PARTE UM

PRISIONEIRO 26336

I

MILAGRE EM DACHAU

— Block Vier, Stillgestanden! Mützen... ab!

Quando a ordem ecoou pela enorme Appelplatz, quinhentos homens tiraram os bonés da cabeça e puseram-se em sentido. Era uma manhã fria e húmida em abril de 1941, no campo de concentração de Dachau. Um vento forte, elevando-se das margens do rio Amper, soprava através das turfeiras sombrias. O vento uivava nas janelas dos compridos barracões de madeira e fustigava impiedosamente os prisioneiros alinhados na parada. Estavam ali desde as quatro horas da manhã. Voltados para as metralhadoras nas torres de vigia, continuavam a tremer nos seus grosseiros uniformes de riscas azuis estampados com estrelas amarelas, vermelhas ou verdes. As estrelas indicavam que os homens eram prisioneiros do «bloco judeu» do Campo Número Três. Alguns dos prisioneiros, esqueléticos, de pele acinzentada, mal se aguentavam em pé. Os seus rostos macilentos não exibiam qualquer expressão; eram os mortos-vivos, os «muselmans», cuja esperança de vida podia ser calculada em dias, talvez horas. Se não sucumbissem ao desgaste do trabalho, provavelmente teriam a base do crânio despedaçada por uma bala disparada à queima-roupa. Depois os guardas das SS anotavam no registo do bloco «Auf der Flucht erschossen» (morto a tiro quando tentava fugir). O próprio Hermann Goering estabelecera a regra quando os nazis assumiram o poder em 1933. «Atirem primeiro», dissera ele à Gestapo, «e perguntem depois e, se cometerem erros, eu defender-vos ei.»

Os guardas das SS não gostavam de matar a tiro os seus prisioneiros. Uma bala custava três pfennig, explicavam eles aos seus cativos judeus, e esse era obviamente um preço demasiado elevado pela vida de um «Dreck Jude» (lixo judeu). Geralmente, portanto, eles recorriam a métodos menos dispendiosos para assassinar os seus prisioneiros, como o que usaram para se livrarem do pobre Schwartz, o advogado vienense, que tinha sido espancado até à morte porque se recusara a gritar «Sou um porco advogado judeu». Ou o gerente das fábricas de calçado «Bata» de Praga, que foi morto por alguns kapos* sádicos, na sua maioria antigos comunistas. E todos os outros homens fuzilados, espancados ou afogados, que eram arrastados nus para o crematório, ou cujos cadáveres inchados, ainda com as etiquetas com os seus números atadas aos sapatos, eram simplesmente abandonados para se decomporem junto às vedações de arame farpado que rodeavam o campo.

Isso não me vai acontecer, repetia para si mesmo um prisioneiro na segunda fila. Não lhes darei qualquer pretexto. Tenho de sobreviver. Era um homem de estatura média e tronco largo, com cerca de cinquenta anos. Tinha um rosto franco, uma testa ampla, olhos castanhos intensos e um queixo saliente e voluntarioso. O crânio tinha sido rapado de acordo com os regulamentos de Dachau. Agarrava o boné de prisioneiro na mão direita e exibia o número 26336 em algarismos castanhos sob a estrela amarela estampada no uniforme.

"É Desta Que Leio Isto"

"É Desta Que Leio Isto" é um grupo de leitura promovido pela MadreMedia e por Elisa Baltazar, co-fundadora do projeto de escrita "O Primeiro Capítulo”.

Lançado em maio de 2020, foi criado com o propósito de incentivar à leitura e à discussão à volta dos livros. Já folheámos as páginas de livros de autores como Luís Sepúlveda, George Orwell, José Saramago, Dulce Maria Cardoso, Harper Lee, Valter Hugo Mãe, Gabriel García Marquez, Vladimir Nabokov, Afonso Reis Cabral, Philip Roth, Chimamanda Ngozi Adichie, Jonathan Franzen, Isabel Lucas, Milan Kundera, Joan Didion, Eça de Queiroz e Patricia Highsmith, sempre com a presença de convidados especiais que nos ajudam à discussão, interpretação, troca de ideias e, sobretudo, proporcionam boas conversas.

Ao longo da história do nosso clube, já tivemos o privilégio de contar nomes como Teolinda Gersão, Afonso Cruz, Tânia Ganho, Filipe Melo e Juan Cavia, Kalaf Epalanga, Maria do Rosário Pedreira, Inês Maria Meneses, José Luís Peixoto, João Tordo e Álvaro Laborinho Lúcio, que falaram sobre as suas ou outras obras.

Para além dos encontros mensais para discussão de obras literárias, o clube conta com um grupo no Facebook, com mais de 2500 membros, que visa fomentar a troca de ideias à volta dos livros, dos seus autores e da escrita e histórias que nos apaixonam.

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Block Vier — berrava o guarda das SS —, engetreten mit Belegschaft von vier hundert und achtzig Häftlingen. (Em parada com um total de quatrocentos e oitenta prisioneiros, oito no bloco dos doentes, doze a trabalhar...)

Ele tivera sorte até então, pensou o 26336. Tirando o tradicional e cruel espancamento na noite da sua chegada, ele não tinha sido incomodado. Escapara ao castigo preferido das SS, os três terríveis B. Primeiro havia o Bock, a mesa de madeira côncava à qual eles amarravam o tronco do prisioneiro para depois lhe fustigar vinte e cinco ou trinta vezes com chicotes compridos previamente embebidos em água. O prisioneiro tinha de contar os golpes em voz alta enquanto era chicoteado, e se parasse ou se enganasse, o flagelo começava de novo. Depois havia o Baum, um poste de dois metros e meio guarnecido de ganchos onde eles penduravam o prisioneiro durante horas com os pulsos atados atrás das costas. Quando davam um pontapé no banco que sustentava o prisioneiro, este caía no vazio, oscilando impotente como um pêndulo gigantesco. Mesmo que não o chicoteassem, a queda abrupta do corpo, subitamente suspenso pelos pulsos torcidos, podia rasgar-lhe os músculos ou partir-lhe os braços, e então ele estaria pronto para o crematório. E por fim havia o Bunker, a cave sinistra usada como solitária, onde as torturas infligidas aos prisioneiros eram tão cruéis que tinham de ser mantidas em segredo. Nem mesmo os guardas regulares das SS sabiam o que lá se passava.

O Número 26336 fora poupado a tudo isso. Mas como poderia ele saber quando mudaria a sua sorte? Todos os dias os guardas das SS inventavam novos jogos e regras para humilhar os prisioneiros e, se não ficassem satisfeitos com o desempenho de um prisioneiro, infligiam castigos terríveis a todo o bloco. Na semana anterior tinham obrigado todos os Schutzhaft-Juden a marchar na parada cantando hinos das SS e canções antissemitas tiradas do Sturmer, o jornal nazi, que descreviam os Judeus como porcos e lixo. Os Judeus tinham passado um domingo inteiro a deslocar enormes pilhas de pedras e cimento de uma zona do campo para outra, escavando buracos e enchendo-os de novo; depois os guardas, rindo-se, ataram-lhes as mãos atrás das costas e obrigaram-nos a rastejar de barriga para baixo e a lamber a comida ao mesmo tempo que imitavam o grunhido de porcos. Os reclusos do bloco vizinho tinham recebido ordens para besuntar o rosto com fezes e depois cuspir nos olhos uns dos outros e esbofetear-se e lamber-se uns aos outros. Novas torturas eram inventadas todos os dias para padres católicos, Testemunhas de Jeová e prisioneiros políticos, enquanto os Polacos eram tão dispensáveis que eram logo fuzilados. Cinquenta e cinco intelectuais, recém-chegados de Varsóvia num vagão de mercadorias, tinham sido encaminhados diretamente para o campo de tiro e fuzilados.

Pelo canto do olho, o Número 26336 viu o Oberscharführer Beck aproximar-se lentamente por entre as filas de prisioneiros, e retesou-se, rezando em silêncio para que Beck não passasse por trás dele. Poucos dias antes, formara-se na nuca do 26336 uma úlcera enorme e purulenta. Grande como a palma da sua mão, a ferida, vertendo sangue e pus, espalhara-se como um cancro sobre os ombros. Ele cobrira-a com espessas tiras de papel sujo. Sabia que devia apresentar-se na enfermaria, claro, mas eles poderiam decidir que a ferida era demasiado onerosa e depois matá-lo a tiro como a um cão raivoso. Muitas pessoas eram mortas por razões menores em Dachau, como aquele rapaz de Munique que tinha piolhos no cabelo. O guarda das SS apontara para um cartaz na parede com a inscrição: «Eine Laus — Dein Tod» (um piolho — a sua morte); depois arrastara o rapaz para fora do barracão, fazendo-o desaparecer. Destinos semelhantes aguardavam pessoas com fleimões nos pés, com difteria, tuberculose, pneumonia, disenteria, febre tifoide e outras doenças causadas pelo frio e pela fome atroz. Um amigo que trabalhava nos escritórios do campo dissera ao 26336 que nos últimos três meses cerca de 1200 homens tinham morrido em Dachau. Mas o 26336 tivera sorte nas duas semanas anteriores: mandaram-no trabalhar nos canis e ele devorara grandes pedaços de carne crua que arrancara da boca dos cães.

Cão de Caça era a sinistra alcunha que os prisioneiros tinham escolhido para o Oberscharführer Beck, que passava diante deles naquele momento, supervisionando a contagem dos prisioneiros do bloco. Com vinte e cinco anos de idade, vestia-se impecavelmente. Trazia umas botas brilhantes e um chicote debaixo da axila esquerda. Era alto, louro e bem-parecido — e um assassino sádico, cuja bestialidade era superada apenas pela de Egon Zill, o comandante do campo.

Livro: O Espião Judeu de Hitler. A história de espionagem mais extraordinária da Segunda Guerra Mundial

Autor: Michael Bar-Zohar

Editora: Edições 70

Data de Lançamento:  4 de maio

Preço: € 16,90

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Beck, contudo, parecia razoavelmente bem-disposto naquela manhã. Não olhou para o 26336 e parou apenas brevemente no fim da fila para averiguar a identidade de quatro cadáveres deitados na lama. Os homens tinham morrido durante a noite e, de acordo com os regulamentos, tinham de ser levados para o exterior para a chamada da manhã, contados, inscritos e devidamente eliminados do livro de registos. Tudo tinha de estar em ordem em Dachau e todos os blocos tinham de provar que tinham o mesmo número de stück (peças) inscrito nos registos na noite anterior.

Por ordem de Beck, os guardas e os kapos dispersaram-se por entre os prisioneiros, brandindo as suas listas, e começaram a formar as equipas de trabalho, berrando «Tempo! Tempo! Los! Los!» O grupo maior foi enviado para as oficinas, um segundo Kommando para a plantação, e outros foram enviados para o pântano, o matadouro e a famigerada pedreira. Uma semana na pedreira equivalia a uma pena de morte. O 26336 não conseguiu evitar mostrar algum alívio quando foi chamado o último número da equipa da pedreira e os prisioneiros, cabisbaixos, se puseram a caminho, escoltados por quatro guardas armados das SS.

Outra armadilha mortal era a pocilga. Muitos prisioneiros tinham sido deliberadamente afogados pelas SS nos charcos fedorentos entre os porcos imundos e grunhidores. Que forma de morrer! O 26336 permaneceu quieto, ouvindo o kapo chamar os números da equipa da pocilga. Ele também não estava naquele Kommando. Sentiu-se mais animado. A sua sorte podia durar mais um dia — talvez o enviassem de novo para os canis. Os aposentos dos guardas das SS também eram considerados um bom lugar. Nos caixotes do lixo havia boas hipóteses de se encontrar restos do jantar da noite anterior, às vezes até uma grossa fatia de pão com manteiga deixada de propósito pela mulher generosa de um dos guardas.

Ou talvez o enviassem para o museu? Os excêntricos comandantes de Dachau orgulhavam-se de uma exposição bizarra que apelidavam de museu do campo. Todos os tipos de prisioneiros de Dachau estavam representados em fotografias, cera e gesso para diversão de dignitários das SS em visita. O visitante podia contemplar efígies de opositores políticos do regime, criminosos com cicatrizes e tatuagens, Judeus degenerados roubando Alemães honestos. A única coisa que o museu não mostrava, pensou o 26336, amargamente, era a forma como o Reich se livrava dos prisioneiros. Mas um dia de trabalho no museu era um dia de descanso e tranquilidade, e isso era o melhor que um «sub-humano» de Dachau podia esperar.

A Appelplatz estava quase vazia, com os Kommandos de trabalho seguindo apressados em todas as direções. O 26336 percebeu de repente que, fora os cadáveres à sua esquerda, ele era o único prisioneiro que não tinha sido chamado nem destacado para um trabalho. Manteve-se ereto, sozinho, no meio da enorme parada, sentindo-se completamente indefeso no seu pijama às riscas e pesados tamancos. O que se estava a passar? Uma vaga de medo afluiu-lhe ao peito. Porque não chamaram o número dele? Porque não lhe mandaram trabalhar? Ter-se-iam esquecido dele? Impossível. A máquina alemã era demasiado perfeita para cometer um erro desses. Eles não se esqueceriam de um Dreck Jude em Dachau.

Ele olhou em volta, cada vez mais apreensivo. Um vento feroz agitava alguns cartazes mal colados nas paredes exteriores dos barracões. «Arbeit macht frei» (o trabalho liberta), dizia um deles, em grandes letras góticas. «Alles für den Endsieg» (tudo pela vitória final), dizia outro. Do local onde estava, ele conseguia ver o slogan enorme pintado no telhado inclinado do edifício da administração, o «Wirtschaftgebäude»: «Há uma estrada para a liberdade. Os seus marcos miliários são a obediência, a dedicação, a honestidade, a ordem, o asseio, a temperança, a verdade, o espírito de sacrifício e o amor pela Pátria.» Ele cumprira tudo isso, disse para si mesmo. Ele oferecera à sua Pátria amada a sua obediência e dedicação, até o seu sangue. E a Pátria atirara o com um pontapé para as portas do Inferno.

* Prisioneiros dos campos de concentração designados pelas SS para supervisionar os outros prisioneiros. [N. do T.]