ministra da Saúde deveria ser alguém de um calibre superior enquanto gestor, já que é a vida das pessoas que está em risco, e que é isso que tem levado os hospitais públicos à falência, que tem levado a esta crispação entre médicos e governação, que tem levado à emigração maciça de profissionais de saúde. O que é paradoxal, é que os bons enfermeiros, os bons anatomistas patológicos, os bons técnicos de saúde têm de sair, os bons psicólogos - a saúde mental é importantíssima, os médicos de família cá gastam horas a fazer algo para o qual não estão qualificados, que é dar apoio na saúde mental,  criámos um batalhão de psicólogos, que pagámos para nada - foram para fora ou estão desempregados. Penso que o que tem falhado, é uma classe de gestores hospitalares que mostram maus resultados no hospital, do hospital vão promovidos para a ARS [Administrações Regionais de Saúde], onde mostram maus resultados e vão promovidos quase como coronéis, por antiguidade, para secretários de Estado ou para ministros. Enquanto isto for assim, é impossível. Conheço bem as empresas farmacêuticas bem sucedidas e para as pessoas serem promovidas o líder tem de mostrar bons resultados.

Esses que mencionou, ARS, direcções-gerais, gestores hospitalares, entre outros, devem ser cargos de nomeação?

Penso que, em princípio, se o governo é de eleição, os cargos de topo deveriam ser de nomeação política. Infelizmente, o que se passou em Portugal e o ponto a que desceu a saúde é tão baixo - não gosto de personalizar nunca, mas a verdade é que são casos concretos: a ARS do Sul, se vamos ao Alentejo, está tudo desmoralizado, dos médicos aos doentes, é talvez o maior exemplo de desolação, centros de saúde inexistentes, o hospital do litoral alentejano entregue à sua sorte... E quando essa senhora é promovida a secretária de Estado por nomeação política apenas por ter relações familiares com políticos conhecidos... Penso que é de uma inconsciência gravíssima. Nem é culpa da senhora, porque se ela nunca conseguiu gerir bem, se nunca conseguiu afrontar lóbis, não é por ser secretária de Estado que vai mudar.

Está a falar de quem, exactamente?

Estou a falar da mulher de [Carlos] Zorrinho [Rosa Valente Zorrinho, secretária de Estado da Saúde], que era responsável pela ARS do Sul. Basta ir à "Má Despesa Pública" para ver as decisões tomadas, que não tinham nada a ver com boa gestão. Lá está, era socióloga e tirou uma especialização de três ou quatro meses em gestão na Escola Nacional de Saúde Pública. Isto é nivelar por baixo. Nos cargos que envolvem a vida dos portugueses, como a Protecção Civil e como a Saúde, devia ser um misto de confiança política e um júri internacional. E isto não é ser utópico, a FCT faz isto em Portugal, não dá uma bolsa sem passar por um júri internacional.

Apesar de todas as críticas, revê-se no PS?

Também tenho defeitos, ninguém é só anjo. Mas conheço o lado bom do PS. E conheço bem os militantes da Amadora, de Sesimbra, de Odivelas, de Setúbal, de muitos locais e muitas pessoas gostavam genuinamente do PS pelo melhor que veicula. Como disse, sou contra a gestão de Sócrates e de Costa, mas sou a favor da de Soares, que nos tirou do comunismo. Se alguma marca o PS tem, uma boa conotação, não é por causa do Galamba do lítio, é pelos seus fundadores. Eram meus amigos, Tito de Morais, Sottomayor Cardia, Salgado Zenha, Mariano Gago. Eu sou militante desde 1988, o Galamba é desde dois mil e tal. Mas acham que podem pôr fora 300 militantes em Braga e Matosinhos. E lá vem a frase que me entristece, não queremos cá Rolls Royce, queremos cá Mini. E continuamos a insistir em Minis. E as pessoas não percebem que enquanto tiverem Minis a governá-las, vão continuar a ser pobres, porque um Mini não consegue dar mais que aquilo. E eu sonho com a altura em que os portugueses queiram Rolls Royce.