A agência Lusa acompanhou uma visita a alguns dos pontos dos “Espaços da Presença Africana em Lisboa”, que fazem parte de um roteiro promovido desde 2016 pela associação Batoto Yetu Portugal, que trabalha com jovens e crianças interessados na cultura africana.

Entre 2.000 e 3.000 pessoas já participaram nestas viagens, das quais perto de 600 só este ano.

A filosofia desta associação assenta no reconhecimento e valorização das raízes culturais de cada um e, em relação às africanas, tem em Portugal, e nomeadamente em Lisboa, um livro aberto sobre uma relação de largos séculos.

Primeira paragem: Estação do Metropolitano do Parque, no Marquês de Pombal, figura a quem é atribuída ascendência africana.

Djuzé Neves, dirigente da associação Batoto Yetu Portugal, é cicerone nesta visita e contou à Lusa que a estação do Parque, dedicada à Declaração Universal dos Direitos Humanos, tem inúmeras referências à cultura e à presença africana em Portugal, precisamente porque as autoras (Françoise Schein e Federica Mata) identificaram a sua falta e sentiram a necessidade de as colocar mais visíveis.

“Há aqui referências a esse tráfico transatlântico”, iniciado em 1444, quando chegou a Lagos, no Algarve, o primeiro carregamento de escravizados, oriundos do Golfo da Guiné, mas também “à espiritualidade africana”, com imagens de sereias negras.

“Ficamos com a dimensão do volume de pessoas que foram trazidas à força nos barcos, que é algo que raramente vimos pela cidade”, afirmou.

Muitos dos que chegavam nesses mesmos barcos ficavam pela capital, em locais onde as suas memórias (visíveis e invisíveis) são mais ou menos fortes, como no Campo Mártires da Pátria, outro ponto visitável.

Ali, junto à estátua do Dr. Sousa Martins, um mestiço nascido em Alhandra e “um grande médico na altura”, situa-se hoje a Faculdade de Medicina, numa antiga zona de corridas de touros, onde no início do século XX toureou a cabo-verdiana Fernanda do Vale (também conhecida por Preta Fernanda).

Esta mulher, também escritora, terá sido modelo para a figura feminina na estátua do Marquês de Sá da Bandeira, na Praça D. Luís I, que tem uma criança ao colo e ainda as grilhetas da escravatura, simbolizando o futuro da liberdade, uma vez que foi Sá da Bandeira que aboliu o comércio negreiro português e da escravatura.

O antigo Campo de Santana é, aliás, uma zona de confluência de várias situações importantes, sublinhou Djuzé Neves, apontando para um quarteirão próximo ainda hoje designado toponimicamente de Rua das Pretas, relacionado com a ascensão social que era permitida às mulheres na altura e que neste local geriam uma série de apartamentos e de casas.

Olhando para o jardim que ladeia a estátua do Dr. Sousa Martins, este dirigente associativo, e engenheiro florestal, refere que a maior parte dos jardins na cidade de Lisboa tem plantas de todas as zonas do mundo, como as palmeiras que têm sido dizimadas por um escaravelho, que vem do Egito, e que tem a ver com esse culto, a divindade que era considerada o escaravelho.

“Com a importação das palmeiras acabámos por importar a praga associada”, disse, acrescentando: “Há muito conhecimento científico que veio com as pessoas livres, escravizadas, as contratadas, como as que vieram do Benim, com muito conhecimento de ferro e que trabalharam mais tarde nos barcos”, observou.

A visita prossegue passando pelo Rossio, onde existe a maior concentração de africanos no centro da cidade de Lisboa, principalmente junto à Igreja de São Domingos, para uma nova paragem no antigo bairro do Mocambo, hoje bairro da Madragoa.

Neste local de refúgio, o segundo dos seis bairros em que estava organizada Lisboa, instituído por alvarás régios em 1593 e 1605, “as pessoas podiam manter as suas práticas artísticas, culturais. Era um local de concentração de grandes festas, a que toda a população de Lisboa vinha assistir”, explicou.

Tal como aconteceu em 1882, quando este espaço acolheu uma “assombrosa festa” para a aclamação e coroação da nova rainha do Congo, Maria Amália I, que se encontrava em Portugal para prestar vassalagem ao Rei de Portugal.

Segundo Djuzé Neves, estas eram “zonas onde viviam pessoas com menos posses, pessoas escravizadas ou pessoas livres. Também alguma população de origem romani”.

Aqui trabalhavam pescadores, vendedores ambulantes, caiadores e na higiene (transporte da calhandra dos detritos).

Seguiu-se uma “gentrificação com população galega, de pescadores galegos, que vieram e acabaram por ir substituindo esta população africana”, contou, lamentando as portas fechadas de um restaurante cabo-verdiano, até há pouco a funcionar no agora Bairro da Madragoa.

Mesmo em frente, outra curiosidade, uma das mais apreciadas pelos turistas que participam cada vez mais nestes trajetos: A casa onde, “segundo a tradição, nasceu em 26 de julho de 1820 a mítica fadista Maria Severa Onofriana”, conforme se lê numa placa colocada numa casa, agora de alojamento local.

Severa, “o símbolo do fado, ela própria uma pessoa com ascendências africanas, de pessoas escravizadas da região do Ponte do Sor”, disse.

Os participantes estrangeiros ficam muito intrigados com “a antiguidade desta presença africana”, demonstrada nestes percursos.

“Nos outros países europeus também existe esta questão da diáspora africana, mas é mais recente”, pois muitos desses países, como os espanhóis, franceses e holandeses, vinham a Portugal comprar pessoas escravizadas, tendo entrado mais tarde comércio transatlântico de pessoas escravizadas”, disse.

E surpreendem-se com “os detalhes daquilo que vemos hoje na ocupação de pessoas de origem africana, fora de Lisboa, e do facto de ser muito difícil às populações se fixarem agora no interior da cidade”, razão que leva o percurso a incluir outros concelhos, como o de Oeiras, onde funciona a Batoto Yetu Portugal.

Incontornável nesta zona da cidade a referência mais difícil de explicar, por existirem várias explicações: O Poço dos Negros.

“O Poço dos Negros está ali entre duas grandes zonas com forte presença africana: A Madragoa (Mocambo) e a zona de São Bento e o Bairro Alto.

“Naquela zona foi criada uma vala comum para se enterrar as pessoas que eram não batizadas. As pessoas não batizadas não podiam ser enterradas junto às igrejas, como era a restante população. Então, criou-se a vala por questões de saúde pública, junto a Alcântara”, indicou.

Mas há também quem atribua o nome ao facto de ali existir uma fonte de água, à qual religiosos de bata negra iriam buscar água, adiantou.

Memórias que sempre existiram e que o dirigente da Batoto Yetu gostaria de ter aprendido na escola, mas que espera agora que passe para as futuras gerações.

“Aprender estas questões do passado é importante para não repetir os mesmos erros, apenas em formatos diferentes”, disse.