Pedro tinha apenas um mês e meio quando lhe foi detetado um tumor no cérebro. Um olho sempre a entortar foi o sinal de alarme e uma ressonância magnética e outros exames vieram confirmar o diagnóstico. Foi operado e faz quimioterapia desde então. Não sabe o que é viver sem isso e até há pouco tempo julgava que era uma coisa que todas as crianças faziam. É totalmente cego.
Tem nove anos e aprende música desde os cinco. Quando lhe pergunto a idade, quer saber a minha: "Tchhhhhh", espanta-se. E logo emenda a mão com um "mas és nova". Passou para o quarto ano e está "ansioso" pelo início das aulas, mais ainda porque no primeiro dia vai sair da escola ao meio-dia e meia para ir almoçar ao McDonald's do Pinhal Novo, onde vive, que esteve fechado para obras.
"Como vim aqui para falar de música, vou dizer-te de que músicas gosto: a mãe não sabe porquê, mas eu tenho nove anos e não gosto das músicas que os meninos de nove anos ouvem, gosto de músicas dos anos oitenta, como Europe, All-4-One, Phil Collins ou Taylor Dayne, que canta "Tell It To My Heart", conheces?".
Conta que começou a interessar-se pela música a ouvir a Rádio Renascença. Hoje, toca piano - "e às campainhas das portas" também, diz baixinho, não vá mais alguém ouvir. Gosta de piano porque "tem um som melodioso, parece que estamos a entrar no paraíso". A última audição foi no final de maio, tocou "The Swing" ["O Baloiço"] e "Dancing With Wooden Shoes" [Dançando Com Sapatos de Madeira"]. Sabe a escala toda e toca as músicas de cor porque tem "ouvido absoluto".
Pedro frequenta a Escola Básica Zeca Afonso - "na minha turma sou o único deficiente" - e está no regime de ensino articulado. No primeiro ciclo, as diferenças não são muitas, mas dois dias por semana tem aulas no Conservatório Regional de Palmela. A partir do 5.º ano a estrutura será outra, com disciplinas da música a substituir parte da componente curricular tradicional, com EVT ou Educação Musical.
Hoje fala-se muito em inclusão. As escolas públicas estão preparadas para receber estas crianças? Dídia Lourenço pode falar na perspectiva de mãe e de professora: "Uma escola só se prepara quando há necessidade. E, quando há essa necessidade, ou há vontade ou não há vontade".
"Na escola do Pedro não havia qualquer conhecimento sobre a especificidade da deficiência visual", recorda, "porque até à data não tinha havido necessidade. O Pedro foi o primeiro aluno cego. Quando fui matriculá-lo, o que me disseram foi "nós não temos formação". Repondo sempre que também não tive formação para ser mãe do Pedro, tive de ir à procura. É uma questão que tem muito a ver com a vontade e com as pessoas que estão nas escolas". Que não são todas iguais.
Inclusão: uma coisa na teoria, outra na prática
Dídia Lourenço é professora de Educação Especial, especializada no domínio cognitivo e motor, e acabou por conseguir junto do Ministério da Educação o seu destacamento para trabalhar na associação da qual é fundadora, a Bengala Mágica, que dá formação a escolas nesta área.
A conversa com mãe e filho decorre na redação do SAPO24, em Lisboa, ao final do dia, já depois de ambos terem ido à Azambuja, onde os esperava um grupo de professores ávido de informação sobre a melhor forma de ensinar uma criança com baixa visão que este ano irá frequentar a escola. "Os professores estão preocupados, querem dar-lhe o melhor, conhecer estratégias. Há outras pessoas que, provavelmente, não têm esse interesse".
A associação Bengala Mágica foi criada em 2017 por um grupo de pais de filhos cegos ou com baixa visão. "Na altura havia várias associações de adultos com deficiência visual, mas nenhuma direccionada para os pais. Sentimos essa falta, até para nos apoiarmos nas nossas necessidades. Depois, a associação acabou por ganhar uma dimensão e uma projeção muito além daquele que era o nosso objetivo inicial e começámos a ter muitos pedidos de apoio das escolas", explica a mãe de Pedro. Atualmente, a Bengala Mágica tem cerca de 170 associados, mas é um por agregado familiar, o que significa que são muitos mais.
O que mudou desde que Dídia Lourenço começou a dar aulas até aos dias de hoje? "Teoricamente as coisas evoluíram muito, temos uma legislação excelente, as pessoas são mais abertas à diferença, podemos incluir as nossas crianças em escolas regulares. O meu filho está na escola da sua área de residência, o que há uns anos era impensável".
Mas conseguir isto não foi fácil. "Até expliquei ao Pedro que havia, e ainda há, as escolas de referência; supostamente ele teria de ter ido para uma escola a cerca de 25 quilómetros de casa, mas entendi que não e lutei por isso, para ele ficar no Pinhal Novo e para ter os apoios de que precisa".
Antes disso, ainda, "estas crianças eram institucionalizadas em escolas para cegos ou com deficiência visual, porque acreditava-se que isso era o melhor. Nada contra, com certeza desenvolviam muitas competências, mas não desenvolviam competências sociais e tudo o que aprendemos com aquilo que é a diversidade. O Pedro aprende com os colegas, os colegas aprendem com ele. Tem uma turma fantástica, também porque o acompanham desde pequeno, alguns desde o pré-escolar", adianta Dídia Lourenço.
Pedro confirma que a turma é "fantástica". E conta que vai às festas de aniversário dos amigos. A mãe comove-se com algumas atitudes. "Às vezes fico a observar e vejo que os amigos têm com ele comportamentos que ninguém os ensinou a ter. Há dois anos, um menino convidou-o para a sua festa. Depois a mãe disse-me: "Ele fez-me ir ao local onde quer fazer a festa para garantir que tinha condições para o Pedro". Isto revela aquilo que é a inclusão natural. Era num parque-aventura, com rappel e outras atividades, e ele queria ter a certeza de que o Pedro ia poder participar e não ia ficar excluído. Não há outra forma de estas novas gerações aprenderem senão através do contacto com a diversidade, que é uma riqueza".
Pedro também tem histórias para contar: "Há uma amiga que é muito querida para mim, a Maria do Mar, ajuda-me sempre. Uma vez estava numa festa de anos e estava lá o Gonçalo, que também é da minha turma, e ajudou-me a subir para um escorrega grande, alto, em caracol, que ia dar a uma piscina de bolas".
Pedro é bom aluno e até está acima da média. A mãe acredita que a "grande capacidade de aprender e de memorizar" pode estar associada ao facto de não ter "distratores visuais" e "canalizar a atenção para tudo o que ouve". O pequeno pianista, por sua vez, garante que nunca sentiu qualquer dificuldade acrescida por não ver.
Além de tocar piano, Pedro também canta. E dança. "Gosto de dançar e às vezes ponho músicas no meu computador em altos berros e fico assim a dançar" [agita os braços no ar e abana a cabeça como um doido].
Para Pedro todas as escolas deviam ter música, "como o meu infantário [creche], que era super-fixe porque tínhamos música e tudo". E como seria a vida sem música, pergunto? Faz uma expressão sombria e responde "ia trazer-me muita tristeza".
Musicar, o projecto da Metropolitana para cegos e surdos
Foi a pensar nesta tristeza e na comunidade de cegos e surdos que a Metropolitana criou o projeto Musicar, com apoio do MusiAIRE, programa financiado pela União Europeia para apoiar a indústria da música. "Identificámos que estes alunos tinham dificuldade em conseguir inscrever-se e estudar música. Fomos tentar perceber porque é que isso acontecia e saber se tinha algum cabimento fazermos algo nessa domínio", explica Rui Campos Leitão, musicólogo.
"Chegámos à conclusão que estes alunos têm de ter um tratamento diferenciado, como é evidente, em virtude das suas condições e limitações, mas que o mais proficiente é integrá-los nas turmas com os restantes alunos, fazendo cumprir o quadro curricular", afirma o responsável pela área de novos projectos da Metropolitana.
O caminho está agora a começar, "é preciso fazer um trabalho de sensibilização" para motivar a comunidade, alunos, professores e famílias. Isto é fácil de perceber quando somos confrontados com os números: o Conservatório de Música da Metropolitana foi fundado em 1995, mas em quase 30 anos de existência nunca teve um aluno cego ou surdo. "Este é um problema social, não é um problema da música".
A diretora pedagógica, Sofia Cosme, lembra que mesmo ao longo da sua formação teve apenas uma colega com muito baixa visão, "só via sombras, e isso impressionou-me muito. Mas são casos muito isolados. Esta colega estudou no Conservatório do Porto e, primeiro que alguém a aceitasse, foi um caso sério. Havia muito medo de não saber ensinar, não ter condições para ensinar. Ela teve grandes dificuldades para ser aceite e é uma excelente flautista", conta.
"Quando estamos a falar de diferença cria-se desconforto", concordam os dois responsáveis. No caso dos cegos, por exemplo, o ensino da música é muito assente na mimética. Sofia Cosme, que tem formação em flauta transversal, compreende "o medo": "É preciso corrigir posturas. Antes, o professor tinha de nos tocar. Hoje isso já quase não se faz, já não tocamos nos alunos. Mas, se calhar, vamos ter de tocar num aluno cego ou o aluno vai ter e tocar em nós. Estou a começar pelo mínimo. Numa orquestra, um cego não vê o maestro". Estas são apenas algumas das questões que se colocam, problemas que têm de ser resolvidos. Uma vez mais, "desde que haja vontade".
Pedro também teve de ultrapassar obstáculos. Um deles é que os seus professores do Conservatório Regional de Palmela "não sabem musicografia Braille. Algumas escolas de música acabam por não aceitar estas crianças porque não se sentem preparadas", confirma Dídia Lourenço. "O Pedro foi aceite, mas faz uma aprendizagem oral. Eu tenho algumas noções de Braille, mas não sei música, não o posso ensinar. Posso ajudá-lo na leitura, na escrita, na matemática, que são áreas que domino".
"Imagine que o Pedro queria seguir uma carreira na música, como seria?" Dídia Lourenço conhece casos, como o do pianista Jorge Gonçalves ou Eduarda Azevedo. "Mas tiveram de desbravar caminhos, porque não há partituras, tiveram de mandar vir de Itália e de Espanha". "Há uns anos ficava muito chateada com esta situação, mas tive de relaxar e perceber que ele vai usufruir do prazer da música enquanto quiser. Agora as minhas lutas são outras: para ele ter os apoios de que precisa na escola, para ter os materiais que tem de ter, para ter os livros em Braille a tempo" (que acabou e ir buscar ao Algarve, de uma criança que passou para o 5.º, porque ainda não vieram do ministério).
No caso dos surdos, a questão é ainda mais gritante. Os professores pensam: "Mas como é que vou ensinar música a uma pessoa que não ouve?". "É preciso desmistificar uma série de questões, diz Rui Campos Leitão. "Desde logo porque atualmente uma grande parte das crianças são implantadas [implantes cocleares] e ouvem, embora de maneira diferente. Mas é preciso atender ao enorme interesse que existe junto destas comunidades para se aproximarem da música, há muito potencial".
Por isso a importância da formação. Em Portugal já começa a falar-se em musicografia Braille. "Tivemos uma iniciação, um workshop muito interessante, mas temos de aprofundar", concorda Sofia Cosme.
O projecto Musicar incluiu formação de formadores, entre fevereiro e novembro e 2023, e um universo de cerca de 30 professores tomou contato com esta realidade. Os parceiros foram a Associação Portuguesa de Educação Musical, "que colaborou na angariação de interessados", e, "principalmente, a Associação Bengala Mágica, que tem o projecto Filarmónica enarmonia, uma orquestra dirigida por Rui Magno Pinto, que construiu o projeto connosco".
"Através da Bengala Mágica tivemos acesso a pessoas que estão em contacto directo com esta realidade, já com experiência feita. Convidámos o professor Paulo Cunha, de Faro, com muito anos de ensino a surdos, e convidámos também o coro Mãos Que Cantam, que faz música com língua gestual com orquestra desde 2010. E convidámos outras pessoas com experiência na área para partilharem o que estão a fazer, além de darmos formação aos nossos funcionários", explica o musicólogo da Metropolitana.
A seguir veio uma fase de ateliers de experimentação de ensino de música a estes alunos. "Desafiámos a comunidade junto do Agrupamento de Escolas Quinta de Marrocos, onde há muitos alunos surdos. Fomos bater à porta, apresentámos o projeto e todos ficaram entusiasmados por verem uma instituição mais vocacionada para uma atividade regulada, mais conservadora pela sua natureza, disponível para atender aos cuidados com os quais elas vivem diariamente. A aceitação e colaboração foi espetacular, não partimos do zero, partimos deles", afirma Rui Campos Leitão.
No final, um concerto no Teatro São Luiz, com a participação de um coro composto por cegos e 50 alunos surdos a tocar bombo com a Orquestra Metropolitana. "Foi extraordinário", recorda Rui Campos Leitão. "Convidámos um maestro espanhol cego (Adrian Rincón) e tivemos um pianista cego português (Jorge Gonçalves) que vive em Londres e que tocou o concerto para piano n.º3 de Beethoven com orquestra. Os músicos tiveram oportunidade de se familiarizar com a diferença e perceber que podem ter um maestro cego, um solista cego. Não acontece tudo da mesma maneira - um maestro cego não entra sozinho em palco, um pianista cego teve de decorar todos os compassos -, a máquina tem de ser adaptada, mas acontece".
Financiamento público é insuficiente
Depois de apalpar terreno com os ateliers para cegos e surdos das mais variadas idades, o Conservatório de Música da Metropolitana centra-se agora no seu target, o ensino de crianças. "Neste momento, temos uma criança de sete anos, surda, que teve contato connosco nestas atividades e que é implantada desde bebé, consegue ouvir tudo à sua maneira, e uma aluna com baixa visão, mas que não quer ter ensino Braille porque a cegueira não é degenerativa, vai aprender a ler uma pauta como todos os outros, com a adaptação necessária".
Porquê duas alunas? "Em janeiro começámos a contatar várias entidades privadas para procurar financiamento para oferecer bolsas de estudo", explica o coordenador de novos projectos. É que a Metropolitana é uma associação privada de interesse público sem fins lucrativos, vive das propinas pagas pelos seus alunos.
Para já, a Fundação Millennium BCP financia estas duas bolsas - seria apenas uma, mas como uma aluna dispensa intérprete de língua gestual e a outra musicografia Braille, foi possível acomodar ambas -, "mas temos esperança de conseguir mais patrocínios", adianta Rui Campos Leitão. As propinas custam cerca de 1.400€/1500€ por aluno, dependendo do grau e das necessidades específicas. As duas alunas vão estar inseridas em contexto de aula regular.
Além disso, o Conservatório de Música da Metropolitana está a concorrer a financiamentos públicos "para poder estender o alcance da atividade da escola neste domínio" e "tornar este ensino especial uma prática habitual".
A relação do Conservatório de Música da Metropolitana com o Ministério da Educação é recente. "Estamos em processo", diz a diretora pedagógica. "Apesar de o conservatório funcionar desde 1995, tínhamos planos de estudo próprios, não tínhamos equivalência pedagógica, como tantos outros. Mas desde 2021, o nosso ensino passou a ser reconhecido pelo Ministério da Educação, estamos a aplicar o ensino oficial".
"Sentimos durante algum tempo que os conservatórios estavam um bocadinho estagnados, havia um lado do ensino muito conservador, muito tradicional, que não mudou durante décadas. Abrimos exactamente para trazer alguma coisa de novo em relação ao ensino oficializado, a orquestra era o centro e todas as disciplinas rodavam à sua volta. Ao longo do tempo isso foi acontecendo também nos conservatórios públicos, hoje não há nenhum que não tenha a sua orquestra ou até várias. Estudei flauta no Conservatório Nacional e fiz o curso todo sem tocar uma vez única vez em orquestra", diz Sofia Cosme.
"E começámos a pensar que nesta altura faz mais sentido ter ensino oficial, com reconhecimento público, porque já não há essa diferença que nos fazia sobressair". Por outro lado, se não o fizesse, "os nossos professores não tinham reconhecimento de tempo de trabalho e os nossos alunos não tinham um diploma oficial. Agora sim".
Os dois responsáveis vincam a importância que os conservatórios privados têm tido no ensino especializado da música e o trabalho que têm desenvolvido desde os anos oitenta. "Nunca tivemos tantos bons músicos. Esse trabalho é fruto deste ensino complementar ao qual as famílias aderiram com muito interesse e empenho. O facto de haver muitas escolas de música quer dizer que há muita procura e uma oferta de enorme qualidade. As metodologias de ensino são testadas e consolidadas e a formação é de excelência", garante o musicólogo.
Mais, "há um défice de oferta pública", afirma Sofia Cosme. "Os últimos números mostravam oito ou nove conservatório públicos em todo o país, continente e ilhas. O normal seria dois por cidade. A norma é as crianças terem todas as mesmas oportunidades. Se estivermos a falar de Évora, o conservatório público mais perto é o de Lisboa". Por isso, o Conservatório de Música da Metropolitana recusa-se a "cruzar os braços". "Queremos dizer às famílias que os seus filhos não têm de estar impedidos e limitados no que respeita à aprendizagem de música, que é tão importante para a formação do indivíduo".
Como afirma Dídia Lourenço, "tudo começa na família. Uma família que tem o preconceito de achar que a sua criança é menos porque não tem alguma capacidade - existem muitas além da cegueira e da surdez -, vai, de certa maneira, influenciar a criança e as pessoas que estão à sua volta. Acredito que a forma como as outras pessoas vêem o meu filho é a forma como eu o vejo. E como ele se vê. Como não o diminuo, as outras pessoas também não o fazem".
É por isso que para a mãe de Pedro é fundamental que ele possa estudar numa escola regular - onde as crianças com necessidades específicas têm prioridade. "Há uma coisa onde temos e ser incisivos: não queremos mais para os nossos filhos, queremos o mesmo".
E o mesmo nem sempre é fácil e não é só na música. "Muitas vezes ligo para um museu para saber se o meu filho pode fazer experiências e dizem-me: "Não, mas pode trazê-lo que o bilhete é grátis". Não quero um bilhete grátis, quero que ele possa fazer o mesmo que os outros, possa sentir o mesmo que os outros. Ainda há muito esta ideia do assistencialismo relativamente à deficiência, mas não é isso que queremos, queremos igualdade".
Pedro quer ser engenheiro de robótica. E adora música. Quem sabe se será o próximo Ray Charles ou Rohit Prasad, o coordenador do projecto Alexa na Amazon? Para descobrir é preciso deixá-lo experimentar. A ele e a tantos outros Pedros. E é esse o caminho que o Conservatório de Música da Metropolitana quer trilhar.
Comentários