Em entrevista à agência Lusa, a ex-eurodeputada do PS volta a criticar o processo seguido por Marcelo Rebelo de Sousa e António Costa na substituição do presidente do Tribunal de Contas (TdC)e considera inconstitucional o princípio não automático da não renovação de mandatos dos cargos de natureza judicial.

Ana Gomes, porém, não alinha com os defensores da corrente que reclamou a recondução de Joana Marques Vidal como procuradora-geral da República. Considera mesmo que o mandato de Joana Marques Vidal teve pontos positivos e outros muito negativos, como o arquivamento do processo dos submarinos adquiridos pelo Estado Português - uma decisão que diz ter sido "política".

"Há instituições democráticas que não estão a funcionar como deviam, por exemplo na justiça, mas não só. Ao nível da separação de poderes, entendo que se gera uma confusão quando há demasiado encosto entre o órgão Presidente da República e o órgão Governo. É essa a perceção que muitos cidadãos têm perante alguns episódios, como o da recente substituição do presidente do Tribunal de Contas", sustenta Ana Gomes.

Neste episódio, a ex-eurodeputada socialista acusa até o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, de ter dito num dia "que não sabia de nada, mas dois dias depois já estar a empossar um novo presidente do Tribunal de Contas, assumindo ele próprio as dores e a responsabilidade dessa substituição - de resto, em contradição com aquilo que era do conhecimento dos portugueses em relação à própria iniciativa do Governo".

"Não aceito que a não recondução automática ou a recondução automática possam ser erigidas a critério, quando não têm qualquer base constitucional. Nada dispensa a avaliação sobre o desempenho de quem foi titular desses órgãos, concretamente a Procuradoria-Geral da República (PGR) e o TdC", defende, aqui numa nova crítica à explicação que foi apresentada por Marcelo Rebelo de Sousa e por António Costa para justificarem a não recondução do juiz conselheiro Vítor Caldeira como presidente do TdC e, antes, a de Joana Marques Vidal.

Em matéria de Tribunal de Contas, Ana Gomes diz que gostaria antes de ter ouvido o Presidente da República falar "sobre uma situação que lhe compete, obrigando as instituições a funcionarem como devem e exercendo plenamente os seus poderes".

"O poder sancionatório que tem o Tribunal de Contas, que poderia ser de enorme importância, no sentido de combater a imoralidade económica e financeira, é raramente utilizado. Alguma vez alguém falou disso? Isto não é um sintoma do não regular funcionamento das instituições democráticas?", questiona.

Questionada se concordou com a não recondução de Joana Marques Vidal no cargo de procuradora Geral da República, Ana Gomes alega não ter os elementos que o Governo e o Presidente da República tiveram para fazer uma apreciação desse mandato.

"Na altura, apontei aspetos positivos e outros que considerei negativos, porque foi no tempo de Joana Marques Vidal que foi tomada a decisão de arquivar o processo de aquisição dos submarinos, que é um processo óbvio de corrupção na sequência de um contrato ruinoso para o Estado e que pôs o país à beira da bancarrota quando teve de ser pago em 2010", afirma a ex-eurodeputada do PS.

No Parlamento Europeu, Ana Gomes diz que tentou reabrir o caso dos submarinos na sequência da investigação criminal em torno dos "Panamá Papers" e, no entanto, "da parte da Procuradoria Geral da República, não houve a decisão que se impunha de reabrir esse processo".

"Acho que há razões políticas que explicam isso", conclui.

Ainda em relação ao mandato da anterior procuradora Geral da República, a diplomata critica a atuação em torno do caso dos Estaleiros Navais de Viana do Castelo.

"Esse processo continua aberto, mas ficou-se a marcar passo na investigação. São responsabilidades que em parte cabem à Procuradoria-Geral da República com Joana Marques Vidal, mas que se prolongam para a atual titular do cargo", acrescenta.

Interrogada sobre os motivos que a levaram a insurgir-se contra a proposta do Governo de revisão do Código de Contratação Pública, a ex-eurodeputada socialista contrapõe que sempre tem dito que "o combate à burocracia é essencial".

"Uma das armas da corrupção, do compadrio e do conluio é a burocracia. Não posso estar mais de acordo com o ministro Pedro Nuno Santos e com o Governo nessa parte do objetivo da nova lei, mas não pode ser só isso. É estranho que se eleve a fasquia dos contratos em que se permite a dispensa de concurso público, o que é contraditório com a necessidade de escrutínio - e é isso que não estava suficientemente acautelado. Espero que aquilo que saia do parlamento contemple e reforce a confiança de que, de facto, vai haver escrutínio e transparência no desembolso dos fundos europeus", aponta.

Ana Gomes afirma depois concordar com a ideia do primeiro-ministro de se criar um portal da transparência ao nível da contratação pública que identifique todos os contratos, mas entende que deve ir para além do que acontece hoje.

Esse portal, de acordo com a diplomata, deve possuir "ferramentas que permitam a jornalistas e a elementos de qualquer organização da sociedade civil cruzar dados, identificando beneficiários últimos de empresas que se candidatam, ou proibindo a admissão a concursos de empresas com sede em paraísos fiscais".

Confrontada com o facto de a comissária europeia Elisa Ferreira ter defendido recentemente a tese de que Portugal é um dos países com mais baixos índices de corrupção no aproveitamento de fundos comunitários, Ana Gomes reage com ironia e declara compreender "perfeitamente essa observação".

"Se a Comissão Europeia se limitar a analisar que contratos é que foram financiados e se o dinheiro foi parar a esses mesmos contratos, então a percentagem de desvio é mínima. Mas a questão não é essa. É sobre a justeza desses contratos, já que alguns deles foram para elefantes brancos ou para esquemas de parceiras público-privadas que foram ruinosas para o Estado", responde Ana Gomes.

Em relação à necessária prevenção da fraude, da corrupção e mau uso de fundos comunitários, a ex-eurodeputada socialista salienta que "nada dispensa o controlo que tem de ser feito pela sociedade portuguesa e pelos próprios organismos do Estado Português - e muitas vezes esse controlo é completamente para inglês ver".

Ana Gomes desagradada com Marcelo em casos judiciais de Angola e Moçambique

"Houve vários momentos que me desagradaram [na atuação do chefe de Estado], por exemplo quando o Presidente da República, em concerto com o Governo, se mobilizou para ser produzida uma decisão judicial que facultou o abandono pela justiça portuguesa do julgamento do engenheiro Manuel Vicente, quando ele foi acusado de ter corrompido um procurador português", aponta.

Ana Gomes afirma também não ter gostado de ver o caso do empresário Américo Sebastião "ter sido posto debaixo do tapete", apesar de reconhecer que "houve um acompanhamento intenso e atento" da situação da parte da presidência da República.

"Perante os últimos desenvolvimentos, que envolveram ameaças à família desse empresário", a par de uma "persistente recusa das autoridades moçambicanas ao mais alto nível em aceitar a ajuda da Polícia Judiciária para esclarecer o que aconteceu", não é aceitável - diz - que "tenha sido sempre dado o total aval às autoridades de Moçambique responsáveis pela recusa em aceitar ajuda portuguesa para localizar esse nosso empresário".

Segundo a candidata, "o Presidente, nos termos constitucionais, é o garante da unidade do Estado, do regular funcionamento das instituições democráticas, mas também da independência nacional, e esse comportamento não serviu à independência nacional nem o interesse nacional".

Ana Gomes é também fortemente critica da posição de Portugal relativamente à rede 5G e à eventual concessão à empresa chinesa Huawei.

"A Huawei é uma empresa do Estado controlada pelo Partido Comunista Chinês, aliás, pelo exército chinês, que eu visitei enquanto parlamentar europeia, e que sei que está obrigada a ceder todos os dados que recolhe em todo o mundo ao controlo do Partido Comunista Chinês", declara.

A ex-eurodeputada socialista ressalva, no entanto, que este assunto nada tem a ver com a posição manifestada pelos Estados Unidos e a guerra comercial feito pela administração norte-americana.

"Para mim [a questão da 5G] é essencial para a independência nacional e para a autonomia estratégica da Europa", conclui, afirmando que esta "é uma questão fundamental e muito antes da Europa ter concluído, aliás, à conta da pandemia como ela era realmente fundamental".