Sobreviveu ao ciclone Idai, mas sofre com a falta de alimentos que a tempestade provoca até hoje.

Mantém-se em silêncio quando a poisam numa tábua de medição, quando a puxam para uma balança na clínica de campo na área de reassentamento de Ndeja, 85 quilómetros a oeste da cidade da Beira.

Rabeca pesa 7,8 quilos, abaixo do mínimo recomendável para a idade.

É uma das 10 mil crianças com subnutrição severa a moderada que o Programa Alimentar Mundial (PAM) e o Fundo para a Infância das Nações Unidas (UNICEF) contam apoiar este ano com suplementos alimentares em Moçambique, a par de 15.000 grávidas e lactantes.

A desnutrição está quase sempre presente em Moçambique: a falta de alimentos diversificados faz com que metade da população moçambicana sofra de desnutrição crónica.

Mas o ciclone Idai agravou o cenário no centro do país, com perda de campos e mantimentos, e a desnutrição crónica passou a desnutrição moderada ou severa, um nível que reflete carências maiores.

“Já tenho muitos casos que estão curados”, conta Madalena Chuarira, 26 anos, técnica dos Médicos do Mundo que trabalha em conjunto com a UNICEF nos cuidados de saúde prestados aos cerca de 2.300 habitantes de Ndeja.

O segredo é um suplemento alimentar entregue às mães em pequenos pacotes.

Cinda António, 4 anos, irmã de Rabeca, agarra-se a um deles, enquanto a mãe, Luísa Fernando, 30 anos, ouve com atenção as explicações traduzidas para língua local - muitos dos residentes só percebem as palavras mais elementares de português – com Rabeca a dormir, apertada com tecido contra o peito da mãe, encaixada onde passa quase todo o dia.

Um ano depois do Idai, ter comida continua a ser uma batalha diária que quase todos os moçambicanos dizem que só pode ser vencida com uma machamba - o nome dado às hortas para produção de alimentos.

Há ajuda humanitária (em géneros ou cheques alimentares), mas essa chega a cada vez menos pessoas.

Quando boa parte da província de Sofala ficou submersa, cerca de 100.000 habitantes refugiaram-se em zonas altas: primeiro receberam tendas e depois o Governo ofereceu-lhes parcelas de terreno para reconstruírem as suas casas e plantarem machambas.

Assim nasceram 72 zonas de reassentamento no Centro do país após o ciclone Idai, zonas como a de Ndeja, onde as machambas já começam a dar milho e vão oferecer também feijão, arroz e amendoim.

E as hortas também dão carne, diz Marcos Fernandes, 36 anos, porque quando a produção sobrar, pode vender o excedente “e comprar galinha. Ou peixe. O dinheiro vem da machamba. Tudo vem da machamba”.

A Organização para Agricultura e Alimentação (FAO) das Nações Unidas tem distribuído sementes e fornecido formação, o PAM entrega comida.

João Brás, 67 anos, secretário de Ndeja - um representante da autoridade estatal - diz que a ajuda alimentar até pode parar um dia destes, “não tem problema, temos machamba, não estamos parados”.

A falta de fundos já obrigou o PAM a reduzir o apoio: em vez dos habituais 40 quilos de milho ou arroz entregues por mês a cada família como produto base para agregados vulneráveis, passaram a ser distribuídos 20 quilos para cada, detalhou Espinola Caribe, chefe do PAM na cidade da Beira.

“Temos problemas sérios de fundos. Temos uma necessidade de 48 milhões de dólares (43,7 milhões de euros) para poder continuar a assistir 1,3 milhões de pessoas”.

“Estamos a bater às portas”, acrescentou, uma vez que, sem essa verba, 525 mil pessoas “estarão fora do programa, por falta de fundos” durante o mês de março.

Apesar de os ciclones já terem acontecido há um ano, é pouco tempo para as famílias recuperarem os seus rendimentos e recuperarem o acesso a comida, referiu Espinola Caribe.

“São pessoas que perderam tudo” quando estavam prestes a começar a colheita “e que dependem da agricultura de subsistência”, pelo que só depois de abril ou maio, com a primeira colheita (que se espera) de sucesso depois dos ciclones, poderão começar a ter alimentos.

Mesmo essa esperança ficou em dúvida em vários locais do Centro do país devido a inundações registadas nas últimas semanas, afetando novamente quem já tinha sofrido em 2019 - num total de 71 mil pessoas só na província de Sofala.

Logo após os ciclones, na fase de emergência, a ajuda do PAM chegou a 1,8 milhões de pessoas, descendo depois para os números atuais - que recebem apoio em géneros ou cheques desconto, que podem ser trocados por produtos do mesmo cabaz em pontos comerciais definidos.

O cabaz mensal inclui milho, arroz, ervilha, feijão, óleo vegetal e sal.

Antes de o sol de pôr em Ndeja, Madalena Chuarira coloca tudo isto decima de uma mesa.

Chama as mulheres para uma demonstração culinária sobre como preparar uma ementa equilibrada com o que a machamba dá, para que a desnutrição não aconteça.

O período chuvoso de 2018/2019 foi dos mais severos de que há memória em Moçambique: 714 pessoas morreram, incluindo 648 vítimas de dois ciclones (Idai e Kenneth) que se abateram sobre Moçambique.

O ciclone Idai atingiu o cento de Moçambique em março, provocou 603 mortos e a cidade da Beira, uma das principais do país, foi severamente afetada.

O ciclone Kenneth, que se abateu sobre o norte do país em abril, matou 45 pessoas.

* A Lusa viajou na província de Sofala com o apoio logístico das Nações Unidas.

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