Estávamos a 25 de maio e o mundo vivia em torno da pandemia (ainda vive). Pouco depois das 20h dessa segunda-feira, em Minneapolis, EUA (2h da manhã de dia 26 em Lisboa), uma boa parte do mundo passaria a viver em torno de um segundo tema: a violência policial sobre os negros e o racismo na sociedade.
A descrição do momento já conhecerão: George Floyd, um homem negro de 46 anos, morreu asfixiado enquanto um polícia lhe pressionava o pescoço com o joelho — a detenção foi feita depois de uma denúncia de que George teria usado uma nota de 20 dólares falsa para comprar cigarros. Aqueles minutos foram filmados por quem estava a passar na rua e as imagens visualizadas vezes sem conta em todo o mundo.
Desde esse momento até aos dias que correm, a espiral de turbulência não mais parou. Em maior escala nos Estados Unidos, mas com repercussões também noutros países — incluindo em Portugal. Protestos - pacíficos e violentos -, demissões na polícia norte-americana, propostas de reformas políticas, derrube de estátuas, debates, grandes marcas com campanhas antirracismo e até a suspensão do desenvolvimento de tecnologias de reconhecimento facial em gigantes tecnológicas pela existência de erros que podem levar a discriminação racial.
Se a maioria concorda que são profundamente perturbadoras as imagens de um polícia a asfixiar até à morte uma pessoa deitada no chão, já não é tão consensual a interpretação das reações que se seguiram.
Conversámos com Laura Kohn-Wood, uma psicóloga norte-americana habituada a olhar para os problemas sociais de um ponto de vista que integra a experiência dos indivíduos com as políticas públicas e orientado para soluções. A especialista convidou-nos a colocar as lentes da Psicologia Comunitária para analisar o momento atual.
Mas antes: uma pergunta inconveniente e uma resposta-trampolim
“Identifica-se como mulher negra?”, perguntámos a Laura Kohn-Wood. A pergunta pode chocar ou parecer desapropriada. A resposta veio mostrar que não era o caso.
“O meu pai biológico é branco e a minha mãe biológica é negra — eu fui adotada”, começa por explicar. “Nasci em 1966, por isso a relação entre os meus pais biológicos era ainda ilegal nalguns sítios dos EUA”, continua, referindo-se às leis que proibiam os casamentos interraciais e que só foram consideradas inconstitucionais pelo Supremo Tribunal em 1967.
E prossegue: “Nasci num tempo em que a ‘one-drop rule’ existia em muitos sítios. O que significa que com uma gota de sangue negro uma pessoa era identificada como afroamericana”. A “one-drop rule” é um princípio social e jurídico de classificação racial que teve uma presença muito forte nos EUA no século XX. O sistema era usado para categorizar os cidadãos, tendo implicações nos direitos a que estes tinham acesso. No anos 80, ainda havia tribunais a recorrer a esta regra para tomar decisões.
Estas e outras experiências levam Laura a concluir: “A raça opera de forma tão profunda neste país que seria difícil para mim não me identificar como mulher negra”.
Laura Kohn-Wood é diretora da School of Education and Human Development (Faculdade de Educação e Desenvolvimento Humano) da Universidade de Miami, nos Estados Unidos. É doutorada em Psicologia Clínica, com formação em Psicologia Comunitária, e a sua carreira tem sido dedicada às identidades sociais, em particular raça, etnia, cultura e género.
Distingue três princípios essenciais da Psicologia Comunitária que podem dar pistas para a mudança social: ir à raiz dos problemas, reconhecer o conhecimento especializado das comunidades e seguir a “teoria ecológica”. Antes, deixa uma ressalva: “Esta é só a minha perspetiva através da perspetiva da Psicologia Comunitária. É importante recolher várias visões”, como por exemplo, ilustra, a do Direito, da Antropologia e da História.
I - Ir à raiz dos problemas
“Três quintos” de uma pessoa. Esta é a expressão usada no primeiro artigo da Constituição norte-americana para descrever quanto valiam os escravos “nos primeiros documentos da fundação do país”, lembra Laura Kohn-Wood.
"É necessário ganhar consciência dessa história (...) para sermos capazes de ultrapassar a tradição de inferiorização"
O valor era usado para o cálculo do número de representantes a considerar nas eleições — na 14.ª emenda da Constituição, de 1868, a definição passou a ser “o número total de pessoas em cada estado”.
“Quando isto está na narrativa de fundação de um país, é necessário ganhar consciência dessa história e fazer um trabalho sério e profundo para sermos capazes de ultrapassar a tradição de inferiorização”, defende Laura.
A psicóloga refere-se ao primeiro princípio da Psicologia Comunitária e à necessidade de ir além de uma leitura imediata daquilo que observamos: “A ideia é tentar encontrar as causas [dos problemas], em vez de ficar só pela superfície”.
Além das questões históricas, a especialista atribui também a dimensão da agitação social que se tem visto nas últimas semanas à conjugação de uma série de acontecimentos da atualidade.
Primeiro, a precipitação de casos envolvendo homens negros como alvo de ataque. “Este incidente com George Floyd em Minneapolis é só o mais recente. Veio quase logo a seguir ao incidente [em fevereiro] com Ahmaud Arbery, o jovem negro que foi assassinado no bairro onde estava a fazer jogging, depois de ter sido perseguido por três homens brancos que achavam que ele era responsável por vários roubos na zona”. Laura lembrou ainda o “incidente em Nova Iorque, no Central Park”, a 25 de maio, “em que um homem estava a fazer observação de pássaros e uma mulher discutiu com ele sobre se o cão dela devia ou não estar preso na trela”. Enquanto ele a filmava, a mulher ligou para a polícia “a dizer que um homem negro a estava a atacar”. “A mulher estava usar intencionalmente a raça como ‘arma’ contra ele”, afirma Laura Kohn-Wood.
"As pessoas reconhecem que a raça é, neste país, um fator de risco para estar vivo"
Em segundo lugar, a psicóloga recorda que o facto de estes incidentes terem sido filmados permitiu que “as pessoas testemunhassem” as situações. No caso de George Floyd, o vídeo mostra “um homem a ser morto por um agente da polícia, enquanto outros gritam e ele está em aflição”, descreve, recordando as imagens perturbadoras.
Além disso, tudo isto aconteceu “ao mesmo tempo que muita gente ainda está em confinamento e com medidas de distanciamento social”. “Acho que por isso tem havido um público muito mais atento e mobilizado”, admite.
“O que é diferente agora, quando comparamos com outros casos”, observa Laura, “é que parece haver uma maior participação da comunidade branca nos protestos, a participação de grupos multirraciais e multiétnicos a enfatizar ideias que começaram a ficar mais comuns com o movimento Black Lives Matter”.
“Estamos numa espécie de momento em que as pessoas reconhecem que a raça é, neste país, um fator de risco para estar vivo ou para ter permissão para existir da mesma maneira que todas as outras pessoas”, analisa a psicóloga.
II - Reconhecer o conhecimento especializado das comunidades
Um outro princípio da Psicologia Comunitária diz que, “em vez de o profissional se ver como o especialista que chega para corrigir um problema, deve trabalhar de forma colaborativa com os membros da comunidade e potenciar o seu conhecimento e experiência” para dar resposta às questões que surgem.
"Tem havido uma divisão tão grande desde 2016 que é quase se fôssemos um barril de pólvora à espera de explodir"
Laura Kohn-Wood dá um exemplo aplicado à violência policial nos Estados Unidos: “um dos esforços é desenvolver ou restabelecer os conselhos comunitários de acompanhamento [“community review boards”, no original] ou os conselhos consultivos” e garantir que eles tenham “membros da comunidade”. Estas estruturas têm existido nos Estados Unidos, com avanços e recuos ao longo das décadas, para ajudar a monitorizar as práticas policiais e a permitir uma investigação independente de alegados abusos, mas o seu papel tem sido contestado, em particular pelos sindicatos da polícia.
Para Laura, as funções ou competências destes conselhos poderão incluir: pensar em “políticas e procedimentos de policiamento” adequados a cada comunidade, “tratar de reclamações dos cidadãos sobre práticas policiais”, “acompanhar os processos de contratação e formação de polícias no respetivo departamento, e de demissão, quando são violadas as regras” e ter poder para “responsabilizar” os decisores locais “quando há um problema”.
Um tema relacionado com este é o papel dos líderes. Laura Kohn-Wood deixa uma visão sobre a atual presidência: “Em vez de termos o mais alto nível de liderança a enfatizar aquilo que temos em comum e aquilo que precisamos de fazer para nos unificarmos como país, temos o oposto”. “Tem havido uma divisão tão grande desde 2016 que é quase se fôssemos um barril de pólvora à espera de explodir”, afirma.
A psicóloga considera que “alguma da retórica de Trump” encoraja “indivíduos que têm crenças e visões racistas ou preconceituosas” e que respondem “de forma violenta e com base no ódio e na divisão”. Laura dá o exemplo de Charlottesville, quando, durante uma manifestação de extrema-direita, um homem avançou com o carro sobre um grupo de contra-manifestantes, matando uma mulher e ferindo 20 pessoas. O Presidente dos EUA disse, na altura, que “havia culpa de ambos os lados”.
A diretora da faculdade refere que, desde a eleição de Trump, tem havido “um aumento de crimes de ódio”. Segundo as estatísticas anuais do FBI, em 2016, foram registados 6.121 incidentes de crimes de ódio; em 2017, 7.175; e em 2018, 7.120. Em qualquer um destes anos, cerca de 58% dos crimes tiveram motivações raciais/étnicas, de acordo com a mesma fonte.
Laura sublinha, no entanto, que os problemas de violência policial sobre a comunidade negra “remontam, claro, a momentos muito anteriores à eleição de Trump”. Mas, compara a abordagem dos diferentes chefes de Estado: “Há uma diferença grande entre o que o atual presidente tem dito e a forma como os presidentes anteriores têm estado a reagir”. “Bush fez recentemente uma declaração em que reconhece os problemas que existem no nosso país e em que sublinha que podemos fazer melhor como país, enfatizando uma resposta mais humana”, exemplifica.
Em relação a líderes mais comunitários, Laura reconhece que o panorama atual “parece diferente” do dos anos 60, quando havia “fortes líderes pela defesa dos direitos civis” que eram “mais facilmente identificáveis”, tais como Martin Luther King.
A psicóloga comunitária reflete sobre “como os protestos de agora são bastante horizontais”, havendo “a partilha daquilo que seriam os papéis típicos” de líderes, “atribuídos só a algumas pessoas”. “A agenda torna-se mais difusa, mas se calhar também mais flexível àquilo que o contexto requer. E se calhar permite uma maior transformação social”, conjetura.
Ainda assim, Laura Kohn-Wood identifica Colin Kaepernick como uma figura para a qual “algumas pessoas possam estar a olhar” neste momento. O jogador de futebol americano começou a ajoelhar-se durante o hino nacional nos jogos, em 2016, para chamar a atenção para a causa das desigualdades raciais. “Foi vilipendiado por muita gente”, recorda a professora. O jogador, considerado um dos melhores na altura, acabou por não voltar a ser contratado por nenhuma equipa. Neste momento, “poderá emergir como alguém que teve capacidade para mostrar liderança”, acredita Laura Kohn-Wood.
Há poucos dias, já depois da entrevista, a Medium, plataforma online com mais de 60 milhões de utilizadores onde são publicados artigos amadores e profissionais de referência, anunciou que Colin Kaepernick integrou o conselho de administração da empresa e vai passar a escrever sobre direitos civis e racismo.
III - Seguir a “teoria ecológica”
“Trata-se de ver qualquer problema, qualquer assunto social como afetando as pessoas em vários níveis”, começa por explicar Laura Kohn-Wood. Quando uma situação ocorre, precisamos de olhar para a forma como cada indivíduo lida com ela em termos pessoais, mas também é preciso ter em conta as dinâmicas familiares, e ainda o contexto social e cultural onde tudo acontece. No caso do combate ao racismo, como a especialista esclarece a seguir, trata-se de fazer um exercício de consciência individual, mas também de desenvolver atividades coletivas sobre o tema, e de, num nível mais estrutural, alterar o que esteja a manter padrões de discriminação - leis, práticas culturais, etc.
"Para encararmos os problemas que temos hoje é importante estarmos disponíveis para nos sentirmos desconfortáveis"
“Qualquer mudança tem de ocorrer em vários sistemas”, porque “só mudar ou ajudar os indivíduos”, um a um, “não vai resolver a questão”, argumenta a professora. O nome académico deste modelo é “teoria ecológica dos sistemas”.
Trazendo a teoria para o concreto, a psicóloga dá exemplos com a situação atual.
A nível individual, Laura Kohn-Wood lança uma proposta desafiante: “É da natureza humana evitar, fugir de coisas que são desconfortáveis, ameaçadoras, incertas ou que estão fora do nosso controlo. Para encararmos os problemas que temos hoje é importante estarmos disponíveis para nos sentirmos desconfortáveis. Sentir o desconforto de que o mundo não é um sítio justo. Em vez de recorrer só às análises mais simples, que individualmente podem ficar-se pelo ‘eu não sou racista’ ou ‘eu não tenho preconceito’”.
Como exemplo de uma mudança num nível um pouco mais alargado, a professora refere uma iniciativa lançada na faculdade: “Uma das coisas que começámos [há uns anos] foi um programa de diálogos intergrupais como plano de estudos académico”. “A ideia é juntar pessoas de diferentes identidades sociais, experiências de vida e perspetivas num espaço estruturado”, com leituras, tarefas, reflexão e diálogo. “Não é discussão, não é debate”, Laura faz questão de sublinhar. Não se trata de "defender um lado", mas sim de falar “a partir da experiência pessoal", de forma "aberta" e autêntica, permitindo perceber como é que uma pessoa chegou "a uma determinada visão do mundo”. “Não significa ter de concordar com um ponto de vista particular”, reforça Laura, mas ajuda a pensar sobre as “bolhas” em que vivemos. Na Universidade de Miami, o programa começou por ser dirigido aos alunos, mas hoje em dia existe também para professores e funcionários.
"A questão é distinguir qual é a forma mais transformadora de progredir, preservando a humanidade e trazendo mudança"
“É uma coisa relativamente pequena em todo um conjunto de coisas que precisam de acontecer para que se dê uma mudança real”, afirma.
Desse conjunto fazem parte os protestos, acredita Laura Kohn-Wood. A psicóloga vê o comportamento de “violência e pilhagem” como “desprezível”, mas considera perigoso “simplificar demasiado” a análise das mobilizações que têm ocorrido nos Estados Unidos. Recorda que as manifestações de diferentes naturezas têm sido “comuns na história da luta pelos direitos civis”. “Muitas vezes tudo isso é necessário para nos fazer avançar”. “A questão é distinguir qual é a forma mais transformadora de progredir, preservando a humanidade e trazendo mudança”.
Finalmente, ao nível coletivo, “é difícil de dizer”, considera Laura. “Ainda não chegámos aí. Ou pelo menos há resistência”, justifica. “Para criar mudança, primeiro tem de haver a consciência de que o racismo está profundamente entranhado na nossa sociedade, desde a sua fundação”, volta a dizer.
Depois, é necessária uma “abordagem abrangente, de saúde pública” no desenho de políticas, reconhecendo que os acontecimentos não são pontuais ou anedóticos, mas que pelo contrário refletem a “interseção” da forma como funciona “cada sistema da nossa sociedade”: “saúde, educação, emprego, lazer, sistema prisional, justiça”.
Ainda assim, Laura Kohn-Wood avança que “tem havido esforços bem sucedidos de formações para entender o preconceito implícito, formações em diversidade, formações em instituições como a polícia, para permitir que o contacto com as comunidades seja melhor”.
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