Rui Pinto, preso preventivamente em Portugal no âmbito do caso Football Leaks, assumiu, através dos seus advogados, que entregou discos rígidos à Plataforma de Proteção de Denunciantes na África, que permitiram a recente revelação dos Luanda Leaks.

O Parlamento Europeu aprovou no ano passado uma diretiva de proteção aos denunciantes, mas a legislação ainda não foi transposta pelo Estado português.

Quando foi aprovada a diretiva europeia sobre whistleblowers?

O Parlamento Europeu aprovou por maioria, em 16 de abril de 2019, a lei para proteger denunciantes que agem em prol do interesse público na União Europeia (UE), sendo a primeira diretiva comunitária para este tipo de casos.

Naquela que é a primeira lei europeia para os ‘whistleblowers’ (em português, denunciantes), impulsionada pelas revelações do caso 'Football Leaks' e pelo papel do português Rui Pinto, o objetivo é criar um enquadramento legal de proteção uniforme em toda a UE, já que, atualmente, isso varia consoante o Estado-membro.

Rui Pinto, o único rosto conhecido até agora do 'Football Leaks', está a colaborar com Estados-membros como França, Bélgica e Holanda em investigações dos respetivos países com origem em documentos obtidos ou divulgados por esta plataforma eletrónica, lançada em setembro de 2015, e da qual o português é confesso colaborador.

O que diz a diretiva europeia sobre a proteção de denunciantes?

Esta legislação aplica-se às pessoas que pretendam alertar para eventuais violações do direito da União Europeia em vários domínios, incluindo o branqueamento de capitais, a fraude fiscal, a contratação pública, a segurança dos produtos e dos transportes, a proteção do ambiente, a saúde pública, a proteção dos consumidores e a proteção dos dados pessoais.

Os legisladores europeus introduziram uma maior flexibilidade na diretiva, permitindo que o autor da denúncia possa escolher o canal mais adequado para alertar para as violações, quer seja a nível interno (dentro da organização onde trabalha) ou externo (junto das autoridades públicas).

Além dos denunciantes, os jornalistas que divulguem as denúncias também serão protegidos.

A nova lei prevê ainda que os Estados-membros forneçam apoio jurídico, financeiro e psicológico aos denunciantes.

Uma das regras centra-se na criação de canais de comunicação internos em entidades públicas e privadas com mais de 50 funcionários, para que se possa denunciar dentro da própria organização.

Também as autoridades nacionais e europeias terão de ter canais de comunicação externos independentes.

Outra das possibilidades para os denunciantes passa a ser o recurso aos meios de comunicação social, isto em situações em que, por exemplo, não seja dada a devida atenção à sua denúncia ou haja perigo iminente para o interesse público ou risco de retaliação.

Estas formas de retaliação - como a despromoção, a suspensão ou o despedimento - passam, inclusive, a estar proibidas com a nova diretiva.

Qual é o enquadramento jurídico do estatuto de denunciante [whistleblower] em Portugal?

Portugal, à semelhança de outros países, não prevê este estatuto. A lei portuguesa apenas regula a aplicação de medidas para proteção de testemunhas em processo penal quando a sua vida, integridade física ou psíquica, liberdade ou bens patrimoniais de valor consideravelmente elevado, sejam postos em perigo por causa do seu contributo para a prova dos factos que constituem objeto do processo.

A diretiva europeia pode ser aplicada de imediato nos Estados-membros?

Sendo uma diretiva europeia, entra em vigor ao fim de 20 dias, mas depois os Estados-membros terão até dois anos para a transpor para a legislação nacional. Dependerá, pois, da vontade política a rapidez com que Portugal irá transpor esta diretiva.

Atualmente, a proteção oferecida aos denunciantes na UE é fragmentada e desigual. Apenas 10 países garantem plena proteção aos denunciantes (França, Hungria, Irlanda, Itália, Lituânia, Malta, Holanda, Eslováquia, Suécia e Reino Unido). Nos restantes, a proteção concedida é parcial e apenas se aplica a setores específicos (como no domínio dos serviços financeiros) ou a determinadas categorias de trabalhadores por conta de outrem.

As origens do 'Football Leaks' e o papel de Rui Pinto

O 'Football Leaks' foi criado em 29 de setembro de 2015 no domínio http://football-leaks.livejournal.com por Rui Pinto, único responsável que assumiu publicamente, até hoje, a revelação de documentos polémicos que agitaram o futebol português e mundial.

Em diversas entrevistas, primeiro sob o pseudónimo ‘John’ e mais tarde já como Rui Pinto, a justificação para a criação desta plataforma eletrónica surgiu em maio de 2015, com a divulgação do escândalo de corrupção na FIFA, que levou à detenção de vários dirigentes e à posterior saída do suíço Joseph Blatter da presidência do organismo que tutela o futebol mundial.

“Este projeto visa divulgar a parte oculta do futebol. Infelizmente, o desporto que tanto amamos está podre e é altura de dizer basta. Fundos, comissões, negociatas, tudo serve para enriquecer certos parasitas que se aproveitam do futebol, sugando totalmente clubes e jogadores”, referia a publicação de abertura do 'site'. A primeira grande polémica veio com a divulgação do contrato do então treinador Jorge Jesus com o Sporting.

Quais os crimes pelos quais Rui Pinto foi pronunciado?

O Tribunal de Instrução Criminal de Lisboa decidiu, em 19 de janeiro, levar Rui Pinto a julgamento, por 90 crimes de acesso ilegítimo, acesso indevido, violação de correspondência, sabotagem informática e tentativa de extorsão, deixando cair 57 crimes.

Em setembro de 2019, o Ministério Público (MP) acusou Rui Pinto de 147 crimes, 75 dos quais de acesso ilegítimo, 70 de violação de correspondência, sete deles agravados, um de sabotagem informática e um de tentativa de extorsão, por aceder aos sistemas informáticos do Sporting, da Doyen, da sociedade de advogados PLMJ, da Federação Portuguesa de Futebol e da Procuradoria-Geral da República, e posterior divulgação de dezenas de documentos confidenciais destas entidades.

Também em 19 de janeiro, o tribunal decidiu manter Rui Pinto em prisão preventiva, situação em que se encontra desde 22 de março de 2019.

Quem é Rui Pinto?

Rui Pinto assumiu publicamente em 2019 ser colaborador do ‘site’ Football Leaks e, sob o pseudónimo ‘John’, divulgou informações a partir de Budapeste, na Hungria, país onde foi detido em 16 de janeiro deste ano, no âmbito de um mandado de detenção europeu. O português vivia na capital húngara desde fevereiro de 2015, após uma primeira passagem pela cidade, entre 2012 e 2013, enquanto estudante de História da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, ao abrigo do Programa Erasmus.

Natural de Mafamude, Vila Nova de Gaia, cidade onde nasceu em 20 de outubro de 1988, Rui Pinto, confesso adepto do FC Porto e “fanático por futebol desde criança”, cresceu na zona da Praia de Lavadores, na freguesia de Canidelo, tornando-se num autodidata ao nível dos conhecimentos de informática.

Em 2013, foi o único suspeito de desviar cerca de 264 mil euros do Caledonian Bank após aceder ao sistema informático da instituição bancária sediada nas Ilhas Caimão. O inquérito-crime foi arquivado pelo Departamento de Investigação e Ação Penal do Porto, em outubro de 2014, na sequência de um acordo extrajudicial entre o jovem e o banco.

Em abril do ano passado, foi um dos vencedores de um prémio europeu para denunciantes promovido pela Esquerda Unitária Europeia (GUE/NGL).

Os vencedores foram anunciados durante uma sessão plenária do Parlamento Europeu e incluíram também o fundador da organização Wikileaks, Julian Assange, e Yasmine Motarjemi, denunciante dos lapsos de segurança alimentar da Nestlé.

Qual a relação entre Rui Pinto e o Luanda Leaks?

Os advogados de Rui Pinto revelaram na segunda-feira que o seu cliente entregou em 2018 um disco rígido contendo dados relacionados com as recentes revelações sobre a fortuna de Isabel Dos Santos à Plataforma de Proteção de Denunciantes na África (PPLAAF), que no mesmo dia confirmou que o 'hacker' português foi a sua fonte.

Rui Pinto, segundo os advogados, procurou, desta forma, “ajudar a entender operações complexas conduzidas com a cumplicidade de bancos e juristas que não só empobrecem o povo e o Estado de Angola, mas podem ter prejudicado seriamente os interesses de Portugal”.

Um consórcio de jornalistas de investigação revelou em 19 de janeiro mais de 715 mil ficheiros, sob o nome “Luanda Leaks”, que detalham esquemas financeiros de Isabel dos Santos e do marido, Sindika Dokolo, que estarão na origem da fortuna da família.

O Consórcio Internacional de Jornalistas de Investigação (ICIJ), que integra vários órgãos de comunicação social, entre os quais o Expresso e a SIC, analisou, ao longo de vários meses, 356 gigabytes de dados relativos aos negócios de Isabel dos Santos entre 1980 e 2018, que ajudam a reconstruir o caminho que levou a filha do ex-Presidente angolano a tornar-se a mulher mais rica de África.

Durante a investigação foram identificadas mais de 400 empresas (e respetivas subsidiárias) a que Isabel dos Santos esteve ligada nas últimas três décadas, incluindo 155 sociedades portuguesas e 99 angolanas.

Na passada quarta-feira, a Procuradoria-Geral da República angolana anunciou que Isabel dos Santos foi constituída arguida num processo em que é acusada de má gestão e desvio de fundos da companhia petrolífera estatal Sonangol e que visa também portugueses alegadamente facilitadores dos negócios da filha do ex-Presidente José Eduardo dos Santos.