"Há muito tempo que venho aconselhando a todos um contacto diário e direto com os Evangelhos. Porquê? Porque se não temos um contacto quotidiano com a pessoa amada, dificilmente poderemos amá-la. Não fomos salvos por ideias, mas por uma pessoa, Jesus Cristo. É fundamental alimentar-se com Jesus, alimentar-se de Jesus", escreve o Papa Francisco na introdução da biografia.
"O encontro com Jesus, hoje, como há dois mil anos, é uma questão de coração, de olhares, de comoção que é visceral: está mais na Sua pessoa do que na Sua doutrina", acrescenta.
Por isso, para este encontro através da leitura do capítulo que se segue — e do livro na sua totalidade —, são cruzadas várias fontes no texto, assinaladas de diferente forma para facilitar a compreensão:
- o texto em "caracteres redondos" é o relato de Andrea Tornielli, fruto da sua "imaginação";
- em itálico, "inseridos aqui e ali", versículos extraídos dos Evangelhos, sem referências "para não tornar pesado o fluir do relato";
- os "comentários entre aspas, inseridos no relato com referência nas notas de rodapé, são do Papa Francisco", devidamente identificados no final do capítulo.
Aquela brisa na casa de Nazaré
Ano 6 a.C.
O anúncio a Maria. A decisão de José. A viagem de Isabel.
A cortina de tecido cor de areia que separava o pequeno quarto do resto da casa começou a mexer-se, ondeando. Ela estava sentada num banco baixo ao lado do catre composto de esteiras e a princípio não se apercebeu daquele desconhecido vento ligeiro. Um fio de luz, último fragmento do pôr do Sol, entrava pela minúscula janela desenhando um estranho gatafunho no chão de terra batida. Nazaré não era outra coisa senão um punhado de casebres de tijolo embutidos na rocha sobre uma colina, em frente à planície de Esdrelão, na Galileia, extrema periferia de uma periférica província do Império Romano. Nada que fosse digno de registo, nem sequer na margem de uma página das crónicas daquele tempo. Nada de assinalável no grande radar da história na época da paz do imperador Augusto.
Um instante antes de tudo acontecer, Maria estava absorvida, como que arrebatada por aquele jogo de luz, e parara por momentos de fiar o linho que tinha entre as mãos. Os olhos grandes e muito pretos sobressaíam no seu rosto de menina de quinze anos.
Ao sexto mês, o anjo Gabriel foi enviado por Deus a uma cidade da Galileia chamada Nazaré, a uma virgem desposada com um homem chamado José, da casa de David. O nome da virgem era Maria.
Depois, a tenda mexeu-se mais depressa e a rapariga avistou alguém que a atravessava. Um instante de medo, depois a paz. Era uma figura desconhecida e indefinível, diáfana e ao mesmo tempo luminosa. Ela pressentiu imediatamente que podia fiar-se, ainda que o coração tivesse começado a bater como um louco. O jovem ajoelhou-se diante de Maria que ficou como que envolta naquela brisa de origem incógnita. Pareceu como se o tempo parasse.
Entrando onde ela estava, disse: «Salve, cheia de graça, o Senhor está contigo!». Ela ficou perturbada com estas palavras e pensava que espécie de saudação seria esta. Disse-lhe o anjo: «Não tenhas medo, Maria, pois encontraste graça junto de Deus. Eis que conceberás no ventre e darás à luz um filho, e chamá-lo-ás com o nome de Jesus. Ele será grande, será chamado Filho do Altíssimo e o Senhor Deus lhe dará o trono de David, seu pai; reinará para sempre sobre a casa de Jacob e o Seu reino não terá fim.»
O seu primeiro instinto não foi o de se retrair. Foi o de perguntar para perceber: como seria possível acontecer tudo aquilo? «Não conheço homem.» Sim, havia o José, o carpinteiro seu noivo, mas ainda não viviam debaixo do mesmo teto. Sorrindo, Gabriel respondeu: «O Espírito Santo virá sobre ti e o poder do Altíssimo te envolverá. Por isso, o que é concebido santo será chamado Filho de Deus.»
«Filho de Deus», estas palavras teriam derrubado quem quer que fosse. Não a ela. Respondeu simplesmente que sim. Confiando.
Maria disse, então: «Eis a serva do Senhor, faça-se em mim segundo a tua palavra!» E o anjo partiu de junto dela.
Aquele misterioso mensageiro regressou para de onde viera. E ela depois daquele «sim» ficara sozinha no pequeno quarto agora envolvido na penumbra do anoitecer. Sozinha, com o seu segredo. Sozinha, com as suas perguntas. A joint venture mais importante da história da humanidade tivera início: o Omnipotente condicionara a sua iniciativa ao livre consentimento de uma rapariga do povo de Israel e ela num piscar de olhos aceitara. Agora, porém, um instante depois, desaparecida a luz e o vento, sem a voz tranquilizadora daquela estranha criatura celeste, começava pouco a pouco a dar-se conta do que lhe acontecera. Dissera que sim, mas agora estava com medo. Respondera que sim, mas o seu coração continuava a bater fortemente no silêncio que reinava agora no seu quarto. Sentia-se pequena, inadequada... Mas recebera desde criança o dom de uma Fé de tal modo profunda que surpreendia quem quer que se aproximasse dela e fora essa Fé a fazer brotar o «sim». Procurou lembrar-se de cada palavra do anjo, uma a uma. Dissera-lhe que nada é impossível a Deus e que mesmo uma parente idosa, Isabel, ficara grávida. Mas Isabel, que todos diziam ser estéril, tinha um marido igualmente idoso. Para ela, para Maria, era tudo muito diferente.
«O seu sim [o de Maria] é completo, total, para a vida inteira, sem condições. E do mesmo modo que o não das origens tinha impedido a passagem do homem rumo a Deus, assim o sim de Maria abriu o caminho a Deus no meio de nós. É o sim mais importante da história, o sim humilde que inverte o não soberbo das origens, o sim fiel que cura a desobediência, o sim disponível que aniquila o egoísmo do pecado.»1
O tempo retomou o seu curso na pequena casa de Nazaré construída em parte de tijolos e em parte escavada na rocha, enquanto o infinito se encarnava no seio daquela rapariga. Maria conservava o segredo no seu coração. Como o explicaria ao seu noivo? Como poderia enfrentar os olhares indiscretos e o preconceito da gente da sua aldeia?
Se a sua primeira resposta fora um «sim» livre e incondicional, a sua primeira iniciativa, depois daquele anúncio do outro mundo, foi pôr-se imediatamente ao serviço. Deixou Nazaré para ir assistir Isabel a Ein Kerem, a antiga aldeia às portas de Jerusalém. Partiu apressadamente.
«É sempre o Senhor quem oferece a verdadeira liberdade... [A] liberdade de se entregar e de o fazer com alegria, como a Virgem de Nazaré, que é livre de si mesma, não se fecha na sua condição — e teria motivo para tal! — mas pensa em quem naquele momento está em maior necessidade. É livre na liberdade de Deus, que se realiza no amor. Esta é a liberdade que Deus nos concedeu, e nós não podemos perdê-la.»2
A parente idosa, agora prestes a tornar-se mãe de João Batista, cheia de espanto e alegria por aquela visita inesperada, viu-a chegar ao longe. Quando se abraçaram, enquanto a criança dentro de si se sobressaltava, Isabel inspirada saudou-a assim: «Bendita és tu entre as mulheres, e bendito o fruto do teu ventre!». Isabel sabia... Maria respondeu: «A minha alma engrandece o Senhor e o meu espírito exultou em Deus, meu Salvador, porque pôs o olhar na humildade da sua serva.»
Maria permaneceu com ela, ajudando-a nas tarefas domésticas. Uma gravidez implica muitas transformações no corpo e na vida quotidiana de uma mulher, mas se chega numa idade madura, tudo pode tornar-se mais difícil, não obstante a alegria do dom já inesperado. Em seguida, depois de ter ficado em casa de Isabel para a ajudar durante cerca de três meses, regressou a Nazaré. Agora era a sua gravidez que progredia a olhos vistos. Agora era ela que precisava de alguma ajuda. Era agora impossível esconder o que lhe acontecera, aquela criatura que lhe crescia no ventre. Aquela criança que estava a formar-se nas suas entranhas era o sinal tangível do milagre anunciado pelo anjo. Agora, no entanto, já não podia esconder o que lhe acontecera ao homem com quem decidira partilhar a vida. Disse-lhe que estava grávida. Procurou as palavras certas para partilhar com ele o imprevisto e inaudito anúncio que recebera.
José, seu esposo, que era justo e não queria difamá-la, quis repudiá-la secretamente.
Quantas preocupações, quantas perguntas, quantas horas atravessadas pela angústia. Porque é que isto estava a acontecer-lhe logo a ele? Que emaranhamento de sentimentos contraditórios no coração deste homem robusto, com calos nas mãos e cabelos encaracolados pretíssimos que lhe emolduravam a cara confundindo-se com a barba. Chamado a ser pai sem o ser, servindo no silêncio. Maria, a sua Maria, estava à espera de um filho. E não era também seu filho. Ouvira-a, apercebera-se no seu olhar límpido e profundo a luz da verdade. Mas como podia acreditar nela até ao fim? E ainda assim, o amor autêntico e sincero que sentia por aquela rapariga prevaleceu sobre a Lei e sobre as tradições consolidadas. Não, o carpinteiro acostumado a trabalhar duramente a pedra e a madeira, habituado a montar ombreiras e portas, não a acusaria publicamente repudiando-a. Não a rejeitaria deixando-a só com uma criança a enfrentar os rumores da gente da aldeia. Não anularia a sua união para ser tão livre que poderia tomar como esposa outra rapariga. Tê-la-ia repudiado, sim, mas apenas em segredo, entre as paredes da sua casa em Nazaré. Aquela casa que ele arranjara com tanta habilidade e paixão para a nova família. Os outros, todos os outros, não deveriam saber. Ele acolheria e criaria aquele filho como se fosse seu... Não foram dias fáceis para José, homem prático, habituado a observar muito e a falar pouco. Um homem com um coração grande.
E, tendo assim pensado, eis que um anjo do Senhor lhe apareceu num sonho, dizendo: «José, filho de David, não tenhas medo de receber Maria, tua mulher, pois o que nela foi gerado provém do Espírito Santo. Dará à luz um filho, e chamá-lo-ás com o nome de Jesus, pois Ele salvará o Seu povo dos seus pecados.»
O que a Maria fora revelado pelo anjo envolto naquela brisa desconhecida, a José foi revelado num sonho, enquanto repousava na oficina, esgotado, durante uma tarde ensolarada de verão. Trabalhava em Séforis, a grande cidade que estava a ser construída a apenas seis quilómetros de Nazaré. Teria bastado aquele sonho, do qual acordara perturbado e encharcado em suor, para o convencer? Era uma missão incomensurável. Cuidar de sua mulher tornada mãe do Messias e velar pelos primeiros passos do Filho de Deus.
José conhecia as Escrituras e era humilde, como a sua mulher. Decidiu acreditar, confiando-se. Também a sua foi uma resposta livre. Depois do livre «sim» de Maria, veio o do seu marido. A sua liberdade cruzava a liberdade de Deus que derruba os poderosos de seus tronos e exalta os humildes. Aquele anúncio vinha do Céu. Um jovem casal de noivos, sozinhos com um segredo inimaginável, emprestava o próprio coração e o próprio corpo para que se realizasse a mudança mais radical e decisiva para a história da humanidade. Obedeceria, José, chamando àquele filho Yeshu’a, «Jesus». Tal como lhe pedira o anjo em sonhos.
«A humildade é a regra de ouro, para um cristão progredir quer dizer abaixar-se... No momento do anúncio também Maria se abaixa: não percebe bem, mas é livre: percebe apenas o essencial. E diz que sim... Abandona a sua alma à vontade de Deus. E José, seu noivo – ainda não eram casados – também ele se abaixa e toma sobre si próprio esta responsabilidade tão grande. É justamente o estilo de Maria e José a revelar que todo o amor de Deus, para chegar a nós, toma o caminho da humildade. Deus humilde que quis caminhar com o Seu povo.»3
«Maria, que no seu cântico não diz estar contente porque Deus pôs os olhos na sua virgindade, na sua bondade, na sua doçura, nas tantas virtudes que ela tinha, mas exulta porque o Senhor pôs os olhos na humildade da sua serva, na sua pequenez.»4
Sozinhos, mas já não sós, Maria e José viveram os meses que faltavam até ao parto. Ele cuidou dela e ela dele. Até que uma notícia, um edital do imperador, eco da grande história destinado a intersetar uma história periférica e aparentemente insignificante, lhes chegasse na pequena Nazaré. E os constrangesse a pôr-se a caminho.
1 Angelus, 8 de dezembro de 2016.
2 Homilia da Missa no ex-Estádio Romagnoli, Campobasso, 5 de julho de 2014.
3 Homilia da Missa de Santa Marta, 8 de abril de 2013.
4 Homilia da Missa de Santa Marta, 24 de março de 2014.
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