CAPÍTULO I

Aos 46 anos, o Daniel Vinton entrava na velhice prematura do correspondente de guerra: demasiado velho para voltar do trabalho sujo de lama, demasiado insolente para fazer carreira nos escritórios e demasiado cínico para escrever um romance sobre segundas oportunidades. Saía de um segundo divórcio e tinha sido despedido do Times. Já só viajava para países sem inverno, onde se refugiava em hotéis em que o serviço de quartos repunha o minibar duas vezes por dia. Havia três anos que não pisava a linha da frente. No entanto, apoiado na varanda do bar Bamboo, com o olhar perdido no entardecer púrpura de Rangum, continuava a transmitir a elegante indiferença de um homem na mó de cima.

Sobre os feitos e a queda em desgraça do Vinton, contavam-se as mais extraordinárias histórias. Dizia-se que cruzou o deserto do Kuwait num camelo dopado com pastilhas de ecstasy, que passou três meses presos em Teerão por se envolver com uma empregada de mesa do Olympic e que evitou que lhe destruíssem uma notícia exclusiva atirando para a piscina do Hilton de Jacarta as câmaras de uma equipa da CNN. Saber o que era real e o que era inventado nestes relatos era difícil: as fontes eram outros correspondentes habituados a exagerar as suas próprias aventuras, os riscos que corriam em cada uma delas e os gastos que mandavam para a Contabilidade. Quando lhe perguntavam pelos rumores que circulavam à sua volta, o Vinton respondia com um «não foi bem assim», que uns lhe atribuíam à humildade e outros à soberba. A maioria negava-se a dar o benefício da dúvida à modéstia de uma pessoa que se considerou durante décadas o melhor repórter da sua geração.

Estava a observá-lo à distância havia algum tempo quando vi que levantou o copo vazio e o mostrou ao empregado de balcão para que lhe servisse mais uma dose. Queria aproximar-me e cumprimentá-lo, embora não soubesse se o deveria fazer, porque nada ofusca o mito como a proximidade de uma conversa junto ao balcão de um bar. Porém, ao fim de alguns segundos, convenci-me de que era uma boa oportunidade: encaminhei-me para junto dele enquanto praticava mentalmente os gestos e as palavras com que dissimularia a minha condição de novato. Não tinha nenhuma batalha para partilhar. Acabava de fazer 26 anos e tinha chegado à Birmânia para a minha primeira grande cobertura internacional com as ambições que os jovens repórteres enfeitam das mais nobres intenções.

— Miguel Bravo — apresentei-me. — É um enorme…

O Vinton deixou-me a mão pendurada no ar durante uns instantes incómodos e, quando a apertou, relanceou para o meu disfarce de jornalista de cima a baixo: colete multibolsos, sapatos desgastados, uma Nikon D80 por estrear pendurada ao ombro.

— Diplomata ou enviado especial? — perguntou com ironia.

— Estou a trabalhar para o El Universal.

— Pensava que já não davam vistos.

— Consegui-o em Banguecoque. Alguém me devia um favor.

— Quanto?

— Quanto? — perguntei.

— O suborno. Quanto te custou?

— Duzentos dólares…

O meu tom procurava a aprovação do Vinton quando o empregado de balcão, um birmanês com um rosto ameninado e um sorriso aberto, lhe entregou outro copo baixo.

— Vocês são novos e andam a pagar demasiado. Cada vez é mais caro subornar esses vadios da embaixada. Deviam colocar os preços no guiché.

O terraço do Bamboo oferecia as melhores vistas da Revolução Açafrão. Ao longe, distinguíamos os cargueiros atracados no cais, a silhueta dourada do pagode de Shwedagon e a multidão que se perdia entre as ruelas com bandeiras, faixas e ânsias de liberdade. O murmúrio de milhares de vozes subversivas chegava até nós.

— Fazem o mesmo percurso todos os dias — explicou o Vinton a olhar para a rua do parapeito.

— Chegam ao pagode de Sule e ficam parados à frente das barricadas dos soldados. Rezam, esperam que anoiteça e voltam para casa.

— São uns rebeldes muito educados.

— Poderá vir outra monção e continuarão ali.

— Achas que podem vencer?

O Vinton terminou o novo bourbon de um trago, atirou os cubos do gelo por cima do parapeito e olhou-me com a fastidiosa condescendência do professor que já ouviu a mesma pergunta mil vezes. Depois, ao abrir completamente os olhos pela primeira vez, disse-me algo que haveria de recordar para o resto da vida:

— Receio que tenhas vindo para a revolução errada, Miguel Bravo. Mas parece-me que já é tarde para voltares atrás, não achas?

Ainda hoje, muitos anos depois do nosso primeiro encontro, fico surpreendido por nos termos tornado amigos.

Eu era um jovem repórter com as ilusões intactas, convencido de que tinha escolhido um emprego com o qual ajudaria a mudar o mundo; o Daniel Vinton flutuava placidamente na fase descendente da profissão, à espera de tocar no chão, e contemplava a vida a partir da altivez cínica de um veterano. Tínhamo-nos cruzado na mesma estrada em sentidos opostos. Nenhum dos dois imaginava a maneira como as nossas convicções iriam ser postas à prova nos dias que se seguiriam ou como os nossos destinos se viriam a unir no país que o Vinton me descreveu certa vez como «o mais belo e mais triste já inventado». Um país onde jamais teria posto os pés, se pudesse voltar atrás no tempo, àquela monção de 2007.

O Bamboo fora renovado naquele ano e a intenção era conferir-lhe o ambiente boémio dos clubes de correspondentes. O interior estava decorado com móveis que vinham velhos de fábrica, cadeiras de vime com costas largas e fotografias das guerras da Indochina que eram vendidas aos turistas por vinte dólares. Gecos em tons de cinzento esperavam, imóveis no teto, que os mosquitos se pusessem a jeito. Ventoinhas com grandes pás de madeira ofereciam alívio nos dias sem brisa. O terraço, que ocupava toda a cobertura do hotel Traders, tinha um pequeno palco, várias mesas iluminadas por lâmpadas orientais e dois balcões — um interior em formato circular e outro menor no exterior — e o serviço era garantido por empregados que usavam casacas birmanesas e páreos aos quadrados.

Ao cair da tarde, os clientes desfrutavam da happy hour de negroni enquanto o bulício da rua se dissipava lentamente, os Birmaneses regressavam a casa, embrulhados com elegância em sarongues, e os cânticos melódicos dos monges envolviam a esplanada vindos de templos próximos. Se o mundo ardesse à nossa volta, não conseguiríamos escolher um lugar melhor para contemplar o nosso final.

Segui o Vinton até à mesa onde vários jornalistas acolhiam a última novidade de Rangum, a consulesa sueca Hanna Olme. Era uma mulher atraente que rondava os 40 anos e falava inglês sem o sotaque dos nórdicos. Estava, havia dois meses, num cargo em que o trabalho mais entusiasmante consistia em substituir passaportes extraviados pelos turistas, num daqueles destinos do Sudeste Asiático que os diplomatas conheciam como Triplo P: pagodes, praias e prostitutas. A Olme estava com sorte: o fragor da revolta oferecia aliciantes adicionais, incluindo a incorporação na delegação europeia que negociava uma saída da crise com os generais birmaneses.

Quando chegámos à mesa, o velho Peter Gibbs, enviado especial do The Guardian, tentava impressioná-la e falava com grandiloquência da entrevista que fizera a um dos monges que lideravam os protestos.

— Lembro-me perfeitamente que, em 88, durante os protestos estudantis…

— Oh, vá lá, Peter — interrompeu o Vinton quando nos sentávamos. — Todos sabemos que estiveste aqui, que os soldados te perseguiram e que te atiraste ao lago Inya para escapar a uma morte certa. De quantas é que já escapaste? Conta-nos.

— Já tínhamos saudades tuas, Daniel — disse o Gibbs, deixando escapar um suspiro. Com 73 anos, era o mais veterano dos repórteres que se poderia encontrar perto da ação.

— Os generais aceitam convocar eleições livres se nós decidirmos ir para casa — anunciou a diplomata. — O acordo está iminente.

— Estão com sorte, estes selvagens, não estão? — O Vinton cravou o olhar na Olme. — O mundo civilizado a vir em auxílio dos Birmaneses.

— O senhor não acha que devemos ajudar no que pudermos?

— A questão é se podem.

— O acordo evitará um banho de sangue.

— Os militares não cumpriram um acordo em 40 anos e não vão fazê-lo agora. Ficam com as mansões de Mandalay em perigo e pouco contentes quando lhes interrompem os jogos de golfe aos domingos. Isto são fogos de artifício.

— O mundo mudou, Sr. Vinton. — A voz da diplomata adquiriu um tom de segurança forçada. — Não podem levar os tanques para a rua impunemente. Não se atreveriam a fazê-lo.

É Desta Que Leio Isto: Ela tinha o dever de deslumbrar. Em maio, Filipa Martins traz-nos a biografia de Natália Correia

Filipa Martins junta-se ao É Desta Que Leio Isto no próximo encontro, marcado para dia 25 de maio, pelas 21h.

O livro escolhido para leitura é "O Dever de Deslumbrar. Biografia de Natália Correia", que chegou às livrarias a 16 de março, dia em que se cumpriram 30 anos sobre a morte da poetisa.

Esta obra mostra Natália Correia como símbolo das inquietações do século XX português e uma mulher "precoce e radical no pensamento feminino, vítima de efabulações e de mitos, incompreendida e amada".

Finalista dos Prémios Sophia, da Academia Portuguesa de Cinema, Filipa Martins dedicou-se – nos últimos seis anos – a estudar a vida e a obra de Natália Correia, tendo sido coautora de um documentário e coargumentista de uma série de televisão sobre esta escritora açoriana.

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O Ray Maloney, enviado da Fox News, disse estar «muito de acordo» com a consulesa. O Maloney nunca estava só de acordo ou contra algo. Antecedia as opiniões que dava com um muuuuuito alongado até ter a certeza de que tinha captado a atenção dos interlocutores. Apresentou as notícias das seis a partir dos estúdios de Nova Iorque antes de ser substituído por uma «loira com as mamas da Dolly Parton». Reinventou-se como repórter estrela da cadeia sem abandonar de todo a ribalta. Ninguém se lembrava de alguma vez o ter visto despenteado, mas também ninguém se recordava de o ter visto na linha da frente. Chamavam-lhe o Príncipe.

— O general não se atreverá a disparar contra monges desarmados — afirmou o Maloney. — Aqui são como deuses. Seria como se o Exército italiano assaltasse o Vaticano.

E, admirado por se ter lembrado desta frase de efeito, repetiu-a a olhar para a Nicole Maza, a repórter francesa do Libération que estava sentada ao lado dele.

— Como se o Exército italiano assaltasse o Vaticano.

A Maza ignorou-o e procurou a opinião da Olme com o olhar.

— Há sanções — afirmou a consulesa. — E vocês, com as vossas câmaras como testemunhas. Insisto: o mundo mudou. A comunidade internacional nunca toleraria a utilização de violência contra inocentes.

— Budistas! — repetiu o Príncipe. — Não vão disparar contra monges budistas.

— E tu, Miguel Bravo, o que achas? — intimou-me o Vinton.

Até então, tinha permanecido confortavelmente em segundo plano. Não conhecia o país e as probabilidades de dizer algo estúpido eram altas. No entanto, o silêncio far-me-ia parecer ainda mais idiota. Engoli em seco:

— Eu… isto… penso que não se vão atrever a disparar contra os seus. Não parecem uma ameaça significativa.

— Receio que esteja em minoria — disse a Olme, virando-se para o Vinton. — Temos contactos com o regime desde há dois anos. Sabem que têm de se abrir ao mundo ou enfrentarão um isolamento total.

— Já estão isolados. O general Than Shwe vive num palácio-bunker no meio da floresta e tem uma pitonisa anã que lhe sussurra as decisões que tem de tomar ao ouvido.

— Só a ouve a ela — acrescentou o Peter Gibbs, deixando de lamber as próprias feridas por causa da interrupção do Vinton.

— Quem é essa pitonisa? — perguntei.

— A Nai Nai. Tem categoria de ministra. É pequena como um pigmeu, tem dentes de ratazana e orelhas pontiagudas. É feia como o demónio. O The New Light publicou uma fotografia dos dois juntos. Que grande par! Aposto que a fode, nem que seja só por uma espécie de fascínio mórbido.

— Nos teus sonhos, Gibbs — disse a Nicole Maza.

O inglês contou que Than Shwe não tomava nenhuma decisão sem consultar a vidente e que foi a Nai Nai que recomendou a transferência da capital, Rangum, para um lugar afastado no meio da floresta. Os Birmaneses só souberam da existência de Nepiedó, a Cidade dos Reis, no dia em que foi inaugurada, depois de ter sido erigida, durante anos, em segredo por milhares de escravos. O líder supremo passou a dirigir o país a partir do palácio no sopé das montanhas de Pegu Yoma, num complexo de um único andar com trinta e cinco mil metros quadrados e jardins que se estendiam por um terreno com dimensão equivalente a cem campos de futebol, com um lago artificial e estábulos para cinquenta e três elefantes. Um deles, o Bo Bo, era o único espécime branco em cativeiro e o animal de estimação particular do general. Os antigos reis de Bagan consideravam os elefantes brancos as penúltimas reencarnações do Buda Gautama antes de ter nascido na Índia: ter um protegia-os de invasões, rebeliões e traições palacianas. O Bo Bo, que já tinha mais de 50 anos, estava velho e doente. O Gibbs assegurou que o general estava preocupado e que a pitonisa guiava telepaticamente as milícias enviadas em busca de outro animal de boa sorte.

— Cinco batalhões rastreiam há vários meses as florestas de Arakan e Magwe. Estão proibidos de regressar até o encontrar. Mas nada, o animal não aparece.

— Fontes? — a Maza mostrou-se cética.

— Claro, vou partilhá-las contigo agora mesmo. E queres que te pague a conta do hotel também, Nicole? A vidente é como o Yoda, o mestre da Guerra das Estrelas — acrescentou o Gibbs. — Estou a dizer-vos que a fode. E depois dão passeios românticos a cavalo no elefante albino. Não é um país maravilhoso?

— Asseguro-lhes que as vossas histórias são muito mais interessantes do que as minhas reuniões — disse a consulesa. — Nada lhes deve parecer mais aborrecido do que um acordo diplomático que evite a violência.

— Está a insinuar que desejamos que haja derramamento de sangue?

O Vinton levantou-se e deixou uma nota de vinte dólares em cima da mesa.

— Não quis…

— Tem razão. Todos nós a esta mesa desejamos que a sua missão diplomática fracasse. Compreenda-nos, vivemos de notícias, sobretudo se forem más. Poderia dizer-se que… estamos em lados opostos.

O americano afastou-se em direção à saída sem esperar uma resposta e a conversa emudeceu, como se ele tivesse levado a importância do que se pudesse dizer quando não estivesse presente. A Olme, contrariada, quebrou o silêncio com uma desculpa.

— Disse algo inconveniente?

— Bah, é o Vinton. — O Maloney deu a entender que éramos todos cúmplices de algum segredo inconfessável sobre o carácter do Vinton. — Não se preocupe demasiado com ele.

A queda em desgraça do Daniel Vinton era o mexerico preferido dos bares de correspondentes naqueles dias. O Gibbs arrogou-se conhecimentos na matéria e contou que o Vinton tinha iniciado a carreira no The Boston Globe, a cobrir crimes, acidentes e tribunais até ser escolhido para substituir o correspondente do jornal na Alemanha. O Norman Reeley tinha pagado um cruzeiro com a família e não estava disposto a perdê-lo. Os húngaros, checos e polacos tinhamlançado a primavera comunista, mas o Reeley pensou que o movimento não seria suficiente e que Moscovo jamais permitira a queda do muro de Berlim. Deixou o Vinton a substituí-lo duas semanas e, enquanto atravessava o Báltico com a mulher e as três filhas, o mundo mudou para sempre. O jovem substituto fez a cobertura de uma vida, narrou o final da Guerra Fria e ganhou o primeiro de dois Pulitzer, no início de uma carreira fulgurante. O último artigo que escreveu antes de deixar a Alemanha intitulava-se «A festa do general Hoffman». Nunca se soube como é que conseguiu introduzir-se na celebração privada de um alto-comando do Exército Vermelho, que, em vez de se ir embora a correr, organizou uma festa regada a vodca na qual chorou a derrota sobre os seios nus de prostitutas recrutadas no Storchenbar. «Quando amanheceu, os oficiais, aturdidos pela ressaca, despertaram transformados em fervorosos capitalistas», escreveu o Vinton.

O Los Angeles Times contratou-o pouco depois e o Vinton consagrou-se como enviado especial na primeira guerra do Golfo, no cerco de Sarajevo e no genocídio no Ruanda, conflito que haveria de o marcar para sempre. Naquela altura, o sucesso do Vinton começava a irritar os War Dogs, o grupo de veteranos com galões que coincidiam nos grandes conflitos, distribuíam carteiras de jornalistas e acreditavam merecer os prémios Nobel da Paz e da Literatura ao mesmo tempo. A frase «não é tão bom como o pintam» começou a circular em referência ao Vinton sem que se apercebessem de que, ao pronunciá-la, admitiam o surgimento de um rival extraordinário.

O Vinton não lhes prestou vassalagem, como se esperava dos recém-chegados. Viajava sozinho, pedia que lhe enviassem bilhetes apenas de ida, para evitar regressos prematuros, e usava apenas uma mala. Sempre a mesma bagagem: quatro camisas, duas azuis e duas brancas; umas calças de ganga e umas calças chino; um par de ténis; e sapatos clássicos e um blazer, para os funerais e as entrevistas aborrecidas. Evitava os hotéis de repórteres e limitava ao mínimo o contacto com os colegas. A mistura de individualismo e olfato — tinha a mania de estar sempre no sítio certo — era desesperante, embora não tanto como o talento para a escrita. Descrevia a ação com um estilo simples e profundo que, quando era imitado pelos rivais, saía vulgar e maçador. Uma primeira frase direta ao estômago. Nem uma palavra a mais. Textos que fluíam e convidavam a uma leitura até ao final, porque cada parágrafo antecipava que o seguinte seria ainda melhor. Nem no início da carreira, altura em que um jornalista escreve para mostrar que sabe escrever, caiu no sentimentalismo ou sucumbiu à tentação dos adjetivos, que dizia serem «borbulhas no cu de repórteres preguiçosos». A maré durou duas décadas, até ao que o Peter Gibbs descreveu como «o incidente».

O Daniel Vinton ia infiltrado com fuzileiros do terceiro batalhão do nono regimento Kodiak, na província afegã de Helmand, quando uma mina deflagrou ao passar da comitiva. Depois da explosão, chegou o fogo indiscriminado vindo das colinas. Vários fuzileiros jaziam mortos e o fixer do Vinton, um dos jornalistas locais que traduzem, untam as mãos dos contactos e, muitas vezes, fazem o trabalho sujo para os correspondentes, ficou gravemente ferido.

— Aqueles selvagens desciam a vertente do monte como índios num filme do faroeste — contou o Gibbs, que tinha estado no Afeganistão na mesma altura. — Só lhes restava um veículo operacional e tinham de sair de lá ou os mujahedines degolá-los-iam como frangos. O Daniel estava com o tradutor, Ahmad, creio que era assim que se chamava. Ao ver que estava ferido e não se conseguia mexer, abandonou-o e foi a correr até um humvee. Saíram do local à pressa. E nunca mais se soube nada do tradutor.

— É horroroso — disse a consulesa. — Admiro o trabalho dele.

— Espero que esse tradutor tenha batido a bota depressa — respondeu o Maloney. — Aos afegãos que trabalhavam para as tropas estrangeiras cortavam-lhes os tomates, metiam-lhos nas bocas e deixavam-nos a sangrar durante dias pendurados numa árvore — o Príncipe falava com a autoridade de quem nunca ouviu os tiros de perto. — Não deixar nenhum homem para trás serve para os fuzileiros, mas também para os intérpretes que trabalham connosco, não?

— O que é que tu terias feito, Ray? — perguntou a Nicole Maza a fulminá-lo com o olhar.

A francesa era uma mulher baixinha que não fazia o mínimo esforço por se mostrar agradável, embora os olhos grandes e azuis, a doçura das feições, um sotaque francês suave e gestos involuntariamente sedutores a traíssem. Baixinha e com seios grandes, não se maquilhava nem se adornava com joias. Tinha o cabelo rapado. Vestia calças cargo com quatro bolsos, camisola de alças e botas pretas. O lendário desinteresse que tinha pelos outros correspondentes, que perdiam todas as apostas sobre quem a levaria para a cama, tornava-a antipaticamente irresistível aos olhos dos War Dogs.

— Sabes que há outras versões da história — insistiu a Maza. — Porque é que não contas essa história quando o Daniel estiver à tua frente para se poder defender?

— Não o censuro. Todos teríamos feito o mesmo. Ele chegou até a justificar a fuga. Não me lembro de onde… disse que era… uma daquelas situações com que os alpinistas que escalam o Evereste se deparam. Estás quase a chegar ao topo e o teu colega, exausto e doente, não consegue continuar. O que fazes? Já não tens força para o ajudar nem para o carregar. Tentas salvá-lo e colocas a tua vida em risco ao mesmo tempo que renuncias ao teu sonho de chegar lá acima? Gastas as tuas últimas energias numa possibilidade num milhão de tirá-lo de lá e arriscas-te a morrer com ele? Ou continuas em frente? O Vinton seguiu em frente. Eu teria feito o mesmo. Todos teríamos feito o mesmo.

Livro: "O Correspondente"

Autor: David Jiménez

Editora: Minotauro

Data de Lançamento: 18 de maio

Preço: € 21,90

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Embora «o incidente» fosse contado de mil maneiras, todas incluíam a ideia de que o Vinton tinha tido alguma responsabilidade na morte do tradutor. Nunca rebateu as versões mais negativas do que acontecera e deixou que os boatos se propagassem num mundo mais pequeno do que o que imaginava. Os mesmos chefes que o contrataram para o Los Angeles Times, jornalistas reconvertidos em relações públicas, recearam o golpe para a imagem do jornal e abriram uma investigação. Eximiram-no de responsabilidades e apunhalaram-no ao mesmo tempo num relatório final que concluía:

Testemunhas no local dos acontecimentos confirmam que o intérprete Ahmad Zahir estava vivo quando o último veículo abandonou a zona com o empregado do Los Angeles Times e o resto dos sobreviventes. Não é possível determinar neste momento se outra tomada de decisão por parte do Sr. Vinton teria produzido um desenlace diferente.

Pouco depois, chegou um plano de demissões voluntárias ao jornal e o Vinton pôs o seu nome no primeiro lugar da lista. Ou acrescentaram-no.

Também se contavam versões diferentes sobre as circunstâncias da saída do jornal. O despedimento do Times pode ter sido um contratempo, mas ninguém sustém as redes das pessoas que sobem e caem de acordo com as suas próprias regras. Se lhe restasse algum amigo, nenhum deles era jornalista. Sempre tratou os editores com desdém, humilhou os chefes intermédios, que ficavam ressentidos pela condição de intocável que o repórter tinha, e julgou o trabalho dos colegas com a malícia característica dos corredores de uma escola secundária. Quando premiaram o enviado do Washington Post, Mark Mcgullan, com um Pulitzer pela cobertura que fez dos acontecimentos no Ruanda, disse que o merecia: «Ninguém fugiu de uma notícia mais depressa do que ele nem com as calças mais manchadas.»

Também não ajudou ser um dos mais bem pagos da profissão e a fama de ser um falsificador de faturas em série, uma acusação de que sempre se defendeu. Claro que as engordava: era o bónus pelos riscos que corria enquanto os diretores do jornal aqueciam o cu em escritórios e lugares reservados em restaurantes. O Vinton voava em executiva e manipulava os recibos para que na Contabilidade acreditassem que o fazia em económica; apresentava gastos de pequenos-almoços que mais pareciam jantares no Grand Central; deixava o pessoal dos hotéis onde se hospedava deslumbrado com as gorjetas que oferecia em troca de um tratamento de favor e acrescentava a generosidade à conta do jornal. Chegou a incluir como reunião com fontes da oposição venezuelana uma noite de álcool e meninas no Panteão de Caracas. «Imprevistos», colocou na fatura. Os chefes toleravam-no porque, juntamente com as faturas, enviava três notícias em primeira mão, duas entrevistas exclusivas e uma reportagem de domingo que o jornal vendia a publicações de quarenta países. Sabiam que os estava a enganar, mas parecia-lhes uma troca justa.

Foi-se embora do jornal sem se despedir de ninguém, convencido de que seria disputado pelos grandes jornais nacionais. Ninguém lhe telefonou. Ofereceram-lhe um lugar na NBC, mas ele dizia que a televisão não fazia jornalismo e que, para entreter, preferia o circo. Acabou por aceitar trabalhos em regime de freelance para publicações menores que viram a oportunidade de contar com uma assinatura reconhecida a preço de saldo. «Algo temporário», disse-se. Tratou-se de um erro de cálculo, porque o êxito é uma perceção que os outros têm de nós e aquele movimento mudou a forma como o Vinton era visto na profissão. Na idade em que um assalariado ascende a gerente e um banqueiro cobra o bónus para a penthouse, o repórter começa a ser um empecilho. Pode alongar a vida útil se estiver disposto a continuar a arriscar o coiro em guerras que não interessam a ninguém e a fazê-lo, ainda por cima, a competir com jovens que ainda não sabem que não interessam a ninguém. O Vinton não estava disposto a isso. Chegou àquele que, na profissão, era conhecido como o momento Hemingway: um dia acordamos num lugar onde ninguém quereria estar, olhamos para o espelho e ele devolve-nos não só a recordação do que fomos, mas também do que não voltaremos a ser. Dizemos a nós próprios que, pelo menos, podemos cobrar o favor que o mundo nos deve depois de passarmos anos a contar as merdas que nele se passam. E é então que descobrimos que, do outro lado desse balcão, não há ninguém.

O grande correspondente passou a escrever para jornais locais da costa oeste, a passear o desencanto por coberturas destinadas a páginas interiores e a silenciar no álcool o segredo inconfessável do repórter de guerra de meia-idade. Desde a emboscada no Afeganistão e da morte de Ahmad, ficou com medo da linha da frente.

Pelo menos era o que diziam do Daniel Vinton.