O balde de água fria caiu o início do ano sobre a grande maioria dos produtores de vinho na Europa. As garrafas de vinho vendidas na Irlanda terão um rótulo de alerta, com o tabaco. Contudo, há alguns anos que a Irlanda vinha a ameaçar com esta proposta. Foi, concretamente, no dia 17 de outubro de 2018, que foi implementada a Lei de Saúde Pública naquele país, que assenta em quatro pontos: introdução de um Preço Mínimo Unitário, Separação Estrutural, Restrições à Publicidade e Rotulagem e advertências de saúde obrigatórias. Quatro anos depois, mais concretamente em junho de 2022, as autoridades irlandesas notificaram a Comissão Europeia do tal projeto de rotulagem, que acabou por receber luz verde, a 22 de dezembro do ano passado. E recebeu porque a CE não se opôs, simplesmente se absteve.

Mesmo perante muitas críticas - treze estados membros da União Europeia, incluindo as principais nações produtoras de vinho, como Portugal, França, Itália ou Espanha, apontaram o dedo ao governo irlandês -, a verdade é que a Irlanda parece irredutível e defende que os novos rótulos ajudarão a reduzir doenças hepáticas, cancros e até a gestação sairá beneficiada. “As autoridades irlandesas demonstraram suficientemente que as medidas notificadas foram tomadas com base em evidências científicas e motivos de saúde pública específicos para o contexto irlandês”, salientou Stephen Donnelly, ministro da saúde irlandês, após a medida ter passado pela Comissão Europeia, referindo também que a “Irlanda tem uma oportunidade de ser líder mundial em políticas de álcool”.

Assim, na Irlanda, a partir de 2026, caso nada mude, todos os rótulos de bebidas alcoólicas terão de conter avisos, em letras vermelhas, de que 'beber álcool provoca doenças no fígado' ou que 'há uma ligação direta entre o álcool e cancros fatais', algo que, presentemente, só é visto na Coreia do Sul.

Aliás, em matéria de saúde, já antes a Irlanda tinha sido pioneira, em 2004, quando se tornou no primeiro país mundial a proibir o fumo em locais de trabalho, sendo a nação que também impôs os impostos mais altos da UE na venda de cigarros.

No vinho, contudo, a polémica promete ser ainda maior. Sobretudo porque críticos e produtores apontam o dedo à CE pelo facto desta ter permitido que a Irlanda se antecipe aos planos europeus sobre este assunto, dado que a Comissão tinha previsto apresentar uma proposta sobre rotulagem de álcool até final de 2023, isto depois de há exatamente um ano os legisladores europeus terem votado contra a inclusão de rótulos de alerta em bebidas alcoólicas.

A partir de 2026, na Irlanda, todos os rótulos de bebidas alcoólicas terão de conter avisos, em letras vermelhas, de que 'beber álcool provoca doenças no fígado' ou que 'há uma ligação direta entre o álcool e cancros fatais'

O SAPO24 entrou em contacto com o Ministério da Agricultura para saber a opinião do governo sobre este tema, que remeteu a resposta para as recentes declarações da ministra Maria do Céu Antunes. “Portugal já tomou uma posição pública, sendo contra aquilo que a Irlanda está a propor. Não faz sentido fazer esse nível de especulação através da rotulagem. Sabemos bem que o vinho consumido com moderação faz parte da dieta mediterrânica. É um ativo muito importante para a economia portuguesa, tem um impacto muito positivo do ponto de vista social, económico e ambiental”, considerou.

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Exemplos da rotulagem na Irlanda

Portugueses falam em medida “excessiva” e num "campo minado comercial"

Maria do Céu Antunes, ministra da Agricultura, revelou-se, assim, contra esta norma, mas os mais preocupados são os produtores nacionais, os que vivem dos vinhos. Atualmente, a Irlanda é o 23.º cliente de vinhos nacionais a nível global e o 12.º a nível comunitário. Ou seja, um mercado 'menor'. Contudo, a crítica a esta medida irlandesa é forte.

"É preocupante e excessiva, existe um crescente lobby anti consumo de vinho que tem alguns laivos fundamentalistas. Se fossemos colocar todos os malefícios que todos os bens alimentares podem, eventualmente, ter, teria de ser completamente revista a legislação sobre a rotulagem alimentar na Europa. No fundo, estão a tratar os consumidores como crianças. Faz lembrar a advertência em relação às grávidas que é obrigatória em alguns países e não é permitida noutros, o que cria dificuldades aos produtores. Realmente o consumo excessivo tem um impacto negativo, mas o consumo moderado faz parte da dieta de muitos países há séculos e existem estudos que defendem mesmo os benefícios para a saúde do consumo moderado de vinho", disse ao Sapo24 Paulo de Matos Graça Ramos, produtor na Quinta de Paços.

Se a venda de vinhos portugueses para a Irlanda não é vista como determinante para a grande maioria dos produtores, o efeito bola de neve desta decisão é o que mais os preocupa. "Poderá acontecer, sobretudo nos países não produtores de vinho, mas penso que também haverá uma reação contra este tipo de reações por parte dos países produtores", referiu o produtor, destacando aquilo que pode ser feito no futuro para evitar este tipo de situação.

"Exigir uma maior harmonização da legislação a nível europeu, promover mais estudos independentes sobre o consumo moderado de vinho e o seu impacto positivo na saúde e propor voluntariamente uma advertência genérica sobre o consumo excessivo. Depois é importante também criar alguma consciência sobre o que implica economicamente a cultura do vinho e do impacto que este tem no desenvolvimento agrícola e na fixação das populações nas áreas rurais e mesmo em termos turísticos", concluiu.

"Efeito bola de neve? Poderá acontecer, sobretudo nos países não produtores de vinho, mas penso que também haverá uma reação contra este tipo de reações por parte dos países produtores"Paulo de Matos Graça Ramos, produtor na Quinta de Paços

Atenta a esta situação está também a Associação de Vinhos e Espirituosas de Portugal (ACIBEV), que há muito acompanhava, e alertava, este caminho da Irlanda, que começou em 2018.

"Era algo previsto há alguns anos. Mas porque estamos agora a falar nisto? Porque tinha de ser regulamentado e o que foi discutido agora foi a regulamentação, que passou por um sistema de controlo, TRIS, e foi aí que Portugal contestou. Contestou primeiro por razões objetivas, pois não há evidências que o consumo de álcool provoque cancro, nomeadamente o consumo moderado, o excessivo pode ser potenciador, mas o moderado não; por outro lado há também o funcionamento do mercado interno, não podemos aceitar que um estado membro decida unilateralmente colocar esta obrigatoriedade na rotulagem numa altura em que estão a ser estudadas advertências de saúde nos rótulos, mas frases responsáveis, como 'beba com moderação', 'se é menor não beba', 'se estiver grávida não beba'. Esta decisão é extremamente grave para o mercado único. Quando exportamos temos um determinado rótulo, se isto entrar em vigor significa que teremos de ter um rótulo específico para a Irlanda, ou seja maiores custos. Há ainda um problema de reputação, quando temos um estado membro a dizer que o vinho causa cancro isso provocará um enorme problema de reputação a nível mundial", disse ao Sapo24 Ana Isabel Alves, diretora-executiva da ACIBEV.

A responsável, ainda assim, está esperançada que esta medida seja reconsiderada. No entanto, não deixou de criticar o papel da CE. "O setor nacional e europeu tem esperança que com esta pressão a Irlanda reconsidere esta decisão. A CE absteve-se, pecou por omissão. O que esperávamos era que a CE se tivesse oposto e no fundo o que a comissão fez foi não dizer nada em oposição. A direção geral que se ocupa da parte da saúde, que é fundamentalista nestes aspetos, pressionou a comissão europeia. Houve um conjunto de países que criticaram a comissão por não se ter oposto", referiu.

Irlandeses pedem ajuda a Portugal e há quem fale em “terrorismo”

Se a CE parece não ir dar luta à Irlanda, os produtores não baixam os braços. Os irlandeses, por exemplo, estão também de boca aberta perante esta medida e pedem ajuda aos seus aliados, como Portugal.

“É um risco enorme que estamos a correr. A imagem da Irlanda pode ficar afetada para sempre. Muitas bebidas vendem-se também pelos rótulos. Quem não conhece um determinado produto, compra pelo rótulo e isto é uma medida muito severa”, começou por dizer ao SAPO24 o irlandês Pat Rigney, produtor e membro da Alcohol Beverage Federation of Ireland (ABFI).

"A ajuda de países como Portugal, dos principais produtores, será fundamental para que a Comissão Europeia possa rever esta medida. Primeiro pode ser a Irlanda, mas depois podem vir outros países, um contágio destes será devastador para os produtores"Pat Rigney, produtor e membro da Alcohol Beverage Federation of Ireland (ABFI)

De acordo com o empresário, ainda não se conhecem todas as medidas, apenas que o governo “pretende passar uma mensagem sobre os efeitos do álcool e a sua ligação às doenças cancerígenas”. 

“Não sabemos ainda muitos pormenores, apenas os que têm saído. Temos pedido algumas reuniões, mas não há informações completas, só o que o governo transmitiu em janeiro. Temos estado em contacto com várias associações, também de Portugal, e são a essas que pedimos ajuda. O alto consumo de álcool é muito perigoso, mas as medidas têm de ser de prevenção, do aconselhamento do consumo moderado. Se avançarmos neste sentido agora anunciado, o efeito poderá ser global. E isso poderá ser o fim do setor em muitos países. A ajuda de países como Portugal, dos principais produtores, será fundamental para que a Comissão Europeia possa rever esta medida. Primeiro pode ser a Irlanda, mas depois podem vir outros países, um contágio destes será devastador para os produtores”, confessou.

As preocupações, obviamente, não são apenas irlandesas. Os demais produtores que exportam para a Irlanda teriam de cumprir as mesmas regras. Em Espanha, por exemplo, há quem compare esta medida a “terrorismo”.

“Felizmente em Espanha o nosso ministro da Agricultura já disse que jamais permitirá que se comercialize uma garrafa com a mensagem de que o vinho é prejudicial para a saúde. No entanto, esta posição do governo irlandês é muito perigosa para nós, produtores. Muitos governos dizem agora que não vão seguir esta medida, mas a verdade é que tememos o que pode acontecer num futuro próximo. Temo que seja uma catástrofe”, salientou ao Sapo24 Pedro Goyos, da Federación Española del Vino.

A apreensão de Pedro Goyos é muito fácil de explicar: a grande maioria dos produtores, a nível mundial, vive do mercado de exportação. Uma queda abrupta nas vendas, agora na Irlanda e eventualmente em outros países que sigam os mesmos passos, pode ser o fim de muitas empresas.

“A Irlanda não é dos mercados mais fortes para os vinhos espanhóis, mas já assume mais de 30 milhões de euros anuais. Volto a dizer que esta lei é perigosa porque pode influenciar outros países. Vivemos muito da exportação. Este é um ato de terrorismo ao vinho. A direção europeia dos produtores de vinho já fez uma queixa à Organização Mundial de Comércio e o próximo passo será avançar para os tribunais. Isto é um golpe muito duro”, concluiu Goyos.