Em entrevista à Lusa sobre a presidência portuguesa do Conselho da UE, neste primeiro semestre de 2021, o primeiro-ministro afirma, no entanto, que há “linhas vermelhas” e o respeito pelo Estado de direito é uma delas.

“Acho que seria mau procurarmos fingir que não existem essas divergências, os problemas só se resolvem quando são assumidos e se conversa francamente sobre eles”, sustenta António Costa quando questionado sobre as divisões surgidas na UE com a crise pandémica.

Para o primeiro-ministro, o que é “justo” é dizer que, nesta crise, a Europa deu “uma resposta célere e assertiva” e “demonstrou grande capacidade de liderar”, de que são “marcos muito simbólicos” a “compra conjunta de vacinas” e o “passo de gigante” de avançar para uma emissão conjunta de dívida para financiar a recuperação.

António Costa admite que persistem diferenças entre os 27, mas frisa que essa é “uma realidade” que se deve “assumir sem dramas e com toda a tranquilidade”.

“É muito claro que, hoje, os 27 Estados-membros não têm todos a mesma visão sobre o que a Europa deve ser, nem sequer têm todos a mesma vontade que a Europa seja aquilo que já é. […] Porventura, a presença do Reino Unido escondeu muitas destas posições nacionais, que ficaram, digamos, a descoberto com a saída do Reino Unido”, afirma, exemplificando com as diferenças em temas como as migrações ou a solidariedade orçamental.

Para Costa, “seria mau” procurar “fingir que não existem essas divergências”, porque “os problemas só se resolvem quando são assumidos e se conversa francamente sobre eles”.

“Não obrigar ninguém a fazer movimentos que não quer fazer, criando situações de rutura. Para rutura já chegou o ‘Brexit’ e ninguém quer novos processos de rutura”, afirma.

Já quanto às fricções a propósito do respeito pelo Estado de direito, que motivaram aliás um bloqueio da Hungria e da Polónia à aprovação do orçamento e do Fundo de Recuperação, só ultrapassado na Cimeira de dezembro, o primeiro-ministro assegura que essa “é mesmo uma das linhas vermelhas”, porque “o Tratado da União Europeia é muito claro”.

O tema, frisa, é “particularmente sensível” para Portugal, porque “o que motivou a adesão de Portugal à União Europeia, não foi propriamente a existência do euro, que nem sequer existia, ou do mercado interno, que não existia”, foram “mesmo os valores” que permitiram que fosse “consolidada a liberdade e a democracia”.

Sobre as críticas de que foi alvo quando em julho visitou o primeiro-ministro húngaro, Viktor Orbán, em Budapeste, e defendeu que as violações do Estado de direito devem ser abordadas como estipulam os tratados e não servir para condicionar fundos, António Costa afirma que “não se arrepende” da visita, que foi “bastante útil” para haver acordo no Conselho Europeu de julho.

“Eu fui à Hungria pela mesma razão de que fui a Haia. Fui tratar de desbloquear os dois grandes obstáculos que existiam para podermos ter em julho, como conseguimos ter, um acordo sobre o programa de recuperação. Em Haia, fui falar com o chefe dos ‘frugais’ [o primeiro-ministro holandês, Mark Rutte], na Hungria falei com o inspirador do grupo de Visegrado”, Viktor Orbán, nota.

“Não me arrependo de nenhuma dessas visitas e ambas as visitas foram bastante úteis para ter sido possível um acordo em julho no Conselho, para ter havido agora um acordo entre a presidência alemã e o Parlamento Europeu e para o Conselho Europeu ter aprovado aquilo que aprovou”, sublinha.

E insiste: “Não podemos ser 27 e não falarmos a 27. Quando a decisão tem de ser por unanimidade, não vale a pena ter a ilusão de que é possível ter unanimidade, recusando-nos a falar com um ou com outro. Temos que falar com todos e encontrar o ponto de entendimento entre todos”.

O primeiro-ministro frisa, a propósito, a importância de ter sido superado o impasse, apontando que se “agora o que se discute é se o dinheiro chegar em junho vem tarde”, o que seria “se estivéssemos a discutir não termos esse acordo”.

“Quando é preciso unanimidade, só há uma forma, é haver um compromisso. Naturalmente, tentar compreender quais são os pontos de vista dos outros, fazer os outros compreender os nossos pontos de vista e encontrar qual é o ponto de entendimento”, conclui.

 Bloquear acordo UE-China em função dos EUA seria “péssimo sinal”

António Costa considera que “seria um péssimo sinal” a União Europeia bloquear o acordo de investimento com a China, concluído há dias, para se coordenar com os Estados Unidos, porque a Europa deve ser um ator global autónomo.

Na mesma entrevista à Lusa, o primeiro-ministro afirma também que este é “um momento imperdível” para uma Cimeira UE-África e que há “todas as condições” para que a Cimeira UE-Índia “possa ser um marco no relacionamento futuro da União Europeia com a União Indiana”.

A UE e a China chegaram na quarta-feira a um acordo de princípio sobre investimentos, em negociação há sete anos, acordo que pode suscitar tensão com a nova administração norte-americana, semanas depois de Joe Biden ter proposto um diálogo transatlântico sobre “o desafio estratégico colocado pela crescente assertividade internacional da China”.

“É um processo que estava em curso, seria também um péssimo sinal bloquearmos essa negociação ou condicionarmos essa negociação em função de outros”, afirma António Costa em resposta a uma questão sobre se essa negociação não deveria ter sido coordenada com a nova administração norte-americana.

“Se a Europa quer ser um ator global, e não pode deixar de querer ser, a sua autonomia estratégica passa por ter uma capacidade de diálogo com cada um dos outros atores mundiais. Tem que se relacionar com os Estados Unidos, a China, a Austrália e a Nova Zelândia, a Índia, África. Tem de se relacionar com todos e não pode estar dependente de terceiros para conversar com os demais”, defende.

Segundo o primeiro-ministro, o acordo entre Bruxelas e Pequim “garante uma segurança recíproca de abertura de mercado” e “relações de investimento que asseguram e respeitam todas as regras de segurança de um lado e de outro”.

António Costa assegura que Portugal tem “todo o interesse” num “novo clima da relação com os Estados Unidos”, “o aliado mais importante da União Europeia, à parte o Reino Unido”, apontando “sinais positivos e encorajadores”, como a intenção de Biden de regressar ao Acordo de Paris e “a visão multilateral que tem”.

“Fora isso, também sabemos que as dificuldades também não desapareceram para sempre. Do ponto de vista comercial, haverá certamente dificuldades, do ponto de vista da repartição de encargos em matéria de Defesa, continuará a haver dificuldades, agora aquilo que tenho a certeza é que o clima mudará claramente, a forma de nos relacionarmos mudará radicalmente e isso criará melhores condições para podermos ultrapassar divergências que existem”, nota.

Em relação a África, central na agenda externa da presidência portuguesa, o primeiro-ministro espera que a evolução da pandemia, que impediu a realização de uma Cimeira União Europeia - União Africana em 2020, permita “lá para a primavera” realizar “finalmente essa Cimeira”.

“Já manifestámos ao presidente do Conselho [Europeu, Charles Michel] que temos todo o interesse e disponibilidade para […]que essa cimeira possa ter lugar na nossa presidência, naturalmente em Bruxelas, e estamos a trabalhar nisso. Espero que a pandemia assim o permita”, afirma, apontando que, não sendo possível, haverá “outras vias”, como “reuniões com as diferentes organizações regionais do continente africano”.

“Mas acho que seria importante, neste momento em que a União Africana assinou um acordo de livre comércio à escala continental. Este era um momento imperdível para haver um encontro da União Europeia e África”, defende.

Para António Costa, “a grande parceria estratégica que a Europa tem a estabelecer é mesmo com o continente africano. “Portanto, acho que seria um erro a Europa desistir de pôr no topo das suas prioridades a realização dessa Cimeira”, frisa.

Sobre a Cimeira UE-Índia, marcada para 08 de maio, no Porto, António Costa aponta que em 2020 houve já uma reunião formal UE-Índia, pela primeira vez em quatro anos, na qual Nova Deli apresentou “uma agenda muito ambiciosa”, “um excelente auspício da vontade da Índia de avançar nesta relação”.

“Acho que temos as condições criadas para que em 2021 esta cimeira UE-Índia possa ser um marco no relacionamento futuro da União Europeia com a União Indiana”, assegura, frisando que “a Índia é um parceiro óbvio da Europa”.

Neste plano externo há um ‘dossier’, o do Pacto sobre Migração e Asilo, em relação ao qual o primeiro-ministro considera que “provavelmente não haverá um acordo final”.

“O pacote das Migrações é um pacote bastante diversificado que tem ‘n’ componentes. Nalgumas, seguramente, acho que conseguiremos chegar a um acordo final, noutras, espero, estou seguro, daremos um contributo para podermos ter avanços. Mas como está mais ou menos subentendido que só haverá acordo sobre tudo quando tudo estiver acordado, provavelmente não haverá nenhum acordo final sobre nada”, admite.

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