Para além dos Estados Unidos e do Reino Unido, nenhum outro país terá uma cultura musical tão rica quanto a do Brasil. Há o samba, claro, mas há muito mais: há linguagens rock, há mesclas entre América, Europa e África, há o som das favelas, há um hip-hop potente e entoado em bom português. E há um retrato que é possível desenhar a partir de todas estas canções, um retrato heterogéneo, miscisgenado, extremamente culto. Este domingo, todos estes Brasis votarão naquele que será o seu próximo presidente da república, numa das eleições mais extremadas de que há memória. Pelo que este exercício pretende, também, mostrar que o país não é apenas verde e amarelo: está carregado com todas as cores do mundo.
Ary Barroso – Aquarela do Brasil (1939)
Foi Nelson Rodrigues quem o escreveu, pouco após a derrota da seleção brasileira de futebol na final do Campeonato do Mundo de 1950, em pleno Estádio do Maracanã, diante do Uruguai: o Brasil possuía um «complexo de vira-lata». E explicou-o: «A inferioridade em que o brasileiro se coloca, voluntariamente, em face do resto do mundo». Terá sido a derrota a criar – ou a exacerbar – algo que nem sempre poderia estar visível, tal como não esteve em 1939, ano em que Ary Barroso compõe o tema que daria origem a um novo movimento, o do samba-exaltação. Primeiro esquecida (e criticada pela ditadura militar da Getúlio Vargas pela letra, que utiliza várias expressões nada corriqueiras da língua portuguesa de sotaque brasileiro), depois popularizada em Saludos Amigos, filme da Disney de 1942 no qual o famoso Pato Donald se encontra com o não menos famoso Zé Carioca, “Aquarela do Brasil” é ainda hoje uma das canções que melhor definem o Brasil, ainda que através dos seus estereótipos máximos – o samba, o pandeiro, os coqueiros, os mulatos. Mas sem que a partir deles exista qualquer espécie de vergonha. Ou mesmo rafeirice.
Antônio Carlos Jobim & Vinicius de Moraes – Chega de Saudade (1958)
Em 1958, finda a “Era Vargas”, a crise que daria origem ao Golpe de 1964 (de onde brotaria a Ditadura Militar que governou o país durante mais de 20 anos) era ainda uma miragem. Juscelino Kubitschek governava sem problemas de maior, o Brasil era campeão do mundo de futebol, a economia e a indústria cresciam. E, no Rio de Janeiro, um grupo de jovens de classe média estava prestes a iniciar uma revolução, não política, mas sim musical. A bossa nova, que alterou radicalmente o samba e deixou também uma semente duradoura no jazz, tinha chegado para ficar e mostrar ao mundo um Brasil culto e sofisticado, poeta e boémio, sonhador e descomplexado. Ficam para a história sobretudo três figuras: Vinicius de Moraes (o letrista par excellence), Tom Jobim (o compositor-Midas) e João Gilberto (o dono do violão), autores e intérprete máximo de um dos grandes êxitos da bossa nova lado a lado com a inevitável “Garota de Ipanema”: “Chega de Saudade”. Este era o Brasil internacional, antes de se fechar em copas nacionalistas.
Roberto Carlos – É Proibido Fumar (1964)
1964 mudou tudo. O Golpe Militar instaurou a ditadura, a censura começou a mostrar as suas garras, a repressão deixaria uma marca indelével na sociedade brasileira. Enquanto muitos dos artistas da época procuravam recuperar a liberdade, outros houve almejando nada mais que o sossego inerente à diversão. A Jovem Guarda, encabeçada por dois Carlos, Roberto e Erasmo, não pensava tanto na bossa nova como no bom e jovem rock n' roll que lhe chegava dos Estados Unidos, país com o qual o Brasil manteve sempre ótimas relações (e que apoiou a ditadura). Nem sempre foi bem vista pelos músicos politicamente mais engajados, mas obteve um sucesso tremendo. Provando que, no Brasil tal como em muitos outros países, há sempre uma população silenciosa que prefere a alienação às armas.
Geraldo Vandré – Pra Não Dizer Que Não Falei Das Flores (1968)
O que a Ditadura Militar tirou, também deu ao nível da contestação. À semelhança do que acontecia nos Estados Unidos, em França ou o Reino Unido, uma juventude contestatária procurava alterar o estado de coisas e recuperar a chama preciosa da liberdade e da democracia. Geraldo Vandré foi uma delas, mesmo que o seu nome não seja tão conhecido quanto os de Gilberto Gil, Chico Buarque ou Caetano Veloso; em 1968, “Pra Não Dizer Que Não Falei Das Flores” tornou-se um hino da resistência civil e estudantil, apesar da proibição e da censura a que foi vetada. Foi com ela que Vandré concorreu ao Festival Internacional da Canção, nesse mesmo ano, ficando em segundo lugar (o que provocou tumultos: era claramente a favorita do público). E foi com ela que Vandré trouxe uma outra forma de oposição: a das armas, ignorando e criticando todos os movimentos que apelavam à paz e ao amor face à barbárie.
Os Mutantes – Meu Refrigerador Não Funciona (1970)
A tropicália foi um sinal claro de que a juventude também sabia ser vanguardista, engolir tudo o que viesse à rede – fosse isto pop, rock, bossa nova ou samba – e regurgitá-lo em algo extraordinariamente novo e fresco que, mesmo não sendo tão militante quanto outros, era claramente crítico em relação à ditadura. Poesia concreta, luz, cor, deboche e, acima de tudo, um grau enorme de humor e sentido de paródia, como aquele demonstrado pelos Mutantes, que se viriam a tornar num dos grupos brasileiros mais acarinhados... Por melómanos estrangeiros. “Meu Refrigerador Não Funciona” pode ser uma canção só sobre um frigorífico estragado. Ou pode ser uma canção sobre a sociedade. Ou sobre o amor. Ou sobre o que bem quisermos.
Raul Seixas – Sociedade Alternativa (1974)
Raul Seixas podia não saber muito bem como seria a “Sociedade Alternativa” que cantou no auge da sua carreira, mas a mensagem era clara. E esotérica, num país profundamente cristão e evangélico. A base era a de Aleister Crowley, que décadas antes havia sido considerado como «o homem mais perverso do mundo», criando toda uma filosofia em torno de uma única lei, a de Thelema: «faze o que tu queres há de ser o todo da Lei». Este é o retrato de uma parte da sociedade que não encontra no establishment qualquer caminho a seguir, seja ele qual for. Mais do que isso, representa a verdadeira alternativa, a que existe fora de quaisquer ideias pré-concebidas sobre o que constitui uma sociedade. Só que Seixas não escaparia a mão horrenda da ditadura – foi preso, torturado e exilado, safando-se com uma pequena mentira – ou seria verdade?: «prefiro ter um pacto com o Diabo do que com a revolução».
Chico Buarque – Geni e o Zepelim (1978)
Chico Buarque foi um de vários artistas forçados ao exílio durante os tempos da ditadura militar, tendo tido várias das suas canções censuradas. Em 1978, apenas um ano antes da Lei da Amnistia, o primeiro passo dado para o regresso da normalidade democrática no Brasil, Buarque editou Ópera do Malandro, texto baseado em dois outros trabalhos, Ópera dos Mendigos (John Gay, 1728) e Ópera dos Três Vinténs (Bertolt Brecht e Kurt Weill, 1928). Um texto que deu em álbum, e que não será tanto sobre a ditadura como sobre a sociedade em geral; as suas hipocrisias, a sua mesquinhez, as suas odiosas fobias. No texto, Geni é uma travesti detestada e agredida, física e mentalmente, pelo povo; quando o comandante de um zepelim resolve bombardear a cidade e muda de ideias se puder ter uma noite de amor com Geni, esta deixa de ser maldita para se tornar bendita – até que o zepelim parte e tudo regressa à normalidade do ódio. O «joga pedra na Geni» que aqui se escuta ainda é hoje, pesarosamente, real.
Ultraje a Rigor – Inútil (1983)
Em plena era de manifestações populares, que deram origem ao movimento Diretas Já!, e recorrendo à chama que o punk havia acendido noutras paragens no final da década de 1970, os Ultraje a Rigor compunham quatro simples versos que, ainda hoje, parecem fazer sentido – e que não precisarão de uma maior análise que a sua transcrição:
A gente não sabemos escolher presidente
A gente não sabemos tomar conta da gente
A gente não sabemos nem escovar os dente
Tem gringo pensando que nóis é indigente
Legião Urbana – Que País é Este (1987)
O regresso da democracia, em 1985, não implicou mudanças fortes e imediatas na sociedade brasileira. Tancredo Neves foi eleito presidente, mas morreu antes de assumir o cargo, que passou para José Sarney. O seu mandato, marcado pela crise económica e pela inflação, cessaria em 1989 após a eleição de Fernando Collor. Entre estas datas, uma nova juventude, nascida do punk e influenciada pelo pós-punk, mostrava o seu descontentamento em canção. Era o caso dos Legião Urbana, que se tornariam numa das bandas rock mais acarinhadas do Brasil – e que, em 1987, editaram Que País é Este 1978/1987, álbum impulsionado pelo seu tema-título, que já vinha de trás: o vocalista Renato Russo escreveu-o em 1978, quando ainda fazia parte do grupo punk Aborto Elétrico. Os Legião Urbana explicaram o porquê de a terem regravado e editado nos textos que acompanhavam o álbum: «Havia a esperança de que algo iria realmente mudar no país, tornando-se a música totalmente obsoleta. Isto não aconteceu e ainda é possível se fazer a mesma pergunta do título». Tão verdade em 1987 quanto hoje.
Pavilhão 9 – Ótarios Fardados (1992)
O Brasil nunca teve uma relação fácil com as suas polícias, especialmente a Polícia Militar, acusada ainda hoje de várias e constantes violações dos direitos humanos. Desse historial de abuso e repressão, nos anos 90, há um caso que se destaca: o do Massacre do Carandiru, quando a Polícia Militar do Estado de São Paulo repeliu uma rebelião prisional com extrema violência, provocando a morte de 111 prisioneiros. No mesmo ano, os Pavilhão 9, grupo hip-hop formado nessa mesma cidade, lançaram uma das mais feéricas críticas aos abusos da Polícia Militar: “Otários Fardados”, tema que lhes valeu algumas perseguições e ameaças e que os forçou a esconder os rostos. Era o bairro – essa mescla de culturas, raças e vozes – a reagir contra o abuso de que era alvo.
Sepultura – Ratamahatta (1996)
Tal como por todas as demais nações não-europeias, a colonização deixou marcas no Brasil, sobretudo no seu povo indígena. Perseguidos, massacrados, escravizados e afetados por doenças que até então lhes eram desconhecidas, os indígenas brasileiros foram forçados a adaptar-se para sobreviver, e dispõem hoje de uma maior proteção jurídica (o que não implica que o seu estilo de vida não continue ameaçado, ou que o espírito da carnificina não continue a pairar sobre as suas cabeças). Em 1996, os Sepultura inspiraram-se nesses povos – que não são homogéneos, isto é, possuem várias linguagens e culturas – para compor Roots, álbum onde o peso do metal se alia a várias outras expressões e sonoridades da música brasileira, resultando tudo isto numa extraordinária mistura entre o novo e o eterno antigo; um verdadeiro regresso às raízes, se o quisermos colocar nesses termos.
Racionais MC's – Tô Ouvindo Alguém Me Chamar (1997)
Favela é sinónimo de pobreza e de exclusão, de preto, de toda a carga violentamente racista que essa palavra pode conter. Sinónimo de abusos policiais, de fome, de criminalidade. Em suma, sinónimo de inferno, o mesmo que o coletivo hip-hop Racionais Mcs cantaram em Sobrevivendo no Inferno, álbum de 1997. O retrato é o de um Brasil muitas vezes esquecido mas omnipresente, o mesmo que só é notícia quando alguém mata ou alguém morre. O que acaba por ser a única forma de se sobreviver nessa selva de latão e ratazanas. “Tô Ouvindo Alguém Me Chamar” é uma dessas histórias, sobre um filho do bairro, morto por um suposto parceiro no crime – sendo que “parceiro” é algo que não pode existir num lugar onde a lei é a do mais forte. Tudo contido aqui: Meus aliado, meus mano, meus parceiro / Querendo me matar por dinheiro.
Cordel do Fogo Encantado – Boi Luzeiro (Ou a Pega de Violento, Vaidoso e Avoador) (2001)
Longe dos grandes centros urbanos do Brasil, há toda uma cultura folclórica que ainda resiste, imóvel e imutável, à coca-colonização – a do Nordeste, a primeira região do Brasil a ser colonizada pelos portugueses, onde as tradições ainda vão sendo o que eram. Dentro desse mesmo Nordeste, encontramos o chamado Sertão, semideserto onde agricultores e vaqueiros procuraram fazer as suas vidas debaixo de um sol quente e seco, implacável. Ainda hoje, a grande maioria da população subsiste da sua própria lavoura. Representam o lado mais rural do Brasil, o que perante o avanço do cimento respondeu com a terra, e com tudo o que esta pode dar e não dar. E são donos de uma cultura riquíssima, seja nas artes, na música ou na literatura, especialmente a de cordel, uma “importação” portuguesa que encontrou voz num dos grupos mais fabulosos do Brasil: o Cordel do Fogo Encantado.
Cansei de Ser Sexy – Music Is My Hot, Hot Sex (2005)
Em 2005, Lula da Silva era um presidente popular, tendo encetado medidas de apoio às populações mais carenciadas, como o Bolsa-Família. A inflação estava controlada, o PIB aumentava progressivamente e a taxa de desemprego baixava. E, nos grandes centros urbanos, grupos de jovens mais sintonizados com o mundo – aproveitando o boom da internet – começavam a adaptar todas as influências que lhes chegavam para a música. O período indie rock, que popularizou bandas como os Strokes ou os Arctic Monkeys, também chegava ao Brasil. E partia, também, do Brasil para o mundo, como o fizeram os Cansei de Ser Sexy, banda que aliava o rock às eletrónicas mais dançáveis, e que começou a criar burburinho através do seu fotolog (blogue de fotos). Com canções cheias de referências a figuras várias da cultura pop, como Paris Hilton ou os Death From Above, os Cansei de Ser Sexy mostravam que uma das subculturas mais comentadas (e muitas vezes odiadas...) do século XXI também existia no Brasil: os hipsters.
Elza Soares – A Mulher do Fim do Mundo (2015)
Não há como negá-lo: o Brasil (ainda) é um país profundamente machista, onde a mulher, quando não é encarada puramente como um objeto sexual, é vista apenas como doméstica, alvo das maiores violências. Segundo dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, foram registados mais de 160 mil casos de violação no Brasil só em 2017, e 193 mil mulheres apresentaram queixa nas autoridades por violência doméstica. Elza Soares sabe bem o que é esta última: o seu casamento com Garrincha, nos anos 60 e 70, ficou marcado por agressões, traições, e humilhações várias. A Mulher do Fim do Mundo, álbum editado pela cantora em 2015 e tido por muitos como um dos melhores da década, é no fundo a sua história. Mas também a esperança: um hino feminista para os dias que correm, um retrato de todas as mulheres-vítimas que sentem a necessidade de gritar “basta!”. E todos os movimentos precisam dos seus hinos.
Linn da Quebrada – Bomba Pra Caralho (2017)
O Brasil é o país que mais pessoas LGBTQ mata no mundo; estima-se que um a cada 19 horas. Ainda que a homossexualidade tenha deixado de ser crime em 1830, e o casamento civil e a adoção de crianças por parte de casais do mesmo sexo tenha sido legalizada esta década, o país resiste tristemente homofóbico – sendo que o discurso homofóbico não é criminalizado no Brasil. Mas há cada vez mais rostos dispostos a quebrar o preconceito a que estão diariamente sujeitos, como Linn da Quebrada, ativista transgénero que se assume como bicha, trans, preta e periférica. A artista tem destoado dentro da cena queer brasileira, compondo uma música próxima tanto do baile funk como das eletrónicas experimentais como da pop, de veia militante. Provém de tantas minorias, e representa-as a todas com distinção. Fazem falta mais vozes assim. Para que a violência termine de vez.
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