Tornou-se um adágio conhecido e parte da cultura ocidental aquele que apregoa: “A caneta é mais poderosa do que a espada”. Cunhado pelo escritor oitocentista britânico Edward Bulwer-Lytton, este é um ditado que sintetiza como o poder das ideias e da palavra escrita é superior ao da violência física.

Em 1989, Salman Rushdie comprovou este truísmo, ainda que inadvertidamente, quando o seu romance “Os Versículos Satânicos” abalou o mundo islâmico — mas, mais especificamente, os seus setores mais fanáticos — ao ser considerado blasfemo.

Infelizmente, esta sexta-feira foi das ocasiões em que a arma branca tomou a dianteira à racionalidade e desferiu a sua brutalidade.

O que aconteceu?

O Rushdie foi atacado na sexta-feira por volta das 11:00 — 16:00 em Lisboa — quando iniciava uma palestra em Chautauqua, no noroeste do estado norte-americano de Nova Iorque.

De súbito, um homem aproximou-se do escritor britânico e do entrevistador da palestra e atacou-os. Se o moderador da conferência, Ralph Henry Reese, de 73 anos, foi apenas ferido superficialmente na cara, Rushdie foi esfaqueado no pescoço e no abdómen. O atacante foi de pronto detido.

Rushdie sobreviveu?

Sim, mas o prognóstico é muito reservado. Logo após a agressão, o escritor foi transportado de helicóptero para o hospital mais próximo, onde foi operado de urgência, explicou à imprensa o major Eugene Staniszewski da polícia estadual.

"As notícias não são boas", disse na sexta-feira à noite ao The New York Times o agente do escritor, Andrew Wylie.

"O Salman vai provavelmente perder um olho; os nervos do seu braço foram cortados e o foi esfaqueado ao nível do fígado, afirmou Wylie, precisando que o autor, de 75 anos, tinha sido ligado a um ventilador.

Desde então, não há mais novidades.

E o atacante?

O atacante trata-se de Hadi Matar, 24 anos, originário do estado de Nova Jérsia. As autoridades de Nova Iorque acusaram hoje este homem de tentativa de homicídio e agressão e o juiz ordenou a sua detenção sem caução.

Matar declarou-se inocente, contrariando a versão do procurador Jason Schmidt, que o acusou de ter premeditado e planeado o ataque, nomeadamente obtendo um bilhete de entrada antecipado para o evento em que o autor estava a falar e chegando um dia mais cedo com uma identificação falsa. “Este foi um ataque dirigido, não provocado, pré-planeado ao Sr. Rushdie”, disse Schmidt.

Já o defensor público Nathaniel Barone queixou-se de que as autoridades tinham demorado demasiado tempo a levar Matar perante um juiz, deixando-o “algemado a um banco na esquadra da polícia estatal”. “Ele tem o direito constitucional de presunção de inocência”, disse Barone, depois de ter apresentado a alegação de inocência das acusações.

Mas o que levou Matar a cometer este ato?

Não se sabe ainda, é das peças do puzzle por desvendar. Suspeita-se que terá a ver com a fatwa colocada sobre a vida de Rushdie em 1989.

Fatwa? O que é isso? E porque é que foi colocada em Rushdie?

Uma fatwa é um decreto emitido por um líder religioso islâmico. Ao ser emitida, ganha força de lei, pois esse líder é considerado um jurista islâmico. No fundo, é uma sentença.

A fatwa em causa foi proferida pelo ayatollah Rouhollah Khomeini, líder supremo da República Islâmica do Irão, apelando ao assassínio de Rushdie. A declaração em causa não foi oficialmente uma fatwa, mas foi considerada como tal pelos meios de comunicação ocidentais, de tal forma que passou a ser assumida como tal pela própria elite religiosa iraniana.

Porquê?

Porque Rushdie, no seu livro “Os Versículos Satânicos”, cria uma personagem análoga ao profeta Maomé e, ao contrário da escritura islâmica, diz que esta foi enganada por Satanás.

Tal foi considerado uma blasfémia de tal ordem que o seu livro foi banido em mais de 20 países. Seguiu-se então o apelo ao assassinato de Rushdie, tornado mais apetecível pelo Irão ao oferecer uma recompensa de três milhões de dólares a qualquer pessoa que matasse o escritor.

Quais foram as consequências?

Rushdie deixou ter uma vida normal, afastando-o da sua família porque motivos de segurança e obrigando-o a andar escoltado de guarda-costas e a mudar de casa dezenas de vezes.

O escritor — de origem indiana e residente desde sempre no Reino Unido — mudou-se para Nova Iorque, onde considerava ser mais seguro viver. Tanto que, nos últimos anos, começou a aparecer cada vez mais em público.

No entanto, como recorda Francisco Sena Santos — cujo texto pode ler aqui e que aprofunda esta temática — o decreto de Khomeini não se limitava a Rushdie, estendendo-se a todos aqueles envolvidos na publicação de “Os Versículos Satânicos”.

Como tal, nos meses seguintes ao decreto, “Ettore CaprioloIo, tradutor dos "Versículos" para italiano, foi esfaqueado à porta de casa em Milão – conseguiu sobreviver; Hitoshi Igarashil, tradutor para japonês, foi morto, também à facada; William NygaardIl, tradutor para norueguês, resistiu vivo a um ataque a tiro em 93; Aziz Nesin, intelectual turco, promotor de apoios a Rushdie, foi vítima em 93 de um ataque incendiário, no salão de um hotel, em que morreram 37 pessoas, entre elas vários poetas e romancistas”, lembra o nosso cronista.

Então, essa fatwa dura até hoje?

Sim, já conta com mais de 30 anos e, apesar do governo do Irão já se ter distanciado deste decreto, segundo a lei islâmica não pode oficialmente ser revogado porque o seu autor, Khomeini, já morreu.

Além disso, o sentimento anti-Rushdie ainda está presente no Irão. As autoridades iranianas ainda não comentaram oficialmente a tentativa de assassinato do intelectual, mas o principal diário ultraconservador iraniano, Kayhan, felicitou hoje Matar pelo seu ato.

“Bravo a este homem corajoso e consciente do seu dever que atacou o apóstata e vicioso Salman Rushdie”, escreveu o jornal, cujo diretor é nomeado pelo líder supremo do Irão, que é atualmente o ayatollah Ali Khamenei. “Beijemos a mão daquele que rasgou o pescoço do inimigo de Deus com uma faca”, acrescenta.

Seguindo a linha oficial, todos os meios de comunicação iranianos descreveram Rushdie como um “apóstata”, com exceção do Etemad, um jornal reformista. O diário estatal Irão disse que “o pescoço do diabo” tinha sido “golpeado por uma navalha”.

“Não derramarei lágrimas por um escritor que denuncia os muçulmanos e o Islão com infinito ódio e desprezo”, escreveu Mohammad Marandi, conselheiro da equipa de negociação nuclear, num tweet. “Rushdie é um peão do império a posar como romancista pós-colonial”, acrescentou.

Há, no entanto, um efeito reverso que se assume como um ponto positivo no meio desta situação.

Qual?

Na tarde deste sábado, três edições de "Os Versículos Satânicos" encabeçavam o barómetro de livros da Amazon, que marca o ritmo de livros vendidos nas últimas 24 horas. O seu primeiro best-seller, "Os Filhos da Meia-Noite", ocupava a quarta posição e registam-se vendas avultadas na restante obra de Rushdie.

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