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Prefácio
1. Há pouco tempo, um alto responsável da Comissão Europeia explicava, perante um fórum nacional algo estupefacto, que o grande objetivo da República Checa é chegar ao fim desta década e passar a ser contribuinte líquido da UE, deixando de depender dos fundos comunitários, passando para o clube dos países ricos. Portugal, ao contrário, apesar de fazer parte da UE há muitos mais anos do que a República Checa e de ter recebido até hoje mais de 120 mil milhões de euros de fundos comunitários, continua longe de qualquer objetivo daquela natureza.
O pensamento que o envolve é o de garantir um novo ciclo de dinheiro europeu, ou seja, ir gerindo o empobrecimento. Seguramente que há significativas diferenças entre os dois países.
Mas o que importa, no caso vertente, é a diferença de atitude. De um lado, a ambição; do outro a acomodação. Num país, uma postura de inconformismo e exigência; noutro, um sinal de facilitismo e contemporização. A República Checa, como se vê, movida por causas ambiciosas e mobilizadoras; Portugal, como todos os dias constatamos, limitando-se a gerir o dia a dia e a fazer navegação à vista.
Este exemplo ajuda muito a perceber a pertinência e o sentido de oportunidade desta obra. Quase 50 anos depois do 25 de Abril, mudámos muito mas podíamos e devíamos ter mudado muito mais; tivemos ciclos relevantes de transformação e mobilização da sociedade, mas desde o início deste século que andamos sistematicamente a baixar de divisão na Europa; a maior e mais preocupante consequência prática deste nivelamento por baixo está nos salários médios de mil euros que este livro cruelmente recorda e que atormenta milhões de portugueses; habituámo-nos, há muitos anos, a fazer apenas o que é urgente e a descurar o que é importante; a preferir a tática à estratégia; o conjuntural ao estrutural; o que é fácil ao que é seguro, sólido e sustentável.
O resultado não é brilhante. E, no entanto, havia e há boas razões para um saldo bem mais positivo: somos um país uno e coeso, credível na Europa e aberto ao mundo; um país habituado a ganhar desafios complexos e difíceis, desde a integração de retornados em 1975 às exigências da Troika em 2014; somos uma sociedade que já mostrou ser capaz de assumir e aplicar um projeto reformista e transformador, como sucedeu no decénio entre 1985 e 1995; somos uma nação que, não sendo pequena e muito menos irrelevante, pode falhar pela falta de qualidade das suas políticas ou dos seus políticos mas não falha no empenho, no compromisso e no espírito mobilizador das suas gentes.
O que nos falta, verdadeiramente, é perceber três questões essenciais: a primeira, é que o problema fulcral e estratégico do país é o seu baixo crescimento económico; a segunda, é que trabalhar para um crescimento bem mais sólido deve ser um tema obrigatório da nossa agenda política e governativa; a terceira, é que sem mudar de objetivos e políticas, nem os salários crescem como deve ser, nem as pensões melhoram como é necessário, nem se criam condições para o reforço do Estado social.
Esta obra é, a este respeito, um sobressalto cívico indispensável e uma importante pedrada no charco. Consumada num estilo coloquial e de diálogo invulgar entre o antigo professor e o ex-aluno, vai ao cerne dos problemas. Não se perde com lateralidades.
É simples sem ser simplista. É ambiciosa sem ser irrealista. É tão necessária quanto urgente.
2. Luís Valadares Tavares e João César das Neves são dois prestigiados senadores da República. Não tanto pelas idades ou pelos cargos que exerceram ou exercem. Mas sobretudo pelo exemplo que têm dado ao longo da vida: o exemplo de competência, experiência, saber, desprendimento do poder e independência intelectual, de análise e opinião. Na academia e fora dela, em trabalhos científicos ou em exercícios de afirmação cívica, um e outro têm feito um inegável serviço público. Ambos se movem por ideias e causas, não tanto por cargos ou funções. Em cada um reconhecemos a marca da exigência e da excelência. O país ganha em saber ouvi-los com atenção e em saber debater as suas questões, com espírito descomplexado e construtivo.
Este livro é, neste quadro de referências, um choque de vida:
- Faz diagnósticos, mas sobretudo tem a coragem de identificar os principais bloqueios a novos caminhos e a diferentes soluções para o país. Pode-se concordar ou discordar. Mas não pode deixar de se reconhecer que é um bom exemplo num país que tem um receio endémico de questionar o politicamente correto.
- Preenche o vazio que é a falta de produção de pensamento devidamente estruturado, que hoje existe muito na nossa sociedade. Afinal, os casos substituíram as causas. Fazer o contrário, como faz este livro, é outro bom exemplo num país que não aprecia trabalhar muito para produzir ideias.
- Cumpre o que a generalidade dos governantes atualmente odeia fazer: a pedagogia do espírito reformista. Infelizmente, em Portugal, nos últimos anos, as mudanças de fundo não se fazem por ações dos governos, antes pela afirmação de um choque externo: é o caso das contas certas e da subida do peso das exportações no PIB.
- Exibe competência, mérito e saber, o que, nos dias que correm, é outro ingrediente não despiciendo. De facto, a qualidade dos decisores políticos tem baixado a um ritmo perigoso. No poder e na oposição. No Governo e no Parlamento. Ora, a verdade é que não há boas decisões políticas com maus decisores políticos.
3. Claro que, como também dizem os autores, a envolvente internacional é especialmente incerta e afeta sempre qualquer projeto de transformação de uma sociedade. A nossa ou qualquer outra.
É verdade. Os riscos da guerra da Ucrânia são diários e grandes, incluindo o risco de uma mudança estrutural forçada no mundo europeu e ocidental, em favor de orçamentos de defesa financeiramente mais robustos, o que complica fortemente a vida dos governos; os riscos de uma nova Guerra Fria e de um mundo de novo tendencialmente bipolar, com duas lideranças claras – a dos EUA e a da China – sem prejuízo de outros atores relevantes, como o Irão, o Brasil ou a Índia; os riscos do regresso a políticas e práticas protecionistas, com o inevitável recuo da globalização, tudo em grande medida incentivado pela guerra comercial entre os EUA e a China, de que a UE é um dano colateral; os riscos da provável necessidade de reinventar a UE, por força do alargamento à Ucrânia, construindo seguramente uma nova arquitetura europeia, gerando provavelmente uma União a várias velocidades e implicando necessariamente uma organização com recursos próprios bem maiores e diferentes dos atuais; os riscos resultantes de uma preocupante degradação da democracia representativa, com o crescimento de forças antissistema, populistas, radicais e extremistas, num tempo em que começa a ser necessário fazer apelo à «coragem de ser moderado».
Tudo isto é verdade e tudo isto são condicionantes sérias. Sem esquecer que não está na nossa mão anular ou reorientar muitas delas.
Resta-nos fazer o nosso trabalho de casa. O que já não é tarefa pequena. Sobretudo se esse trabalho de casa tiver a ambição de mudar profundamente o nosso modelo de desenvolvimento, ousando crescer com robustez, ter salários dignos e ambicionar um Estado social de qualidade. Em especial, se além da ambição, tivermos a coragem de agir, não nos deixando cair na acomodação ou na anestesia.
Este é o mérito do livro e o mérito dos seus autores. O mérito ainda de Nicolau Santos, prestigiado jornalista e atual presidente da RTP, que, através de uma bem estruturada e sintética entrevista aos autores, reforçou as condições para que o leitor possa tirar conclusões ainda mais claras e assertivas. A todos, os meus calorosos cumprimentos.
A Luís Valadares Tavares e a João César das Neves devo ainda juntar um agradecimento final: pelo privilégio que me deram de ficar associado a esta saudável contribuição cívica.
Luís Marques Mendes
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