"Quem dera que o dia tivesse 48 horas". Quantas vezes, por lazer ou por trabalho, deu por si a desejar "só" mais 24 horas para dar conta do recado? A questão que se impõe é: e quantas dessas horas contava passar a dormir?
A doenças do sono — apneias, insónias, síndrome das pernas inquietas — são cada vez mais conhecidas, são mais cedo diagnosticadas e há equipas multidisciplinares dedicadas a acompanhar pacientes que padecem dos males de noites mal dormidas.
No entanto, há um outro aspecto a considerar, talvez mais comum, que também tem consequências muito reais para a saúde, segurança, qualidade de vida e até produtividade dos indivíduos: a privação de sono.
E a privação de sono não é um mal apenas daqueles que foram pais ou mães há pouco tempo. Considera-se que um indivíduo é privado de sono quando dorme consecutivamente menos de 7 horas por noite.
Se conduzir, durma devidamente
"A pessoa privada de sono, antes de mais, sofre de sonolência e a sonolência é a principal causa de acidentes de viação dos EUA", diz Joaquim Mota, presidente da Associação Portuguesa do Sono e diretor do Centro de Medicina do Sono do Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra, ao SAPO24. "Ainda estou para ver uma campanha da GNR que diga 'se conduzir, durma devidamente'", refere. Há ainda que considerar a "irritabilidade e a dificuldade em tomar decisões assertivas e corretas", acrescenta.
E se há consequências mais imediatas, outras podem levar semanas a manifestar-se e ter consequências de longo prazo: "Um estudo nos EUA, sobre jovens universitários que estavam numa dieta de cinco horas de sono, mostrou que a privação de sono, ao fim de 15 dias, levava a uma diminuição do tamanho dos testículos".
"Isto é sempre bom para conseguir a atenção da audiência numa palestra", brinca Joaquim Mota, apressando-se a explicar a ligação entre as duas coisas: "É factual que dormir menos que 7 horas leva a uma diminuição de testosterona e a testosterona é importante em termos de libido masculina, mas também ao nível do desempenho muscular".
Sabe-se hoje também que em jovens rapazes privados de sono "há uma taxa muito mais elevada de deformação do espermatozoide" e, no equivalente feminino, há "uma redução da produção de hormonas fuliculares". Ainda nos EUA, num estudo que corre há décadas com enfermeiras, concluiu-se que "1/3 das enfermeiras que trabalham por turnos têm alterações ao nível da menstruação".
"Tudo isto somado, em rapazes e raparigas jovens, é capaz de contribuir para a tão frequente infertilidade dos nossos dias", conclui Joaquim Mota, já numa lógica de consequências a longo prazo.
Hoje "está completamente demonstrado que a pessoa privada de sono tem um risco cardiovacular elevado: hipertensão, arritmia, risco de enfarte agudo do miocárdio". E está comprovada a ligação direta entre a privação de sono e o maior risco de cancro da mama na mulher e na próstata no homem.
Sabe-se igualmente "que, por volta do ano 2000, começou a aparecer nos EUA e no Japão uma epidemia de jovens que não eram obesos, mas tinham desenvolvido diabetes tipo 2 porque dormiam pouco".
A área de conhecimento em relação ao sono "tem evoluído muito", nota, destacando por exemplo um outro estudo que dá conta dos efeitos da privação de sono ao nível da resposta imunitária do organismo.
"Desde há uma década que se sabe que indivíduos que dormem pouco reagem de uma forma diminuída à vacina anti-gripal. O indivíduo que está privado de sono leva vacina e não responde tão bem quanto o indivíduo que dorme oito horas por noite. Isto demonstra que a privação de sono provoca uma perturbação da imunidade" — o que se pode revelar mais preocupante em plena pandemia.
"A invenção da eletricidade foi uma desgraça para a civilização", brinca o médico pneumologista, que se dedica há décadas à área do sono.
"Existe um mundo enorme de efeitos que podem ocorrer por privação de sono... E ainda nem comecei a falar das doenças do sono", nota.
"É a minha mulher que está feita com a médica de família"
Entre as doenças do sono, a mais frequente é a Síndrome de Apneia Obstrutiva do Sono (SAOS), "que em Portugal já tem uma grande notoriedade", diz Joaquim Mota.
"Quando comecei nesta área, há 30 anos, era uma coisa esotérica. Hoje em dia, principalmente as mulheres, estão despertas para o tema. Sabem que o marido que dorme ao lado ressona, tem paragens respiratórias e no dia seguinte acorda cansado, irritado ou sonolento. E muitas vezes têm problemas cardíacos ou hipertensão associada, além de uma diminuição da libido", enumera.
"Eu pergunto sempre aos meus doentes 'como veio aqui parar' e muitos me respondem: foi a minha mulher, está feita com a médica de família", conta, acrescentando que "a pergunta que se coloca agora é: qual a capacidade do Serviço Nacional de Saúde para dar resposta a tantos doentes, considerando que a prevalência estimada na população adulta é de 30%?".
Quando perguntamos a Joaquim Mota sobre o impacto da pandemia no encaminhamento de doentes — sobretudo considerando a diminuição das consultas de saúde geral e familiar —, diz que "os médicos de família encaminharam doentes em 2020 na mesma proporção que em 2019".
"Há uma procura exponencial destas consultas", o que atribui não apenas a um maior diagnóstico das doenças do sono, mas também a uma crescente sensibilização para o tema.
No Centro de Medicina do Sono do Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra, que se está a candidatar a Centro de Responsabilidade Integrada (unidades que têm autonomia funcional e que estabelecem um compromisso de desempenho assistencial e económico-financeiro, negociado para um período de três anos), há uma equipa multidisciplinar para acompanhar estes doentes, com pneumologistas, pediatras ou psicólogos.
A pandemia fez os portugueses dormir pior? Nem todos
A ansiedade é inimiga do sono e a “ansiedade é própria deste tempo pandémico em que vivemos. Notamos que os doentes têm mais queixas de insónias relacionadas com ansiedade. Quer os que já eram seguidos, quer os referenciados de novo”, conta à Lusa Marta Drummond, também pneumologista e responsável pelo Centro de Responsabilidade Integrado (CRI) de Sono e Ventilação não Invasiva (VNI) do Centro Hospitalar Universitário de São João (CHUSJ).
“Telefonámos a todos os nossos doentes que estavam ventilados com patologia respiratória do sono para perceber o impacto da pandemia na qualidade do sono. Verificámos que larga maioria tinha impacto negativo com o reaparecimento de insónia, agravamento das insónias prévias, entre outros aspetos”, descreveu.
Marta Drummond, que é também professora na Faculdade de Medicina da Universidade do Porto (FMUP), refere que "a patologia respiratória do sono tem uma prevalência elevadíssima e tem vindo a aumentar nos últimos anos, estimando-se que aumente nas próximas décadas”.
A unidade no São João tem oito meses de atividade e, quando iniciou funções, tinha listas de espera de 3.000 doentes e mais de dois anos para consulta. Atualmente, com listas de espera de 900 doentes, o tempo para aguardar consulta situa-se em menos de nove meses. A meta é chegar a menos de três até ao final do ano, disse a responsável.
Tal como em Coimbra, a equipa do São João tem “uma abordagem multidisciplinar que permite melhor servir os doentes, porque às vezes o tratamento não passa por um só tratamento, mas pela complementaridade de várias medidas terapêuticas. E, por outro lado, podemos discutir entre nós casos mais graves em que o tratamento ou o diagnóstico são mais difíceis”, descreve.
Joaquim Mota refere que, à data, a literatura não permite fazer uma associação linear entre a pandemia e piores noites de sono. "Há pessoas que reagiram muito mal em termos de sono à pandemia e ao confinamento, mas outras não, adaptaram, e até houve até quem tenha beneficiado de alguma forma", conta.
Ana Allen Gomes, Professora na Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade de Coimbra e investigadora na área do sono, corrobora. “Há estudos em vários sentidos. O impacto foi variável, mas globalmente as pessoas atrasam os horários de sono, passaram a deitar-se e levantar-se mais tarde, durante ou após confinamento”, disse à agência Lusa a especialista, que faz também parte da direção da Associação Portuguesa do Sono (APS). “Em teletrabalho as pessoas perdem menos tempo em deslocações, logo, não têm de levantar-se tão cedo e muitas acabaram por seguir aquilo que para elas é um ritmo mais natural”.
Reconheceu que houve casos que pioraram, com insónias e pior qualidade do sono, uma situação que era expectável "pelo aumento dos níveis de stress e ansiedade, pela sobrecarga que a covid representa e pela alteração de hábitos de vida e perda de rotinas, levando a mais dificuldade de sono à noite e maior sonolência durante o dia”.
“A balança até pode ter desequilibrado um bocadinho, mas não é tão dramático como podíamos pensar”, concluiu.
O mesmo refere Teresa Paiva, médica neurologista especialista em medicina do sono, ao SAPO24. Se é verdade que alguns dos seus pacientes são ex-covid e viram a doença impactar a qualidade do seu sono, a maioria, porém, lida com problemas de sono associados a questões anteriores à pandemia.
No entanto, ainda procura respostas, pelo apela à participação num survey que tem em curso e que visa entender qual o efeito do confinamento no dia a dia das pessoas.
"O que é importante para viver bem — e isto não é uma 'boca', nós estudámos isto, está comprovado. Para as pessoas estarem o melhor possível nesta época de calamidade devem ter horários regulares de sono, devem dormir adequadamente, não ter horários tardios, não estar tempo excessivo nos ecrãs, ter atitudes e comportamentos positivos, fazer atividade física e comer adequadamente".
"Uma melhor adaptabilidade ao estado de calamidade que vivemos é conseguida através destas coisas", reitera.
No mesmo sentido, Marta Drummond refere que “são precisas mudanças de estilo de vida: comida mais saudável, exercício físico regular, não usar bebidas alcoólicas à noite ou sedativos que possam agravar as doenças respiratórias”.
Quando perguntamos a Teresa Paiva o que é que tem tirado ou vai tirar o sono aos portugueses, refere três coisas: "há uma série de comportamentos de violência insidiosa e não manifesta, que se pode ver em qualquer rede social, mas que é exercida a todos os níveis e em vários aspectos da nossa vida. As pessoas têm um passado de violência que nunca foi entendido como tal, hoje recebo praticamente uma pessoa por dia nessas condições, é uma coisa assustadora. Não dormirem é apenas uma consequência".
Depois, refere ainda a "desnecessária inconsistência das notícias", que gera medos e ansiedades. "Esta coisa da vacina da AstraZeneca contra a covid-19 [que chegou a estar suspensa por alguns dias] é o exemplo acabado disso. Foi com as máscaras, agora com as vacinas, estas inconsistências informativas não são propriamente saudáveis".
Olhando para a frente, considera que a próxima coisa a dar más noites aos portugueses será "garantidamente" a economia, tendo em conta a incerteza em torno do impacto desta crise sanitária que é também social e económica.
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