O baque chegou a 27 de Dezembro de 2013. Um presente de Natal tardio, mas daqueles que ninguém quer receber: uma carta do senhorio, a Empresa de Recreios Lisbonenses, propriedade de Maria Ricardo Covões, com a actualização do valor da renda a pagar pela Sociedade de Geografia de Lisboa (SGL), que há mais de 100 anos ocupa o edifício paredes meias com o Coliseu dos Recreios, dos mesmos donos.
Por causa do Novo Regime de Arrendamento Urbano (NRAU), que estabelece um regime especial de actualização de rendas antigas, o valor do prédio aumentou e o preço a pagar pela renda disparou quase 13 vezes, qual número do azar: subiu de 765,40 euros/mês para 10 016,39 euros/mês.
“A Sociedade de Geografia de Lisboa não tem, com base nos rendimentos actuais, capacidade para fazer face a esta renda e se nada for feito ficará insolvente dentro de um curto espaço de tempo”. Foi este o entendimento do presidente da SGL, Luís Aires-Barros, e foi com base nestes pressupostos que decidiu pedir ajuda ao governo, então liderado por Passos Coelho.
A Sociedade de Geografia de Lisboa é privada. Mas, em 1875, altura em que foi criada por Luciano Cordeiro, a instituição tinha como objectivo fazer a cobertura geográfica dos territórios ultramarinos. E foi através dela que exploradores como Serpa Pinto puderam contribuir para a delimitação e defesa das fronteiras internacionais dos actuais países lusófonos do continente africano, com recolha etnográfica e de património cultural, bem como divulgação científica. Era este o trabalho das então na moda sociedades de geografia, primeiro a de Paris, depois a de Londres, a de Berlim, até chegar a de Lisboa. Foi assim que apoiaram exploradores como Livingstone, com Brazzaville ou com Hermenegildo Capelo.
Em troca deste serviço público, no caso português, os estatutos da instituição prevêem que o governo garanta casa à Sociedade de Geografia de Lisboa. Mais: os estatutos da sociedade dizem que o chefe de Estado é presidente de honra da SGL, uma certa forma de protectorado. Por isso, Aires-Barros foi também pedir socorro a Cavaco Silva, primeiro, a Marcelo Rebelo de Sousa, depois. Mas já lá vamos.
Logo que tomou conhecimento da situação, o secretário de Estado das Infraestruturas, Transportes e Comunicações, Sérgio Monteiro, pensou numa de três alternativas possíveis: adaptar a lei recém publicada, propor ao senhorio a permuta de prédios ou a expropriação.
A adaptação de uma lei recém publicada pareceu disparatado, já que implicava criar um regime de excepção para um caso específico e ainda por cima mexer numa legislação acabada de sair, depois de severas negociações entre inquilinos, proprietários e o executivo. A expropriação seria sempre o último recurso, uma solução usada apenas depois de esgotadas todas as opções. O governo decidiu então propor a permuta de prédios, ou seja, o edifício em causa passaria a ser da SGL e, em troca, o senhorio receberia prédios do Estado que estivessem já a render mensalmente 10 016,39 euros.
Foram encontrados prédios, apresentadas propostas ao senhorio, feitas diversas tentativas de acordo. As negociações duraram todo o ano de 2014 e parte de 2015, lembra Aires-Barros. “Não foi fácil”. Mas o proprietário acabaria por rejeitar todas as soluções sugeridas pelo governo.
Fonte ligada à Empresa de Recreios Lisbonenses explicou ao SAP024 que a proposta de permuta de prédios não podia nunca ser aceite pelos accionistas. Por vários motivos. Primeiro, “porque o edifício em causa funciona como um bloco, possui áreas comuns. Segundo, porque uma permuta implica uma reavaliação fiscal do imóvel pelas Finanças. E se antes bastava fazer uma qualquer correcção de Sisa, hoje uma permuta é tratada como se de uma venda se tratasse e depois seria necessário pagar os impostos correspondentes”. No caso, qualquer coisa como 8 milhões de euros.
Então, porque não o contrário? Podia sair a Sociedade de Geografia de Lisboa para um dos tantos edifícios do Estado. Mas, para os responsáveis da instituiçáo esta é uma situação impensável. Afinal, aquela é uma casa feita por medida, como define Luís Aires-Barros.
PS tem proposta desde Setembro. Falta aprovação do BE e PCP
O presidente da Sociedade de Geografia de Lisboa conta que chegou a reunir-se com o ex-ministro da Cultura, João Soares, “que me recebeu muito bem, concordou com tudo e nomeou um assessor para tratar do assunto”. Entretanto, o ministro caiu e foi preciso reunir com o actual, Luís Castro Mendes. E as rendas continuam a ser pagas.
Quem também também teve encontros com João Soares foram os responsáveis pela Empresa de Recreios Lisbonenses, que garantiram ao ex-ministro da Cultura, e também ao SAPO24, que têm investidores dispostos a pagar a renda pela SGL deixando que esta continue a sua actividade no edifício, mas ajudando-a a modernizar-se. Ou seja, em troca de poderem explorar os seus recursos: biblioteca, restaurante, museu, salas e outros que venham a ser criados.
Mas esta ideia também o presidente da SGL já tem. E é por isso que está a fazer mais obras no prédio. Quer abrir rapidamente ao público o museu, que já funciona para visitas guiadas e para especialistas. As entradas serão gratuitas, anuncia Aires-Barros, “mas esperamos fazer algum dinheiro com a venda de souvenirs. Porque também estamos sempre dependentes da actividade que o senhorio nos deixa fazer”.
Fonte da Empresa de Recreios Lisbonenses garante que o senhorio deixa fazer tudo. E que tudo fará para apoiar a Sociedade de Geografia de Lisboa. “Até definir um dia por ano em que as receitas de bilheteira do Coliseu de Recreios, a preço simbólico, revertam a favor da SGL. E se resolverem aceitar associados, estaremos entre os primeiros a querer entrar”. Para provar a boa vontade, conta que “na actualização da renda não foi contada a área do rés-do-chão, caso contrário o valor tinha disparado ainda mais”. Mas também não foram descontados os espaços comuns.
Para a SGL poder realizar outras actividades de que venha a lembrar-se será necessário alterar a lei em vigor. A mudança não foi feita, mas a proposta está desde Setembro do ano passado nas mãos da vereadora Helena Roseta e da SGL. Trata-se de uma proposta do Grupo Parlamentar do PS, que terá ainda de ser submetida ao Bloco de Esquerda e ao PCP e que prevê acrescentar à lei um artigo com a seguinte redacção: “Será permitido ao arrendatário, associado ou não a terceiros, o desenvolvimento de actividades que, sem prejuízo da manutenção dos pressupostos de interesse histórico e cultural presentes na lei, possam viabilizar o pagamento das rendas solicitadas pelo senhorio nos termos do NRAU”.
Para Aires-Barros a alteração proposta pelo PS “minimiza mas não resolve a situação da SGL, até porque não tem em conta as actividades de serviço público por si desenvolvidas”. “A direcção da SGL não deixará de reafirmar junto da Assembleia da República e do governo que as características específicas da SGL exigem tratamento diferenciado além do proposto”.
Importa dizer que até 2001 a SGL pagou uma renda simbólica e só a partir de então o valor passou para os 765,40 euros. Isto porque quando ali se instalou, por altura das comemorações da chegada de Vasco da Gama à Índia e do terceiro centenário da morte de Camões, o local estava pensado para ser um teatro. Havia até materiais encomendados, que viriam a ficar na posse da instituição. Como todas as obras foram feitas pela SGL, o contrato de arrendamento previa que esse valor fosse amortizado no preço da renda ao longos dos anos seguintes, o que aconteceu.
Actualmente, e desde 2015, a Sociedade de Geografia de Lisboa recebe um financiamento de 80 mil euros por ano do Fundo de Fomento Cultural. A Resolução do Conselho de Ministros morreu com o fim do governo de Passos Coelho e com ela a expropriação. “Mas também não entendo como é que um governo que não tem dinheiro para pagar uma renda teria dinheiro para pagar a expropriação”, admira-se fonte da Empresa de Recreios Lisbonenses.
Já lá vão mais de três anos desde que Cavaco Silva sossegou o presidente da Sociedade de Geografia de Lisboa afirmando-lhe que tinha a certeza que seria encontrada uma solução. Marcelo Rebelo de Sousa, que é, pelas funções que ocupa, presidente honorário da sociedade, também já ali esteve. E enquanto não se chega a um acordo, o espólio que Gago Coutinho deixou, nomeadamente um fundo para ser utilizado com os empregados da sociedade, acabou.
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