Na opinião de Ana Ramires, o que aconteceu no domingo, em que Marega abandonou o campo após ser vítima de insultos racistas na visita do FC Porto ao Vitória de Guimarães, “é alguém que atinge um dado ponto em que decide não ser conivente com algo que está a acontecer”.
Segundo Ramires, foi atingido “um limite de saturação, de estar a ser ofendido e humilhado”, em que o atleta diz “chega, não vale a pena, nada justifica a continuidade neste contexto”.
“Este tipo de atitudes, normalmente, enquadra-se em os nossos valores pessoais mais sagrados serem de alguma forma beliscados. A atitude do atleta tem a ver com isto, alterado do ponto de vista emocional, porque está a ser alvo de uma humilhação gigante por uma plateia enorme, com outro fator a agravar a situação, que é o Marega ter jogado por aquela equipa, que foi a sua casa”, acrescentou.
Por seu lado, a especialista em trauma Assunção Neto, que também trabalha com atletas de alta performance, referiu à Lusa que o “maior potencial traumático” de situações em público vem do facto de que “não é possível a pessoa as fazer parar”.
“Ninguém à volta parece compreender e conseguir parar o que acontece, e isto para a pessoa que está a ser vítima é muito importante, porque se sente particularmente impotente e incapaz de fazer parar a situação”, apontou.
No futuro, este tipo de experiências podem levar a que “fique alerta no sentido de se proteger, e não de perceber o jogo”, num contexto em que a agressividade psicológica “é mais intensa ainda do que a física”, porque “não é tão visível ou valorizável pelos outros em muitos casos”.
Assunção Neto alerta ainda para o “trauma secundário”, de quem vê a situação ocorrer, dos outros jogadores a quem possa, no futuro, “sentir-se fragilizado numa situação destas”.
Na opinião de Ana Bispo Ramires, este tipo de humilhações “não é novo e existe em vários contextos”, seja por uma descriminação por raça, género ou religião, entre outras, pela “necessidade de haver relações de dominância que ostracizam e humilham o outro”, o que leva a outros casos, exemplificando com o ‘bullying’ nas escolas.
Marega é, assim, “uma pessoa que diz ‘basta’”, à semelhança das atrizes de Hollywood que protestaram contra o assédio sexual na indústria do cinema com o movimento #MeToo.
"Provavelmente deviam ter saído todos de campo”
A psicóloga do desporto vê ainda um meio que “é conivente”, ao não atuar perante os insultos, referindo-se também a “algumas críticas de jogadores aos colegas” do maliano, “no sentido de que deveriam todos ter saído em conjunto”.
“Ao sair só, acaba por se remeter o atleta para alguma solidão, para o isolamento, no que devia ser uma decisão de ‘tribo’, da equipa, dos colegas de profissão e de todos nós na sociedade portuguesa”, atirou.
Para a especialista, o problema da violência no desporto “é de todos, mas também dos atletas”, que têm “voz ativa e responsabilidade acrescida” perante a sociedade. “Neste enquadramento provavelmente deviam ter saído todos de campo”, comentou.
A “conivência” de colegas de profissão e da sociedade portuguesa para com insultos racistas no futebol e o papel dos ‘media’ têm de mudar para evitar mais casos, considera também Ana Bispo Ramires. A especialista vê no “isolamento” de Marega na saída de campo como um sinal de “conivência”, pela não atuação de outros perante um comportamento de agressividade.
A situação leva Bispo Ramires a esperar que o ‘caso’ seja “explorado na imprensa e redes sociais até à exaustão, mas que saiam poucas medidas que de forma séria sejam implementadas e controladas no terreno para erradicar de vez este e outros tipos de violência no desporto”.
O que devem fazer os media
Para a psicóloga, o papel dos meios de comunicação social a “dar visibilidade a fenómenos destes”, em vez de situações positivas, acabam por “moldar muito mais o negativo do que o positivo”.
“Por alguma pessoa, para fazer frente às pessoas que invadiam nuas os campos em Inglaterra, deixaram de os filmar, para lhe retirar o protagonismo”, comentou.
Bispo Ramires destaca ainda a problemática da violência no desporto português, como com a situação do ataque à academia do Sporting em Alcochete, como um fenómeno que “tem de ser combatido, mas tem de o ser em todas as suas dimensões”.
“Porque é que se filmam as pessoas que atiram tochas? (...) De há uns anos a esta parte, os ‘media’ já não filmam as pessoas que morreram em cenários de catástrofe, por uma questão de consciência social e porque as imagens traumatizam”, acrescentou.
Neste contexto, os ‘media’ têm um papel principal na “promoção de comportamentos adaptativos” positivos e devem ser usados para tal, mesmo que isso possa render “menos audiência, menos ‘likes’ [nas redes sociais]e menos vendas”, comentou.
“Todos temos de decidir, todos os que se querem sentar a esta mesa, se queremos frutos a curto prazo e o protagonismo, ou frutos a longo prazo e resolver um problema”, sentenciou.
Na opinião da psicóloga, a violência no desporto “vai durar algumas gerações a erradicar”, com medidas que vão do espectro punitivo à educação, para contrariar algo “que está instalado de forma disfuncional no ser humano”, que usa “o comportamento agressivo como fim e não um meio” para sobreviver, em algo que começa a ser condicionado desde o nascimento.
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